American Dream

Park Falls, Winsconsin, 1982

Estava eu no inferno. Estranho o inferno. Era igualzinho a uma escola em que eu estudei. Aquela facção do inferno chamava-se philadelpho.

Era uma época de festas, o ano estava acabando. Eu, precisava de nota. Nem sei por que. Já não estudava mais lá. Estava de visita. Vi uma antiga professora minha, fui lá bater um papo. Bonita, papo vem papo vai, acabei arrastando ela prum canto e fizemos sexo ali mesmo.

Deixei ela lá, me deu vontade de ir na diretoria. Eu queria era sacanear aquela safada da diretora. Estava só de camiseta branca, sem cueca nem nada. Entrei e sentei na cadeira. Ela ficou me olhando com aquela cara engraçada dela. Eu disse que me chamava algo que nem lembro mais o que e que estava precisando trocar de curso e de horário. Ela foi muito prestativa, me deu uns papeizinhos pra preencher e disse que tudo se resolveria no próximo semestre. Fiquei imaginando a cara dela quando descobrisse. Fui convincente. Fui mesmo. Nada mal considerando que eu estava de bunda de fora.

O mais engraçado é que a tal escola ficava numa cidade igual a que eu morava antes de morrer. E eu nem lembro como eu morri. De qualquer modo, lá estava eu, vestido de novo. Eu era um supervisor de um tipo de fabrica e tinha que anotar quais almas eram jogadas nas profundezas e quais não eram. Ninguém sabia como eram as tais profundezas mas não eram muito agradáveis.

Eis que um belo dia estou eu na boa quando entra no galpão do meu setor uma antiga conhecida minha. Fiquei surpreso ao saber que ela tinha vindo pra cá. Era uma gracinha, loirinha e alegre, como sempre foi. Era linda. Não demorou pra que eu fosse lá e lhe desse um beijo naquela boquinha gostosa. Chamava Lenny, assim mesmo com dois enes. O engraçado é que não me lembrava como tinha conhecido ela antes. Só sabia que gostava dela.

Ficamos um tempo juntos. Aí fiquei sabendo que ela deveria ser arremessada na lava das profundezas. Foi chato sabe, não queria que ela fosse embora. Eu gostava de ficar com ela. Ate me ofereci pra ir também. Mas o diabo tinha me dito que ainda não era minha hora. Ainda não.

Não tive escolha, talvez eu tenha ate chorado quando mandei ela pro abismo. O bom é que nessa mesma leva de almas tinha uma tia minha lá no meio. Eu até que gostei de jogar ela.

Mais um dia e eu saio do trabalho. Queria ouvir umas musicas como aquelas que eu ouvia na casa do meu amigão antes de vir pra cá. Mas por aqui não tinha musica. Lembro que eu tinha deixado o carro na casa da minha mãe. Ficava no centro perto dos trailers de cachorro quente. Fui andando pela rua, cantarolando qualquer coisa e pensando na Lenny. Foi nessa hora que veio um sujeito veloz pra burro num carro azul, daqueles tipo cadillac, e me atropelou. Sorte que a frente do tal carro era grande e eu rolei por cima sem me machucar muito. Acabei agarrado no teto do carro, que corria mesmo. Começou a chover, ainda bem que eu estava de blusa porque estava ficando um frio danado. O cara correu pela rua do centro a toda. Se não me engano ele estava na contra mão. E eu agarrado no capô. Eu queria me vingar dele. Bater nele. Bater forte. Sujeito safado. De algum modo eu sabia que tinha sido proposital.

Ele correu ate na frente da casa da minha mãe. Quando estava chegando jogou o carro pra cima do meu que estava em frente e bateu. Bateu no meu carro, o sacana. Amassou quase até a metade. Filho da mãe. Eu tinha suado pra comprar essa porra desse carro. Ele no tinha esse direito.

Caí no chão e esperei ele sair pra dar uma surra nele. Ele saiu. Era um sujeito velho, de uns quarenta e tantos, alto pra burro. Com uma cara de mal. Nem falou nada e já veio pro meu lado. Eu avancei. Tava na cara que ele ia apanhar, não sei porque não fugiu. E ele sabia disso. Tomei uns sopapos mas bati bem forte nele. Uns três ou quatro bem dados. Aí ele foi até o carro e eu fui atrás. Quando eu percebi estava com dois canos apontados pro meio do meus olhos. Não deu nem tempo de pensar. O cara disparou a arma. Só deu pra ouvir o barulho. Cabum.

Ta bem. Eu morri. De novo. Morri morto. Eu sabia que ia morrer num dia de chuva. Fiquei ali olhando meu corpo sem cabeça no meio da rua. Tinha uns pedaços espalhados até o fim do quarteirão. Mas eu tinha uma vantagem: ele não podia me ver agora. Eu estava meio flutuando. Fui até uma arvore, peguei um pedaço comprido de pau e sossegadamente, empalei o safado.

Aí eu comecei flutuar meio devagar, eu não estava mais controlando minhas ações. Só sei que eu flutuei baixinho, vendo as pessoas passarem sem me ver. Eu pensei que ia pro abismo porque eu fui indo. Tinha algo me puxando, me controlando. De qualquer modo foi uma sensação leve, calma como um dia sem sol. Passei pelos bairros com as pessoas trabalhando, vi aquela fabrica de refrigerantes que eu tinha visitado quando era menino. E vi a casa da minha avó, até ouvi ela me chamando pro almoço. Vi a venda da esquina, e o carrinho daquele senhor que vendia paçoca e amendoim. Fui vagando, devagar, quando cheguei num galpão. Era um deposito desses enormes e cheio de caixas, que a gente vê nos portos. Nesse momento eu já não era mais alma. Estava no meu corpo de novo. Com minha velha blusa cinza. De algum modo ouvi uma voz que disse “Ainda não. Ainda”. Foda-se. Fui andando e no meio daquele monte de caixa achei uma que era pra mim. Não estava escrito nada mas eu sabia que era minha. Aí eu abri e pra minha surpresa eu achei lá, dentro daquela caixa, no meio daquele deposito frio que eu nem sabia onde ficava, tudo que eu sempre quis. Lá tinha um monte de discos de musica iguais aquelas que eu ouvia. E eu lembrei dessa época. E lá também tinha uma cerveja geladinha. Dessas que abrem com a mão mesmo. Abri com a manga da blusa e dei um gole gostoso. Fazia tempo que eu não tomava uma cervejinha.