MEU AMOR MISTERIOSO - Parte 5

Era sábado e dia de missa. O sol voltara e por volta das três horas da tarde Dona Iara e vô Ricardo começaram a se aprontar para irem até a igreja.

– Não quer vir conosco, Clarinha? – perguntou a avó prendendo os brincos frente ao espelho.

– Não, vó. Não gosto muito de missas.

– Tem certeza? Nossa igreja está tão bonita...

– Trouxe um livro de casa. Vou ficar lendo, se você não se importar.

– Claro que não me importo.

Não demorou muito o casal partiu. Clarissa ficou na janela até vê-los dobrar a esquina, mal segurando sua ansiedade. Assim que os perdeu de vista, correu até o quintal, pegou a bicicleta, a chave de casa e abriu a porta. Quando montou a bicicleta teve que respirar fundo para se acalmar. Era tão tímida que o coração parecia explodir no peito. Mas não podia deixar aquela chance passar. Se conseguisse ver Dani faria das tripas coração para tentar falar com ele. Somente esperava que o rapaz estivesse sozinho.

O caminho para o bairro isolado não foi difícil de encontrar, embora tivesse errado o trajeto atrasando sua chegada. Porém, assim que se viu na rua ladeada de árvores sentiu um misto de alívio e pressão no peito. Agora não havia mais retorno. E nem se perdoaria caso o medo fosse maior e a empurrasse de volta para casa. Pedalando o mais rápido que podia, Clarissa conduziu a bicicleta até a hospedaria. Tal qual o dia anterior, o caminho de pedras estava vazio atrás dos portões escancarados.

Por alguns instantes Clarissa ficou parada olhando para o lugar. Tudo parecia tão deserto. Será que havia realmente uma casa lá em cima? As árvores não a deixavam ver nada. Bem, não podia ficar parada ali para sempre. As horas voavam e a avó ficaria preocupada se chegasse em casa e não encontrasse a neta.

A subida íngreme Clarissa fez à pé conduzindo a bicicleta ao seu lado. À medida que avançava, ela pôde visualizar uma construção de dois andares, de tijolos, surgindo entre as árvores. Era espetacular. A casa era sólida e tinha um lindo jardim na frente que era possível ser visto ainda na subida. Um pouco antes de chegar lá em cima, escutou vozes.

Clarissa parou de repente quase no topo. O coração acelerou outra vez. Não estava sozinha. Havia pessoas hospedadas por lá. Mais lentamente, Clarissa terminou de subir, ansiosa pelo que encontraria. O som de vozes aumentou. Parecia ser de crianças.

Duas lindas menininhas louras brincavam no jardim. Os balanços voavam altos e os cabelos de ambas se misturavam ao vento. A visão era tão bonita que Clarissa se deixou ficar parada, admirando-as. Elas riam e gritavam e não havia ninguém por perto cuidando delas. Se havia crianças era sinal que também em algum lugar deveria haver adultos. Os raios de sol passavam entre as árvores iluminando o jardim. Uma brisa sacudiu o ar e fez cair uma chuva de folhas secas de uma árvore.

Ela deixou a bicicleta encostada em uma árvore e deu alguns passos em direção às meninas. Só então foi vista por elas. Os balanços foram parando serenamente até que as crianças ficaram com os pés totalmente no chão. Ambas as meninas encararam Clarissa como se ela fosse uma intrusa.

– Boa tarde, meninas! – ela tentou ser simpática para não as assustar. – Onde estão os pais de vocês?

As duas permaneceram em silêncio e se entreolharam. Clarissa se sentiu incomodada com a situação.

– Vocês vivem aqui?

De repente, uma delas saltou do balanço e correu na direção contrária seguida da outra garotinha. Clarissa chegou a dar alguns passos para frente como se quisesse ir atrás das meninas fujonas. Depois desistiu. Se algum adulto visse a cena poderia acusá-la de estar ameaçando as pequenas.

Novamente Clarissa se viu sozinha naquele lugar tão bonito, solitário e porque não dizer, estranho. Não pretendia ir embora ainda, mas faltava coragem para ver o que mais havia por lá. Ela respirou fundo. Ora, não estava fazendo nada de mal. Se alguém aparecesse iria dizer que estava conhecendo o lugar. Afinal, os portões estavam abertos e não havia placa dizendo que era proibida a visitação.

Clarissa seguiu pelo jardim passando pelos balanços. Mais adiante havia um chafariz e alguns bancos. Todos estavam vazios, exceto um. Havia alguém sentado de costas para ela. A pessoa mantinha a cabeça branca baixa, como se estivesse lendo um livro ou olhando para as próprias mãos. Clarissa decidiu ir até lá se apresentar.

Clarissa percebeu que era uma senhora. Ainda não podia ver-lhe o rosto e a última coisa que a jovem queria era pregar um susto nela. Por isto ela caminhou, cuidadosamente, fazendo barulho com os tênis de propósito sobre as folhas secas para chamar a atenção. Mesmo assim, a velha senhora continuou na mesma posição. Talvez fosse surda, pensou Clarissa.

Lentamente e respirando fundo com medo de ser mal interpretada, Clarissa deu a volta no banco e parou bem perto da mulher. Uma senhora fazendo croché, hábil com suas agulhas, não tirava os olhos do seu trabalho. Ela trajava um belo vestido azul com algumas rendas. As mangas quase cobriam as mãos. Estava muito concentrada no que fazia.

– Boa tarde...

Clarissa esperou que a senhora olhasse para cima. No entanto, ela apenas continuou fazendo seu crochê.

– Senhora... posso sentar aqui?

Não houve resposta e Clarissa sentou assim mesmo. Pela posição do sol ela se deu conta que o tempo estava passando muito rápido e era preciso resolver o assunto de uma vez. Ou sua avó ficaria muito brava.

– A senhora está hospedada aqui?

Um perfume de lavanda tomou conta do ar e contribuiu para que Clarissa se acalmasse um pouco. A mulher não respondeu. Sequer levantou os olhos para ela.

– Eu… estou procurando um rapaz. Acho que ele está parando aqui. É loiro, sabe? E muito bonito.

As agulhas continuavam a fazer rapidamente seu trabalho. A velha senhora não levantou a cabeça, não suspirou, não tomou conhecimento de Clarissa. Em compensação, o crochê se desenvolvia bem.

– As meninas são suas netas? A senhora está fazendo para elas? Está muito bonito, viu?

Silêncio. Clarissa, desconfortável, olhou para os lados. Não havia mais ninguém por perto. As vozes das crianças não eram mais ouvidas. No ar, somente o aroma agradável da lavanda.

Ela fechou os olhos procurando inspiração. Será que não era melhor ir mesmo embora?

Uma música suave. Foi assim que tudo começou. Clarissa ainda estava de olhos fechados quando os acordes de um piano tomaram conta do ar. No início ela achou que fosse sua imaginação, pois sua impressão é que estava em um lugar no mundo dos sonhos. Mas, aos poucos, as notas do piano foram se fazendo mais nítidas e Clarissa abriu os olhos. A brisa levava a música diretamente a ela. Clarissa ficou em pé. Precisava saber de onde vinha.

Ela olhou para os lados. A poucos metros se erguia a casa. Uma das janelas estava aberta e o som parecia vir dali. Clarissa se dirigiu até lá, curiosa. Alguém tocava piano no meio da tarde. Que lugar era aquele, tão mágico?

Clarissa, em silêncio, chegou até a janela e espiou para dentro. A primeira coisa que viu foi um piano de cauda ao fundo de um salão quase vazio. Os acordes ficaram mais altos no exato momento que ela se posicionou melhor no parapeito. Um homem tocava o piano, suavemente, concentrado, de olhos fechados.

Ela deixou escapar um gemido baixo, de susto e admiração ao mesmo tempo. Dani era o pianista. Era das suas mãos que vinha a música que a encantava. O rapaz não se voltou nenhuma vez para o lado da janela onde Clarissa estava. Era como se para ele nada mais no mundo existisse.

Para Clarissa o sentimento era o mesmo. O mundo desapareceu. A música que Dani tocava a deixara maravilhada. O impacto foi tão grande que Clarissa perdeu a noção do tempo. Ela não queria que Dani parasse de tocar, mas desejava que ele tomasse conhecimento da sua existência. Não podia interrompê-lo. Isto quebraria toda a magia. Aos poucos, as luzes no salão começaram a acender. Clarissa piscou, surpresa. Foi então que se deu conta que a primeira estrela no céu já havia surgido.

O susto foi tão grande que Clarissa deu dois passos para trás, tropeçou numa pedra e caiu sentada. A noite estava chegando e junto com ela veio o pavor de estar em um lugar completamente desconhecido. Ela olhou ao redor, atarantada. A velha senhora não estava mais sentada no banco, as crianças haviam desaparecido. Os balanços iam para cima e para baixo, sozinhos, sem quem ninguém estivesse sentado neles.

Clarissa se levantou limpando as mãos sujas de terra na calça. Lá dentro a música tocava como antes, mas a garota não tinha mais tempo a perder. Tensa com a perspectiva de a noite cair e se ver sozinha naquele lugar distante, Clarissa pegou a bicicleta. Desceu praticamente correndo o caminho das pedras ainda escutando o som da música que Dani tocava.

Já fora da hospedaria, Clarissa olhou para frente e percebeu que a rua contava com poucos postes de iluminação. O terror a atingiu em cheio. Não conhecia bem o lugar. Se dobrasse na esquina errada o risco de se perder era grande.

Por alguns instantes as pernas lhe faltaram e todo o encantamento que antes a envolvera ao escutar Dani tocando piano se dissolveu. Ela olhou para os lados. Não podia ficar ali parada, segurando a bicicleta, deixando o medo a dominar. A música ainda ressoava nos seus ouvidos quando Clarissa enfim começou a pedalar para sair de lá. Ela só não sabia se as notas que ainda escutava eram do piano de Dani ou apenas existiam na sua cabeça.

Patrícia da Fonseca
Enviado por Patrícia da Fonseca em 24/03/2018
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