Aquilo que podia ter sido

Tinha recado da Gal na secretária eletrônica. “Tô passando aí pra pegar minhas coisas.”

Fiquei mal. Putz, não dava pra entender que tudo ia terminar daquele jeito. Tá certo que a gente não morria de amor um pelo outro, mas eu acreditava que a gente formava um par legal. Química, projetos, verdade, tesão...

Sem falar que amor é só uma invenção de homens e mulheres a fim de romantizar um acordo de cumplicidade. Eu penso desse jeito, e sei que a Gal pensa assim também.

Fico me perguntando onde tudo começou a “dar água”. Ah, com certeza eu tenho minha parcela de culpa. Ou será que foi só química evaporada, os projetos que mixaram, a verdade virando mentiras? O tesão tinha sido o último a ir embora. Falando sério, eu ainda tenho uma baita vontade de ficar no braço dela, acordar junto, namorar a beça. Só que uma relação não é só isso, né. Eu sei, a Gal sabe.

Vai ser triste quando ela chegar, mais ainda quando começar a tirar suas coisas. Cada cantinho do apê tem um pedaço, um carinho dela. A Gal tem essa coisa de deixar marca por onde passa. Nem sempre a marca é boa, porque a garota tem personalidade. Fala daquilo que gosta, reclama do que não gosta. Se mete a transformadora do mundo ao ver uma possibilidade de mudança. Gosta de cor, de cheiro, de vida.

Acho que foi por isso que eu me amarrei nela. Sou um tanto transformador também. Amo as pessoas, adoro estar aqui, passar por este mundo, deixando a minha mensagem.

O interfone tocou. É ela subindo. E aí? Ajudo arrumar suas coisas ou me escondo no quarto? Faço um discurso de agradecimento ou apenas cumprimento de leve? Relembro os bons momentos ou fico quieto?

Tô sofrendo pacas. Ninguém entra numa relação pra pôr um ponto final. Seja amor, paixão, cumplicidade, por praticidade ou não, a gente quer viver um para sempre. Principalmente quando tinha tudo pra dar certo.

Eu não tenho dúvida. A gente se completava. Formava um casal bonito, alegre, dinâmico.

-Vamos acampar, Du?

-Vamos.

- Topa servir sopa pros moradores de rua, na madrugada, Gal?

-Topo.

-Que tal adotar uma alimentação vegana?

- Legal.

Tanta afinidade e agora ela saindo da minha vida.

Será que foi a divergência política? A gente tem umas ideologias que não batem. Ou foi a mãe dela? Sempre pondo defeito na minha barba, meu corte de cabelo, o jeito de me vestir.

-Aí, velha-dá vontade de falar. -Tá feliz agora? Eu sofrendo, sua filha sofrendo.

É; porque eu duvido que a Gal não esteja mexida com isso tudo. Vivemos uma história.

-Oi, Du. Vou levar só algumas coisas, hoje. Estou me ajeitando na casa da Andreza. -Ela meio que se desculpou ao entrar.

-Tudo bem.

Fiquei com vontade fazer uma porrada de pergunta. Queria que a gente sentasse e entendesse junto o que aconteceu, mas ela foi prática, mais uma vez. Botou umas roupas na mala, juntou uns objetos pessoais numa sacola. Pegou os livros preferidos e ajeitou numa bolsa de couro. Passou na frente da rack e parou.

Cara, juro que torci pra ela não levar o porta retrato. Nós dois, num réveillon, em anos remotos, lá no Guarujá. Nem sei se foi eu ou ela que emoldurou aquela foto, só sei que por algum tipo de masoquismo, eu queria ficar com ela.

A Gal perguntou se podia levar os CDs do Tim Maia. Como eu ia negar isso pra ela? Foram tantas noitadas ao som de: “Você é algo assim, é tudo pra mim...”

Dali pra frente nossa canção ia ser outra.

Paramos na porta.

-Quer ajuda com as coisas?

Graças a Deus ela disse que não. Nem insisti.

Minha mãe falava que uma separação é sempre dolorida. Vai ver que foi por isso que ela viveu com o bronco do meu pai até ele morrer. Porque dói muito sim. Dói mesmo quando a gente sabe que não tem amor e que tudo o que nos unia ao outro, acabou.

Quase não consegui dizer pra ela:

-Seja feliz, gata. Só te desejo o melhor.

Ela me deu um selinho.

-Tudo de bom pra você também.

Saiu sem olhar pra trás. O cabelinho vermelho respingando água no corredor.

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 10/07/2018
Reeditado em 24/07/2018
Código do texto: T6386680
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