Escuro

O homem mal via a hora de chegar em casa. Cansado, um pouco humilhado, refletia sobre até quando chegaria por aquelas horas da madrugada, andaria só por aquela rua silenciosa, triste como um cão que sente fome, as janelas das casas como olhos solenes a observá-lo caminhar. A Lua cheia brilhava por entre nuvens negras, aparecendo e reaparecendo, como que brincando enquanto subia e tornava-se mais clara. Mais um dia terminava pra ele começando pra maioria.

Quando chegou em sua parada, observou por alguns instantes o ônibus caindo aos pedaços que se afastava, lembrando de como aqueles que ainda desceriam e caminhariam até suas portas pareciam menos felizes do que ele. Pareciam não querer chegar em suas casas, não tinham nenhum tipo de expressão em seus rostos vazios além de cansaço e embriaguez. Diferente dele, que não via a hora de chegar em casa. Lar...

Cruzou os braços e caminhou apressado, o frio parecia açoitá-lo e a rua sem asfalto estava cheia de poças formadas pela chuva pouco antes, estava difícil caminhar sem molhar os sapatos e encharcar as meias, acentuando a vontade de um banho morno mesmo que fosse com vasilha e balde. Logo após, tomaria um café e tentaria ler um pouco sob a luz de uma vela até sentir sono, mas não era por achar romântico ou confortável aos seus olhos que faria dessa forma, era por que àquela hora ligar as lâmpadas era como pedir pra que lhe fizessem uma visita indesejada. Seres da noite. Nada chama mais atenção no escuro do que a luz. E ele sabia disso. A pequena ferida atrás da orelha ainda doía...

Já caminhava há pouco mais de três minutos e mentalmente calculava que naquela velocidade e sob aquela sinistra impressão de estar sendo observado, chegaria em mais dois minutos. Olhou a hora, 3:45. Havia no caminho somente dois postes com lâmpadas que emitiam uma claridade lúgubre, vistos de longe pareciam formar ilhotas de luz na escuridão. Devido a distância entre eles, o homem já sabia como precisar o tempo de sua travessia pela rua que a tanto se acostumara, contava os passos. As casas que em sua maioria não possuíam portões, apenas portas que davam diretamente para a rua, ficavam à sua esquerda, enquanto à sua direita havia apenas um imenso descampado repleto de lixo, com as luzes distante da rua mais próxima ao fundo. O mau cheiro que exalava do terreno impregnava o ar de maneira asfixiante para um visitante esporádico, e aumentava principalmente quando chovia. Mas ele já estava acostumado. Por trás de sua casa e acompanhando todos os pequenos quintais de todas as casas da rua, um enorme muro havia sido construído por uma empreiteira e cercava um imenso terreno que provavelmente seria um habitacional um dia, ou qualquer coisa que cheirasse a dinheiro. Em especial o de pobres. O muro estava repleto de pichações que falavam sobre sistema, mas o homem não entendia bem do que se tratava.

O silêncio, o escuro, a violência, já o haviam assustado mais no começo, há muito tempo, agora ele apenas olhava firme pra o chão e pensava em seu banho merecido. O cheiro de gordura ia sair de seu corpo pra mais tarde no mesmo dia voltar a impregná-lo. Era seu trabalho, preparar refeições para os que tinham motivos para comemorar, e depois torcer pra que as sobras fossem muitas para que ele se satisfizesse. Ele ouvia apenas as gargalhadas no salão, enquanto não lembrava sequer o que era um sorriso. Mas precisava tirar aquele cheiro, tinha mais medo dele do que do escuro. Sabia bem disso. Tinha seus motivos.

Uma ratazana cruzou seu caminho saindo do terreno baldio, fazendo com que ele se assustasse pisoteando uma poça e respingando lama no livro que tinha nas mãos. “Vai-te embora praga!”. O homem amaldiçoou o bicho, passou o livro na manga do casaco e se pôs a procurar as chaves no bolso de maneira apressada, não estava com saco para brincadeiras noturnas. Queria chegar logo em casa. Lá ele poderia sentir a segurança que era equivalente às asas da mãe a proteger sua cria indefesa. A casa era sua única família. Lembrou dos pais, lembrou da última vez em que os vira entrando num carro e depois se lembrou dos dois caixões. Poderiam ter sido três... A casa era tudo o que lhe haviam deixado antes de partirem. Mesmo pequena, mal o cabia, era capaz de acolher não só seu corpo cansado ao fim do dia como também podia sussurrar cantigas de sua infância, podia fazer com que ele revivesse suas memórias mais profundas como um toque de magia pra um mundo sem perspectivas otimistas. Um lugar pra se esconder. Se esconder dele mesmo.

O segundo poste de iluminação ficava a alguns metros do portão de madeira da entrada de sua casa. Sua casa. Estava em seu nome. Ele não cansava de repetir pra si mesmo que ela era sua. Repetia para si que sempre haveria um canto pra se abrigar, que o frio da incerteza não o mataria enquanto a casa o estivesse protegendo. Morreria de fome dentro dela. A casa o fazia lembrar que um dia já havia sido feliz. Sorriu e abanou a cabeça para espantar aquelas lembranças, o inconformismo era uma tortura diária. Desejou morrer em paz. Vinha desejando isso ultimamente. A casa estava sempre vazia de companhias.

A luz vinda do poste oscilou por alguns segundos e o homem olhou pra o alto incrédulo, imaginando que definitivamente aquela noite estava sendo diferente demais de todas as outras que sempre foram iguais. “Mas o que é isso? Vixe... Deus é mais...” Até um piscar de lâmpada parecia algo propositalmente articulado, mas o que mais estava o incomodando era pensar na ratazana. Ele pensou que era um bicho maior, um cão ou um gato, por isso havia se assustado. Não era covarde, nunca fora. Pelo menos era no que ele queria acreditar, não queria admitir que quis gritar porque tinha visto um rato. Ratos... Sentiu um arrepio. Coçou a ferida atrás da orelha. Então as luzes dos dois postes se apagaram simultaneamente e ele grunhiu um insulto abafado. A escuridão tornou-se pesada e a Lua se escondeu por trás de uma enorme nuvem negra. O que estava acontecendo? Algo resolveu mexer com seus instintos de sobrevivente no breu da noite? Fosse o que fosse o melhor mesmo seria entrar logo antes que seus ouvidos imaginassem um uivo ou quem sabe um arrastar de correntes... sua mente havia aberto uma pequena brecha, qualquer coisa poderia passar. Quanta tolice. Era a famosa mente vazia.

Como sempre, ninguém estava a o esperar, e quando o pequeno portão se abriu, ele imediatamente tirou do bolso um isqueiro e o acendeu. O escuro estava de certa forma o incomodando e a luz o ajudaria a pensar com clareza literalmente, espantaria não só as impressões da travessia pela rua deserta como também os pensamentos que o invadiam por ter vivido mais um dia contra a sua vontade, não que não quisesse viver, pelo contrário, gostaria de viver de outra maneira. Seus planos sempre se renovavam quando ele adentrava ao seu refúgio. Ele ainda tinha planos. A luz fraca banhou o escuro da pequena área entre o portão e a porta e ele foi diretamente à fechadura olhando para trás acima do muro com a insistente sensação de que algo o observara o tempo todo. A Lua continuava escondida. Mesmo que houvesse feito o trajeto naquele horário centenas de vezes nos últimos anos, dessa vez ele dormiria com a impressão de que coisas além sempre podiam estar à espreita, querendo ele ou não. Na ausência da fé, o medo era como um cego guiando outro.

A porta da casa se abriu e ele intuitivamente largou a bolsa pesada na direção onde sabia que sua poltrona estava, mesmo no escuro sabia se situar. Antes que seus dedos deslizassem pela parede da sala à procura de mais luz, ouviu o baque surdo da bolsa caindo no chão e se surpreendeu por ter errado o alvo. Ele nunca errou. Encontrou o interruptor da sala e o acionou porém não houve luz. Pensou em voz alta que aquilo só podia ser uma piada, a lâmpada provavelmente havia queimado, ou quem sabe a energia estivesse fraca, ou tivesse sido interrompida. Andou alguns passos sem usar o isqueiro pois sabia que pendurado em frente à porta que dava pra o pequeno quintal encontraria um outro interruptor, agora o da segunda e única lâmpada restante. Desviou do lugar onde sabia ter deixado um balde aparando uma goteira, e às cegas, mais uma vez estranhou o pesado escuro. Encontrou o que procurava e mais uma vez não houve luz.

Mas ele conhecia bem sua casa, como a palma de sua mão. Não havia cômodos, apenas um vão que era sua sala, quarto e cozinha e um pequeno banheiro sem descarga nos fundos dos quatro metros do seu mundo. Quase nenhum móvel. Sabia que as velas estavam na última gaveta da cômoda, que também servia como mesa, e deu dois passos à esquerda tateando devagar esperando encontrá-la. Foi então que seu coração acelerou descompassadamente. Não havia cômoda. Com as mãos tremendo remexeu os bolsos à procura do isqueiro, a respiração ofegante podia ser ouvida pelos vizinhos. Quando finalmente o encontrou, suas mãos trêmulas deixaram com que ele caísse e o homem se abaixou de maneira nervosa cedendo ao seu aparente desespero porque sabia que se estendesse a mão, desse dois passos à esquerda e não encontrasse a cama, teria certeza de que havia sido tragicamente roubado na sua ausência. Era comum acontecer coisas assim por ali. E ele não a encontrou.

A luz do isqueiro fez sua parte, mas os olhos do homem se recusaram a aceitar o que viam. Não havia nada. Mas não se tratava da ausência dos poucos móveis, não, era algo muito mais profundo e aterrador; nem mesmo as paredes, laterais e a dos fundos, estavam lá. O interruptor pairava no ar. O fio esticado podia ser visto, porém o teto da casa onde ele deveria estar fixado não mais existia, apenas um céu enegrecido por nuvens carregadas foi percebido de maneira inesperada. Olhou para baixo e viu que ao invés do piso de cimento havia um chão semelhante ao da rua, com pequenas poças ao redor. Era como estar do lado de fora. Somente a parede da frente permanecia intocada.

O homem em completo estado de choque ficou imóvel, a boca aberta, os olhos arregalados, como se esperasse acordar de um pesadelo a qualquer instante. “Me... me... me... meu Deus o que é isso... Sangue de Cristo!”. Rompeu em lágrimas e soluços descontrolados, mas não conseguiu gritar, o pânico calou sua voz e o fez instintivamente recuar em direção a porta tropeçando em seus próprios pés, apagando e reacendendo o isqueiro que parecia querer pular de suas mãos. Abriu a porta e saltou na direção do portão ignorando a urina que escorria quente pela calça. Um medo inconcebível enevoava sua mente e ele agia como um animal encurralado, não estava conseguindo abrir o portão de tanto que seu corpo tremia. Aquilo jamais poderia ser real.

Abriu o portão e correu desesperado para a rua mas a escuridão parecia ter consistência, grudou em sua pele e ele pôde sentir como que um toque cadavérico a acaricia-lo. Estava arrepiado da cabeça aos pés. Pensou que havia enlouquecido, não havia bebido naquela noite, não naquela, não encontrava sequer um rastro de realidade pra o que estava acontecendo. Fechou os olhos e começou a rezar, em total agonia, da maneira como sua vó um dia o ensinara quando ainda era garoto “ Anjo meu, anjo meu... Me livre de todo mal pelo amor de Deus!”. Iria desmaiar a qualquer momento. Na rua não se podia ver absolutamente nada, as luzes da rua mais próxima e as casas vizinhas haviam sumido no breu. Um ruído contínuo similar a risadas abafadas à sua frente o fez cambalear de volta a entrada da casa e ele percebeu pequeninos pontos brilhantes aparecerem e desaparecerem na escuridão que pareceu engolir o mundo. Os pontinhos foram permanecendo acesos, de dois em dois, eram esverdeados, bem próximos um dos outros e como se fossem vaga-lumes voando em conjunto, começaram a se aproximar. Pareciam se empilhar.

O homem gritou. Gritou o mais alto e mais desesperadamente que conseguiu, pensou que dessa forma algum vizinho pudesse o socorrer daquela loucura inimaginável em que a realidade havia mergulhado. “Me ajudem! Socorro! Socorro!”. As pequeninas luzes se amontoaram e foi então que ele pôde perceber do que se tratavam; eram olhos. Milhares de pares deles, olhos de ratos num mar de trevas... Estavam amontoados e formavam a imagem de um rato gigante e espectral, uma criatura que só podia ter sido concebida nas entranhas da insanidade...

Ratos...

Tomado pelo pânico ele voltou para dentro, esquecendo momentaneamente da terrível experiência vivida ao entrar na casa envolta em negro, e quando retornou ao seu interior, trancou o portão apressadamente e voltou a acender o isqueiro, queimando os dedos, gemendo e balbuciando coisas incompreensíveis, o choque havia sido catastrófico. Olhou com um pouco mais de calma, ou um com um pouco menos de terror, ao seu redor. Respirou lenta e profundamente, e controlou ao máximo a crescente sensação de que assim como uma vela ao vento, estava lutando para não apagar.

Uma leve claridade pareceu dar um tom cinzento às sombras que dominavam o interior do que antes fora sua casa, e ele percebeu que se tratava do luar. Como não havia telhado, a lua agora era testemunha daquele sonho macabro. Não precisou usar o isqueiro pra perceber que à sua frente se encontrava um descampado que parecia idêntico ao existente entre a rua em que morava e a mais próxima, só que era impossível enxergar o que poderia estar onde antes era seu quintal. Sabia que nos fundos da pequena casa o muro da empreiteira era a única visão possível, mas de onde estava apenas conseguia ver o espaço em um pequeno raio. Era como se apenas o muro e a parede da frente da casa estivessem erguidos num imenso terreno abandonado mergulhado nas sombras. Fechou os olhos e os abriu. Ainda estava acontecendo. Seu corpo escorregou encostado na parede e o homem não sabia sequer o que pensar, respirou a escuridão e sentiu que o ar lhe faltava.

Continuou a gritar pedindo socorro. Atrás dele, o ruído de vozes abafadas parecia crescer dos confins dos seus medos, ouvia o som de coisas que caiam, pareciam frutas maduras caindo do pé. Olhou pela fresta da fechadura e apertou a mandíbula com força, sentindo mais uma vez um calor molhado brotando entre suas pernas. Os ratos estavam pulando o muro, seus olhos esverdeados piscavam e eles pareciam se ajudar na tarefa. Pulavam e se amontoavam. O homem se afastou da porta olhando aterrorizado para onde antes ficavam as paredes laterais. O luar ganhou força e seus olhos um pouco mais de confiança. O medo atiçou seu senso de sobrevivente e ele só pensava que não morreria louco. Não. Queria morrer em paz... Encheu os pulmões com o ar escuro e gritou como se fosse seu último esforço “O que quer que eu faça?!”

O ruído da queda dos ratos a pular o muro cessou. O homem sentiu que havia sido ouvido. Restava saber por quem. Olhou para o cenário obscuro que se projetava à sua frente e percebeu ao longe duas pequeninas luzes flutuando próximas, uma terceira luz, um pouco mais avermelhada, ele achou, estava um pouco abaixo. A Lua pareceu ouvir o chamado inaudível do incógnito e brilhou com a força de um sol noturno, clareando o campo que o homem se esforçava por enxergar. E ele tremeu com o que viu. Ele tremeu como um porco que sabe que vai ser abatido, só que não teve forças pra deixar que seu corpo desfalecesse.

Era um homem. Parecia um homem. Mas não um homem comum. Seus olhos ardiam uma chama azul- esverdeada, na sua mão havia um cigarro. Não era possível ver seu corpo, ele era o próprio escuro, as três luzes que o homem vira eram seus olhos e a ponta do seu cigarro...

As três luzes permaneceram lá, paradas a poucos metros do homem que permanecia imóvel, paralisado pelo veneno que é o medo do desconhecido. Mais uma vez fechou os olhos, e quando os abriu o homem-sombra estava a menos de um metro dele, soltou uma baforada diretamente em seu rosto, fazendo com que ele caísse de costas diante do susto. Bateu com a cabeça no chão e quando tentou respirar seus pulmões se recusaram a trabalhar, abriu a boca como um peixe agonizante, e quando finalmente seu peito despertou do choque, ele inalou a fumaça de uma outra baforada. Tossiu compulsivamente, e após segundos que pareceram eternos conseguiu restabelecer o controle de sua respiração. Com a luz da Lua iluminando o descampado, o homem observou o ser que estava parado a observá-lo. Seu corpo era a pura escuridão... percebia-se seus membros pela ausência total de qualquer brilho, era como se seu corpo pudesse apagar o que podia ser visto... Era difícil para o homem compreender. Ele apenas sabia que não era algo humano. Era... maligno... ou divino... Seus olhos estavam brilhando similares a um par de lanternas emitindo suas luzes numa potência mínima, apenas acesos para que pudéssemos perceber que se tratava de um par de olhos. O movimento que ele fazia ao levar o cigarro à boca, um cigarro que parecia ser de palha, fazia com que a mente concluísse quase que imediatamente, sem que fosse possível entender, que se tratava de um homem. Mas não um homem...

“Sejamos breves, o dia já vai nascer”, a figura espectral falou com seus olhos brilhantes apontados para o homem que estava deitado no chão.

“Me deixe em paz! Suma! Me deixe ir! Não! Não! Ah!”, o homem gritava enquanto tapava os ouvidos com as duas mãos. O irracional embaralhava seus pensamentos e ele respondia como se fosse uma desesperada criança que está sendo amarrada por um desconhecido.

Conhecia aquela voz...

“Nunca imaginou um fim como esse, não é? Todo mijado por causa de alguns ratos. Homens fazem parte da dieta alimentar dos ratos? Surpreendente, fascinante! E pensar que isso nem foi cogitado por El... deixa pra lá!”, a sombra fantasmagórica falou entonando as palavras com visível ironia. “Não se perguntou ainda por que os ratos ainda não arrodearam a parede ao qual você está firmemente se apegando? Hum? Moleque...”, a voz da sombra que o homem ouvia falar soou para ele idêntica ao som da voz de alguém que um dia marcara sua vida, de maneira inesquecível, irremediável... Ele sentiu como se seu corpo tivesse sido arremessado algumas décadas no passado, quando ele ouviu o som daquela voz dizer pra ele a primeira vez, de tantas outras que viriam depois “Você fede a queijo podre moleque!”. Era a voz de seu tio, irmão de sua mãe, morta num acidente envolvendo um caminhão, o carro em que estava com o marido e mais uma moto. Os pais do homem que ali estava prostrado com a cara próxima a uma poça de lama, morreram esmagados de tal maneira que os caixões não puderam ser abertos no velório. Ele então se lembrou, não, muito mais que isso, reviveu com intensidade toda uma fase de sua vida que definiu seu destino vazio, e que agora o fazia passar pela situação mais abissal que ele poderia imaginar. Lembrou-se de quando ainda criança experimentara o sabor do inferno sob a custódia do tio alcóolatra, ele era o único familiar disponível, os abusos físicos e morais, e em especial da fixação que ele sentia, do prazer inegável que o tio experimentava depois de surrá-lo por qualquer motivo, ao olhar pra ele depois de horas da tortura e dizer como se estivesse lhe pedindo desculpas “Você fede a queijo podre moleque... Você atrai ratos! Odeio ratos! É pra o seu bem... e pra o meu também...”. Estava tudo muito claro... Insanidade ou epifania?

O homem estava parado olhando fixamente nos olhos da sombra, o brilho deles refletia no olhar atônito do homem. Viu quando ela ergueu os braços e tragou profundamente o cigarro que parecia não diminuir com o trago dado, seus olhos acenderam um pouco mais acompanhando a queima da brasa do cigarro.

Ratos... O homem lembrou de tudo com perfeita nitidez. E compreendeu parcialmente o que estava ou o que poderia estar lhe acontecendo. Caso não estivesse louco. Quando pensou em falar algo, seus pensamentos o impediram, e ao mesmo tempo em que as lembranças se encaixavam como num filme perfeito e fiel ao livro, relembrou palavras de seu “amado” tio e sentiu o ódio brotar; “Não quero rato na minha casa, seu pivete fedorento do caralho! Você a partir de hoje dorme do lado de fora entendeu? Você tá entendeno? Eu num sou seu pai não!”, e puxou-lhe a orelha com força, torcendo-a e deixando-a dormente. “Se um dia você tiver uma casa, o que eu acho difícil, seu nojento, saiba que os rato vão ficar ao redor da sua casa imunda. Tomara que ela seja boa, ou esse teu fedor vai atrair os rato e eles vão fazer um banquete com tuas tripas pôdi, seu fresco mimado!”, o empurrou pra fora de casa, fazendo o cair pelos degraus do quintal em cima de restos de construção que o tio guardava em casa. O tio costumava ser pedreiro quando não estava bêbado e pedreiros sempre precisam de algumas sobras de serviços realizados. Nunca se sabe pra que. Naquela noite, o garoto que agora era um homem velho e solitário, sonhou que andava por uma área repleta de lixo por todos os lados, sentia que fazia dias que perambulava pelo lixão com cheiro de carniça. O garoto sentia um sono profundo e achou um travesseiro saindo de uma das sacolas de lixo. Deitou com a cabeça na sacola e adormeceu dentro de seu sonho. Acordou com a sensação de agulhas em brasa penetrando sua carne por toda a extensão do seu corpo, e quando abriu os olhos ratos o envolviam num manto cinza em movimento e destroçavam sua carne. Despertou no frio da madrugada jogado sobre o entulho no quintal da casa do tio e chorou baixo com medo de apanhar mais. A tristeza do garoto se acentuou e se tornou um drama quando ele percebeu uma ferida diferente na batata da sua perna; era uma mordida. Sim. Uma pequena mordida que parecia ter sido feita por um animal pequeno... Não podia ser... E vieram outras... outras... E agora a ferida atrás da orelha...

Quando soube da propriedade que pertencia aos pais por um primo mais velho que sabia de seu drama e ouvira seus pais mencionarem o fato em uma conversa às escondidas, um barraco que ficava numa cidade a quilômetros de distância do calabouço em que estava vivendo, fugiu de casa e foi morar só, um garoto, fazendo coisas das piores pra poder ficar vivo. Não havia ninguém que se importasse com ele, e ele precisava ficar vivo. Vivo por fora, apenas. Por dentro ele sabia que já não era o mesmo.

“Compreensão é tudo filho. Essa é a sua hora de brilhar. Eu sei que ainda tem planos. Se importa de me responder a pergunta que lhe fiz? Por que os ratos não dão a volta na parede? Por que estão amontoados aos milhões atrás dessa porta a qual está encostado, salivando e mordendo uns aos outros?”, a sombra falou e a voz ainda era a voz de seu tio.

“Seu maldito! Demônio! Desgraçado! Me deixe em paz... Por favor...”, o homem chorava, “Não vê que já sofri demais?”, o ódio que sentia do tio fez com que seus instintos se ampliassem, o medo provocou-lhe zombeteiro.

“Complexo de vítima. É o que tem. Sua casa me parece segura filho, mas eu tenho uma proposta pra você. Andei pensando, dizem que nós nunca fazemos nada por ninguém, e olha só que engraçado, entre milhares de almas vagantes eu me compadeci da sua! O rato que você amaldiçoou a caminho de casa reconheceu você. Um deles já havia te mordido uma vez num passado não tão distante... Contou pra todos os outros que você tinha um sabor peculiar, que agradava o paladar deles. Queijo, queijo velho. Isso me pareceu fascinante! Eu bem que achava!”, dessa vez a sombra apagou o olhar e por alguns segundos apenas a brasa do cigarro pairou na escuridão do descampado. A Lua havia se retirado de cena mas aguardava ansiosa pra reaparecer. Estava gostando do espetáculo.

“Maldito! Você está morto! Eu te odeio!”, o rancor e a mágoa o fizeram se levantar e encarar, esquecendo-se do medo, a sombra que lançava fumaça negra de seu cigarro no ar.

“Como estava dizendo... como dizem que Nós não fazemos nada por vocês, eu te pergunto: você faria diferente? Se pudesse, obviamente. Faria? Seria?”, a sombra indagou o homem que voltou a escutar as risadinhas abafadas vindas de trás da porta trancada.

O homem olhou para os lados da parede que estava protegendo-o das criaturas e viu que se quisessem era só eles arrodearem e devorá-lo sem que houvesse saída. Mas eles não queriam. Estavam aguardando.

“Um dos grandes problemas do ser Homem, é que ele não costuma admitir, é assim que falam, não? Assumir, acho que também serve, vocês criam tantas formas de dizer. E é exatamente isso que vai te libertar filho. Se você se escondeu em sua casa por toda vida, temendo que um dia eles viessem te visitar, você deve assumir que tem medo... Assuma que pela vida que você viveu até exatamente agora, nesse exato instante, você não é mais que um pedaço fedorento de queijo velho. Mas talvez não seja... Vamos, assuma e abra a porta... Deixe-os entrar pra te libertar... Talvez seja a melhor escolha a se fazer, afinal, você ainda tem planos, não?”, ele olhou para o homem com a chama oscilando em seu olhar, parecia blefar.

De fato, o homem sabia que talvez aquela fosse a sua verdade. Vivia só e com medo. As realizações nunca vieram e ele cansara de esperar. Não tinha a vida, o emprego, as lembranças que sonhara, era infeliz e não faria ninguém feliz. Era órfão de sonhos. Desejou apenas morrer em paz.

“Eu sei o que quer ouvir...”, o homem falou e o som do lado de fora da porta cessou outra vez.

“Não, não sou eu quem quer ouvir, são eles...”, a sombra falou e apontou com seu braço negro para a porta. “Vamos, o dia está chegando. Você sabe o que deve fazer. Talvez ganhe algo em troca... Você deseja? Responda, seja verdadeiro, deixe que aconteça”, os olhos da coisa se acenderam e tornaram-se flamejantes.

“Eles querem que eu abra a porta... e eu abrirei... abrirei porque quero paz... eu não aguento mais...”, ouviu-se um som de maçaneta sendo utilizada. Os ratos desmoronaram sobre a porta. Milhares. O corpo do homem não mais podia ser visto e por alguns instantes ele pôde ouvir a sombra falar enquanto agulhas lhe perfuravam outra vez, dessa vez com a realidade aparentemente do lado delas. Uma dor lancinante o envolveu num abraço mortal, e ele ouvia o som de risadas dentro de sua cabeça. Ele ainda olhava para o homem-sombra esperando algo, e ele se aproximou sussurrando...

“O escuro assusta... mas se você parar pra perceber, com sensatez, se olhar no fundo dos meus olhos... verá o que guardo, verá o que aprisiono... Parabéns pela decisão”, nesse instante os olhos da figura se acenderam e em segundos se tornaram uma explosão de luz que transformou toda a escuridão numa claridade fluorescente onde não se podia enxergar nada, era a total ausência do escuro. Parecia que toda a luz do Sol explodira de repente num poço de trevas pesadas. O homem que estava sendo devorado pelos ratos fechou os olhos para a luz ofuscante mas ela atravessou-lhe as pálpebras, e ele pairou inconsciente. O escuro tornou-se um oceano de luz...

O homem levanta da cama. Seu corpo está totalmente descansado. Nunca se sentiu tão bem. Uma estranha sensação o invade mas não lhe causa sentimentos ruins, pelo contrário, ele se sente seguro. Seu corpo está formigando. Fazia tempo que não se sentia seguro. Olha pra o lado e vê uma cômoda muito familiar, parece com a dele, na verdade é idêntica, só que muito mais nova, muito mais. Sobre ela um espelho está aguardando ser observado. O homem se aproxima e olha seu rosto. Não há barba, nem cabelos brancos. Ele sabe que há algo escondido em sua mente, sente que já viveu algo parecido. Caminha até a porta do quarto e vê a porta da frente da casa aberta. A casa é familiar. Vai até a porta e vê os dois... seus pais... Eles estão abraçando uns vizinhos e de longe fazem um aceno para o homem que está parado na porta a observá-los. O homem corre até eles. Quando se aproxima de sua mãe, o homem ergue a cabeça e olha para ela, fala pausadamente com os olhos vidrados na imagem cintilante daquele rosto, “Eu te amo tanto mãe... não quero ficar só...”, ela olha pra o homem, se abaixa e lhe beija o rosto, “A mamãe também te ama, mas você não vai poder ir hoje comigo e com o papai, você enjoa quando anda de carro, esqueceu? Vai ficar com o titio”.

E como um pensamento caído das profundezas do espaço misterioso diretamente no fundo de sua consciência, o homem se dá conta do que está acontecendo... um choque de compreensão o faz lembrar de palavras ouvidas em algum lugar no escuro do seu inconsciente “Você ainda tem planos, não?”

Sim... Ele ainda tinha planos. E o maior deles estava ao alcance de suas mãos. O homem falou olhando para aquela mulher que tanto lhe fizera falta e que começava a se afastar em direção ao carro enlameado “Mãe, eu não vou passar mal... Me deixe ir com você, por favor mãe... por favor... eu num vomito não”, e então pôde ouvir o som de sua voz; era a voz de um garoto. Mas o que o corpo de criança abrigava era a prova mais do que suficiente de que ele talvez tenha sido escolhido por alguma razão dentre milhares. Poderia reescrever... fazer diferente. E faria. Seria...

“Tá bom, agora você vai sentar no meu colo pra eu ir te dando carinho a viagem toda, combinado?”, a mãe falou com o sorriso mais lindo que ele havia visto em toda sua vida estampado no rosto. Beijou-lhe a testa com amor.

Quando o carro partiu o homem se deixou aninhar nos braços da mãe, sentiu-se feliz, não haveria mais ratos, não, nunca mais. Fechou os olhos e a lembrança de dois caixões com tampas fechadas surgiu em sua mente... Ele olhou para as mãos e viu que eram pequeninas e frágeis, não eram mãos de um homem. Sorriu encostado no peito da mãe ao pensar que seu caixão seria branco, pois ele agora era puro, agora eles seriam três... Três caixões que não seriam abertos. Fechou os olhos novamente e sentiu a paz invadir o escuro... Estava pronto pra seguir em frente...

Edgar Lins
Enviado por Edgar Lins em 22/06/2018
Reeditado em 23/06/2018
Código do texto: T6371431
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