TRANSFORMAÇÃO

Abriu os olhos e se deu conta de tudo à sua volta: o criado, a janela com a cortina fechada, a escrivaninha com o notebook aberto. Parecia ainda um sonho, mas percebeu que estava de volta à realidade quando se levantou, foi até a janela, abriu-a e deixou a brisa da madrugada entrar por suas narinas. Olhou para baixo a avistou, deitado na calçada, um mendigo, uma visão monstruosa de como a vida pode ser cruel. Ele estava sobre um amontoado de caixas de papelão, dormindo profundamente, talvez anestesiado pelo álcool, e o cheiro etílico era tão forte que subia até sua janela, no terceiro andar do prédio. Nem parecia um humano, mas para ela, ele era infinitamente mais humano do que aquilo que a ameaçava. Na verdade, o mendigo dormindo, os carros parados, a rua tranquila, lhe davam uma sensação de segurança. Porém, sua inquietude interna a atormentava. O que vivenciara na noite anterior a marcaria para sempre.

Virou-se e olhou para o quarto vazio que ficara às suas costas. Foi até o notebook aberto, e se perguntou o que faria para atravessar as horas que faltavam para o amanhecer. Mais que isso, como iria estabelecer em sua mente o que era real e o que era delírio – como continuar sã? E, sobretudo, como criar coragem para reler o que havia escrito?

Lembrava-se de tudo que digitara há algumas horas atrás. Sabia que estava contando a história de um escritor que produzia contos de terror. Já havia escrito coisas parecidas antes, publicado contos aterrorizantes, mas nunca sentiu medo de os produzir. Adorava quando algum fã lhe escrevia, relatando o quão apavorado ficara ao ler suas histórias. Isso lhe causava um certo prazer, pois a catarse advinda de uma boa história é a redenção de qualquer escritor.

Pois bem, em seu conto, o escritor via materializar-se à sua frente tudo o que escrevia: os medos, os sustos, as personagens sinistras de seus contos ganhavam vida. Talvez isso fizesse toda a diferença.

Naquele momento, resolveu chegar mais perto da tela do computador. Seria a hora de testar a veracidade do que viveu horas antes? Se aproximou, passou os dedos pelo teclado. Não se sentou, tocou no mouse, conduziu a seta até a pasta onde estava o arquivo com o texto e deu um clique. Automaticamente, sem se dar conta, começou a reler o que escrevera, mais uma vez. E, como acontecera antes, a transformação teve início.

Talvez tenha fechado os olhos por uma fração de segundo e, ao abri-los, não era mais ela mesma. Havia acontecido de novo: olhou ao redor e se deu conta de que estava em uma rua deserta, cheia de névoa e um cheiro forte de algo morto, que vinha com o vento leve. Olhou para suas mãos e viu que eram mãos de homem, peludas, dedos longos e grossos. Olhou para seus pés e viu sapatos masculinos, pretos, grandes. Ficou assustada, saiu em disparada pela noite adentro, estava em uma rua, que não era a sua, nem mesmo aquela cidade era a sua. Estaria em um pesadelo? Teria cochilado em frente ao notebook e começado e sonhar?

Um medo súbito teve início dentro dela. Algo terrível estava prestes a lhe acontecer... algo sobrenatural, incontrolável, a esperava. Sentiu o suor frio a lhe escorrer pela testa, as pontas dos dedos geladas. Tinha quase certeza de que estava vivendo a história que escrevera.

Não via nada à sua volta, devido ao nevoeiro. Então resolveu sentar-se à beira do meio-fio e esperar para ver o que ocorreria em seguida. Estava desorientada e com muito medo. Chegou mesmo a ficar paralisada ali, sem reação alguma.

Foi quando ouviu um barulho muito alto vindo em sua direção. Procurou manter a calma e começou a puxar pela memória: o que havia escrito? Como a história se desenrolava? Lembrou-se do motivo do barulho: um enorme cavalo montado por um ser em chamas se aproximou dela (ou dele, já que havia se transformado no escritor) e a derrubou, deixando-a estatelada no chão, e partiu, sumindo na escuridão nebulosa. Ela demorou alguns segundos para se refazer do susto e levantar-se. Não conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo de verdade. Não podia ser verdade. Mas olhou para a escuridão e viu ainda o brilho das chamas daquele cavaleiro, desaparecendo ao final da rua. Então teve uma ideia: fechou os olhos e esperou alguns minutos, desejando sair daquele lugar tenebroso. Quando os abriu, estava de volta ao seu quarto, em frente ao notebook. Não pensou duas vezes ao deletar aquele arquivo enfeitiçado, pois sabia que assim, exterminando aquele conto, ficaria livre daquele pesadelo medonho de vivenciar as histórias por ela criadas. E assim, continuou escrevendo seus contos, agora não mais com personagens escritores que viam seus textos tornarem-se realidade.

Francis Faria
Enviado por Francis Faria em 14/09/2018
Código do texto: T6448633
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