MORTO VIVO (Final)

Alice ficou espantada ao ver Luana entrar em casa acompanhada de Micaela. A expressão de ambas não era das melhores e sem maiores explicações, as meninas se trancaram no quarto de Luana. Pelo resto do dia as duas ficaram refugiadas no quarto, saindo apenas para ir ao banheiro. Apenas uma vez Luana saiu do quarto para ir até a cozinha pegar mantimentos o suficiente para o dia inteiro. Alice esperou alguma satisfação que não veio e ficou frustrada quando encostou o ouvido na porta e só escutou murmúrios. O que as garotas estavam aprontando? Kauê fizera o impossível, disse Alice para si mesma, ao conseguir unir as duas rivais.

O restante do dia Micaela e Luana esqueceram a inimizade para se dedicarem a Kauê. Luana tinha certeza que ele apareceria de madrugada tal qual fora com Micaela. E, quando isso acontecesse, as duas o levariam até a praia para que, enfim, o garoto encontrasse a paz que lhe fora tirada. Mesmo que aquilo lhe partisse o coração, Luana pegou a caixa de fotos que estava guardada no fundo do guarda–roupa e mostrou para Micaela. Por horas, elas ficaram admirando–as, tecendo comentários, algumas vezes rindo de lembranças, outras vezes chorando também. Um pouco antes das dez horas da noite, Micaela bocejou:

– Estou ficando com sono. Acho que vou dormir um pouquinho.

Luana confessou:

– Também estou cansada. Quem sabe dormimos um pouco? A madrugada vai ser longa.

– Sim, vamos fazer isto. Mas deixe a janela aberta. Se Kauê chegar, poderemos ouvir os passos dele.

Luana instalou um colchão ao lado da sua cama e Micaela se alojou ali, onde dormiu quase instantaneamente. Luana ainda ficou acordada por um tempo, olhando para o teto, sem poder acreditar no que estava acontecendo. Há uma semana apenas lembrou que estava rindo e se divertindo com Kauê na beira da praia, em uma noite estrelada.

Lágrimas vieram aos seus olhos. Ele havia dito para Micaela que havia pego a onda perfeita e então nada mais importava depois daquilo. Podia morrer, sua missão estava cumprida. Kauê tinha amado mais as ondas do que ela. Luana soluçou baixinho, com as mãos no rosto para não acordar Micaela. Durante o namoro sempre soubera que Kauê colocava seu amor pelo surfe em primeiro lugar na vida. Mas não esperara, jamais, que chegasse àquele ponto.

Ela abriu os olhos de repente e se deparou com uma sombra ao seu lado. Luana deixou escapar um gritinho e olhou rapidamente para Micaela, que dormia um sono pesado. A luminosidade da lua revelou Kauê sentado na poltrona favorita de Luana. Mesmo na penumbra Luana pôde ver os olhos tristes do seu namorado. Lágrimas escorreram pelo rosto dela.

– Kauê... – Luana saltou da cama e caminhou até ele, tensa. – Meu Deus, o que fizeram com você?

Luana se ajoelhou frente a ele, ignorando o cheiro ruim que vinha dos ferimentos dele. Kauê baixou a cabeça e ficou sem falar por alguns segundos. Depois os olhos sem brilho dele fitaram os da namorada. Ele mostrou os machucados. Areia da praia e terra da sepultura se misturavam e caíam no chão do quarto de Luana.

– Veja – a expressão de Kauê era terrível. Luana nunca o vira, em vida, com um olhar tão devastado. – Olhe o que eu me tornei. Não sei se sou um zumbi. Não sei que coisa eu sou. Por que me deixaram ficar deste jeito?

A conversa era feita aos sussurros.

– Eu sinto uma fome enorme, Luana – ele respirou fundo. – Eu poderia devorar cada pedaço seu se eu quisesse. Não sei até quando vou conseguir me controlar. – Kauê enxergou Micaela dormindo ao lado da cama da namorada. – É ela?

Luana se voltou para trás e confirmou que Micaela ainda dormia.

– Sim, ela está arrasada com tudo o que aconteceu.

Kauê recostou a cabeça no encosto da poltrona. Parecia estar em grande sofrimento.

– Não aguento mais. Luana, me ajude. Estou com fome. Tenho sede. Eu… – Kauê novamente olhou para Micaela. – Eu preciso sair daqui antes que eu devore a Micaela.

– Kauê, por favor, se acalme. Há uma maneira de acabarmos com esta maldição.

Um brilho rápido passou pelos olhos de Kauê.

– O que eu preciso fazer?

– Voltar ao mar – Luana pegou um lenço que estava sobre a mesa e tentou, inutilmente, limpar as feridas dele. – Entre na água e deixe que as ondas o levem novamente. – ela soluçou um pouco mais alto. – E então você estará livre para sempre.

Um ruído atrás de Luana interrompeu a conversa entre os dois. Kauê olhou para cima e se deparou com Micaela.

– Kauê... – Micaela se aproximou devagarzinho dele, um pouco receosa. Esticou uma das mãos para lhe fazer um carinho, mas Kauê se afastou, encarando–a, irado. – Não me odeie, por favor – ela implorou, aos prantos.

– Micaela, chore mais baixo! – ralhou Luana. – Minha mãe pode escutar!

Kauê falou em um tom de voz não tão baixo assim:

– Olhe o que você fez comigo – Kauê mostrou os braços e as pernas. Mesmo na penumbra era possível ver o quanto o corpo do rapaz estava virado em lesões terríveis. – Nenhuma de vocês merecia me ver deste jeito. – ele cobriu os olhos outra vez e ambas as meninas pensaram que o rapaz fosse chorar. – Estou com fome – ele repetiu. – Posso comer cada pedacinho de vocês em questão de minutos.

Micaela estremeceu e olhou para Luana que segurou firme uma das mãos dele. Disse:

– Vamos até o mar, Kauê. Agora. Vamos acabar de vez com seu sofrimento e o nosso.

Kauê levantou com alguma dificuldade e, de cabeça baixa, foi conduzido para fora do quarto. Em silêncio, o trio saiu da casa e ganhou a noite. Era cerca de duas horas da manhã.

A cidade estava vazia. O sol estrelado iluminava os três que seguiam em silêncio em direção ao mar. Luana segurava com delicadeza a mão de Kauê que fez todo o percurso sem dizer nenhuma palavra sequer. Micaela seguia ao lado e por várias vezes tentou entabular algum assunto com ele. Mas suas tentativas não tiveram qualquer sucesso. Kauê se sentia fraco, praticamente se arrastando ao lado das duas meninas. Em dado momento, quando o mar já aparecia belo e revolto frente a eles, as forças do rapaz faltaram de súbito, e ele caiu de joelhos no chão.

Micaela olhou para Luana, assustada, e se agachou para tentar ajudá–lo.

– Kauê, levante! Falta bem pouco agora.

Kauê soltou a mão de Luana com brusquidão e agarrou fortemente o braço de Micaela.

– Kauê! – quase gritou a garota, controlando o pavor para não o deixar mais irado. – Estou tentando lhe ajudar!

Luana se arrepiou quando viu Kauê arreganhando os dentes. Apavorada, ela também se agachou e ficou na altura dos olhos dele.

– Meu amor, o que é isto? Largue a Micaela! Estamos tão próximos! Por favor, pare, Kauê!

– Não faz mal, Luana – Micaela disse, de olhos fechados, como se estivesse esperando o bote. – Não me importo. Eu tenho que pagar pelo que fiz.

Kauê soltou o braço de Micaela com tanta força que a jovem caiu no chão com um pequeno grito. Depois, como se estivesse em pânico, Kauê saiu em disparada em direção ao mar. Micaela e Luana se entreolharam por alguns momentos, atônitas. Luana conseguiu murmurar ao mesmo tempo que uma bola se formava bem no meio do peito.

– Deixe ele ir, Micaela. Kauê precisa descansar agora.

O vento agitava os cabelos de Micaela enquanto ela observava seu amor chegar na beira da praia e, em seguida, avançar entre as ondas, determinado e sem medo. Um pouco antes de Kauê desaparecer engolido por uma grande onda, Micaela, sem dizer uma palavra, correu também na direção do rapaz. Luana não fez nada. Apenas observou Micaela cumprir o percurso até o mar para, segundos depois, sumir também.

Luana sentou na areia. Se sentia oca por dentro, todo o seu ser era um vazio só. Algumas nuvens que cobriam a lua se afastaram e estrelas surgiram. Ela respirou fundo. Estava tudo resolvido agora. Dentro em pouco o mar traria de volta os corpos de Kauê e Micaela e seria conveniente que ela não estivesse ali para assistir aquilo. Talvez fosse melhor voltar para casa e implorar a Deus que ambos pudessem, a partir daquele momento, conseguir pelo menos um mínimo de paz.

Ela levantou devagar, removeu a areia do corpo e voltou para casa. Vida que segue.

Patrícia da Fonseca
Enviado por Patrícia da Fonseca em 16/11/2017
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