Dona Bastinha

Um homem precisa ter o direito de esquecer.

Era assim que Messias pensava justificar seus maus hábitos. Péssimos hábitos. Quando o som baixo do telefone a tocar o chamou das profundezas de um sono repleto de imagens sufocantes, ele não conseguiu abrir totalmente os olhos. Limitou-se a olhar a hora no relógio de parede da sala, já passava das sete da manhã e ele percebeu que mais uma vez havia dormido no sofá. Sua cabeça latejava e o sono etílico fazia com que seu corpo, que pesava tanto quanto o de um suíno bem tratado, afundasse ainda mais no estofado. Não conseguia se lembrar de muita coisa da noite anterior, mas a sede, a boca seca e as náuseas, não permitiram que ele se enganasse. Para Messias já não fazia diferença, bebia desde sempre. Seu corpo reagiria aos poucos e em breve estaria pronto pra mais um afogamento.

Com sua capacidade de discernimento planando entre a realidade e o torpor, ouviu sons que vinham da cozinha que ficava no fim de um pequeno corredor em frente à sala, e sentiu aromas que o fizeram se situar um pouco melhor. Era Bastinha que cozinhava. O cheiro de bacon se misturava a outros que lhe agradavam, mas o toque do telefone, ainda que baixo, o fez resmungar e murmurar com a voz embolada pela mulher pra que ela atendesse, não queria levantar e andar alguns metros até o móvel próximo à estante e atendê-lo. Sua mulher deveria atendê-lo, era sua obrigação. Pelo menos era assim que ele pensava, desde quando ela e ele ainda eram novos e nada sabiam sobre o que viria. Cada um com suas obrigações. Direitos e deveres.

O telefone soou 7 vezes e parou. Messias quis levantar e gritar pela esposa perguntando se ela não ouviu o telefone mas decidiu ficar onde estava, sua cabeça girava e ele sabia que ela era ruim de um dos ouvidos. Sabia também o porquê. A ressaca naquela manhã estava ainda mais acentuada, as duas garrafas vazias e o copo em cima do pequeno centro de sala olhavam pra ele de maneira duvidosa. Tentou se lembrar do que fizera horas antes e não conseguiu, de uns tempos para cá sua memória estava lhe pregando peças. “Mas cadê minha carteira... será que eu deixei com aquela rapariga...”. Deixou-se cair no sofá e pensou que em alguns instantes, ou quando ele bem entendesse, comeria como um animal recém liberto o café da manhã que desde muito Bastinha sabia que não poderia faltar. Lembranças de outras épocas reapareceram na mente de Messias e ele as convidou a entrar, deixou que elas lhe contassem o que quisessem. O cheiro e os sons na cozinham pareceram mais intensos e quando o peso nos olhos dele se realçou o vulto de Bastinha passou rapidamente para o outro lado da cozinha e ele pôde ver a mulher com quem tivera que passar o resto da vida. Casado. Cansado.

Bastinha. Gorda. Esquecida. Mas ainda cozinhava maravilhosamente bem. Messias fechou os olhos e de repente imagens recentes vieram à tona. Ele viu o corpo firme e definido de Janaína despido em frente ao seu, lembrou de como havia se deliciado naquelas curvas alucinantes, de como ele havia funcionado, de como ela havia feito com que ele esquecesse que já era um homem que caminhava pra um fim inevitável, de como ela não quis aceitar seu dinheiro mesmo que fosse sua profissão. Pensou que talvez estivesse apaixonado. Casar de novo. Mas já era velho e não tinha dinheiro suficiente pra tal. Idiotice. Janaína não queria ser só dele. Sua mulher foi bonita um dia, há muito tempo. Lembrou-se de quando a viu pela primeira vez descendo a ladeira que dava no Açude da Moenda, levava uma trouxa gigante na cabeça, usava uma saia rodada com babados coloridos que chamava a atenção por lhe realçarem as nádegas avantajadas. Messias gostava de carne. Talvez ela tivesse uns 15 ou 16, não lembrava ao certo, mas naquele dia Messias jurara pra si que teria aquela moça não importasse a maneira. Era como desejar uma fruta ainda presa à árvore.

Messias sentiu vontade de vomitar mas se conteve. O enjoo cortou o fluxo de recordações e ele se esforçou pra não perdê-lo, queria por alguns instantes refletir sobre seu passado. Voltou no tempo quando após um rápido namoro e algumas poucas visitas, a mãe de Bastinha, finada Dona Dezinha, disse-lhe que se fosse levar sua filha teria que cuidar dela e não se esquecer dos que a haviam entregue a ele. “Fique tranquila Mãe Dezinha, eu sou um homem!” Tudo era bastante simples; não deveria fazê-la passar por mais necessidades do que ela já passava. E de vez em quando, ou de vez em quase nunca, ajudar com o que pudesse a família da moça. Messias na época já tinha um bom emprego na fazenda de Dr. Borba, era seu segurança particular, o famoso capanga, carregava algumas almas nas costas graças ao trabalho, mas fazia de tudo, e garantiu que seria como um “pai” para ela, já que 10 anos o separavam da garota que timidamente lhe oferecera um pouco de munguzá que ela mesma havia preparado. Dona Dezinha lhe disse que a filha cozinhava tão bem quanto a mãe dela, e quando ele levou o copo à boca, percebeu que não faria um mau negócio, de qualquer forma. “Só peço a Deus que minha fia seje feliz!”, “Vai ser Mãe Dezinha, vai ser sim...”

Agora, ela era só um peso em sua consciência. Sempre que Messias olhava pra Bastinha, via a transformação que a vida limitada e dolorosa que a submetera havia feito daquela linda moça. Bastinha, agora uma senhora, pesava pelo menos uma tonelada a mais e seus cabelos já não tinham aquele cheiro. Cheiravam a mofo. Décadas de abandono fizeram com que a pequena que nada sabia da vida, que se viu levada por um homem que havia feito uma promessa aos seus pais e que nunca se preocupou de verdade em cumpri-la, se transformasse numa caricatura triste e de passos apressados, como se estivesse sempre à procura de algo pra fazer, tinha de ser útil o tempo todo. Não queria desagradar o marido. Nunca mais.

Messias quis negar o que as vozes dos seus devaneios lhe diziam, mas sabia que havia acabado com uma vida inteira. Bastinha havia sido apenas um bom negócio. Ela cozinhava bem e ele era um eterno esfomeado. Lembrou de quando ele era criança e a seca e a fome expulsaram sua família de lugar nenhum e os obrigou a serem escravizados na fazenda do pai do Dr. Borba. Seu pai foi seu escravo e hoje ele era escravo do filho dele. Não há legado pior do que a escravidão. Escravidão consentida.

Pelo menos, comida não lhe faltava. Comia feito bicho, comia de tudo com tudo. Sua principal refeição do dia era o café da manhã, podia faltar a cachaça no outro dia, o almoço ou o jantar se atrasarem, mas o café tinha que estar na mesa quando ele levantasse da cama. Pra ele era uma lei. “Barriga vazia pela manhã não se tapia”, era uma canção de seu passado. Por toda fome que passou ao acordar na infância e ver sua mãe chorando com uma faca de serra na mão, olhando pra os filhos de um jeito estranho e triste, ele criou essa promessa supersticiosa de que jamais sentiria fome em suas manhãs outra vez. No primeiro ano ele havia deixado passar as manhãs em que levantava e não havia nada à mesa. Bastinha era uma menina, gostava de dormir até tarde, o que pra ela não passava das oito da manhã. Ele, que acordava às sete, gostava de ver a mesa pronta assim que levantasse, passava pelo menos meia hora devorando o que estivesse sobre ela e depois seguia num trajeto de 20 minutos para a fazenda. Sentia uma onda de raiva crescer de algum lugar distante no obscuro do seu ser sempre que aquilo acontecia. Era a sua promessa. Sufocava a vontade de esbofeteá-la por não ter preparado nada pra que ele comesse antes de sair pra trabalhar. Iria pegar peso como um burro de carga, tinha que estar bem alimentado. Comia qualquer coisa que encontrasse enfurecido, mas se mantinha calmo perante sua esposa nova e preguiçosa, segundo os valores dele. Acordava ela antes de sair e dizia com surpreendente calma que tinha que ter café na mesa quando ele acordasse, senão ele ia ficar descontrolado qualquer dia desses. “Eu preciso comer, tá entendendo? Num tire onda com a minha cara não que eu sou um homem não sou um cachorro não! Eu trabaio pa tu cumê!”.

E esse dia chegou. Certa manhã, depois de mais uma noite de cachaça e mulheres mais velhas, Messias que já não disfarçava sua vida pra Bastinha pois sabia que ela não teria como voltar para casa, era propriedade dele enquanto pudesse pôr comida na mesa e ele faria o que bem entendesse, acordou e quando se levantou de seu pesado sono não havia nada preparado. Uma sacola com pães estava sobre a mesa e havia uma faca de serra em cima de uma vasilha de manteiga. Ele olhou para a fruteira e viu a macaxeira e o os ovos que havia comprado na noite anterior. Sentiu a fúria descontrolada e pensou que ela não passava de uma preguiçosa que não sabia dar valor a ele, que talvez se sentisse melhor na casa da mãe lavando roupas cagadas o dia inteiro. Voltou para o quarto e a puxou pelos cabelos com força, acordando-a num susto eletrizante, ela que dormia profundamente e inocentemente como uma criança que acostumou ser chamada de mulher. Bastinha, que era Sebastiana, mas que ele chamava de Tinha, olhou pra ele com lágrimas de pânico e de tristeza, apertou os lábios e disse soluçando que tinha dormido cedo, que havia esquecido... Disse isso antes que Messias sequer abrisse a boca. Ele não ousou repetir o aviso dado meses antes, fechou a mão direita, que pareceu um tijolo erguido, e golpeou-a com um soco fortíssimo no ouvido esquerdo...

“TREC!!!”

Foi como quebrar um rádio à pilha. Alguma coisa, alguma espécie de peça, se soltou de maneira incontestável, a mão de Messias era pesada demais para ela. O soco desferido fez da menina moça Bastinha um ser errante e medroso, sempre pronto pra fazer o que seu marido lhe pedisse ou ordenasse, ou imaginasse. Ela quebrou mas funcionava movida à ordens. Tornou-se um fantasma do que era.

Desse dia em diante o café sempre esteve lá, em todos os dias de todos os anos das quatro décadas em que estavam juntos, estivesse ele com fome ou não. Bastinha fazia uma quantidade excessiva de bolos, cozinhava inhame, fritava ovos, sempre com muito bacon. Era a comida preferida do marido. Só que ele era somente um, e a comida era feita para três dele. Messias sabia que sua jovem esposa perdera o juízo naquele dia, que aquele golpe, o primeiro e único que dera, deixou sequelas irreversíveis naquela que viria a lhe ser sua única companhia, já que aos trinta ele já se diagnosticava como estéril. Ou ela. Por desencargo de consciência permitia que ela se excedesse nos cuidados com a culinária desde então. A culpa e o remorso de certa forma o impediam de pedir para que ela não se preocupasse mais com tanta comida, que ele estava comendo menos. Mas sempre que as sobras eram deixadas à mesa, Bastinha se punha a comer como um cão que aguardara faminto os ossos do dono. Não havia desperdício, Bastinha se encarregava de toda a comida. Seu peso triplicou e ela se tornou um peso literalmente.

Com o tempo o desejo que sentia por ela se misturou à culpa pelo dano que a havia causado, Messias resolveu que não a veria mais como mulher, não como um cavalo olha pra sua fêmea, pois sabia que em todas as milhares de vezes em que ele a possuiu ela estava com medo, que ela sentia uma indiferença que beirava o desprezo por ele. Ele descarregava toda a tensão num corpo flácido e inerte, decidiu que a deixaria livre de tal tortura. A cachaça assumiu seu lugar e o prazer era obtido através do dinheiro. Bastinha apenas arrumava, cozinhava; café, almoço e jantar; comia o que podia. E dormia ao lado dele como uma máquina desligada. Não havia nenhum sentimento. Melhor, havia somente um. Medo...

O telefone voltou a tocar e Messias abriu os olhos sobressaltado, percebeu que havia adormecido outra vez. Tudo o que havia pensado era como um sonho que acontecia num estado de vigília. Agora o relógio mostrava que havia se passado mais de uma hora desde a última vez em que ele o olhara. Ele não trabalharia naquela manhã. Os sons de Bastinha na cozinha ainda estavam presentes, assim como o cheiro de muitas frituras e cozidos. Messias lembrou que sempre que a bebida o fazia se perder num labirinto de imagens e desejos retorcidos, haveria um café da manhã reforçado logo cedo sobre a mesa, pois Bastinha sabia... de seu ânimo sempre que ele despertava de uma noite abraçado com suas garrafas. Ele sabia que ela sentia um constante temor, sabia que nunca se esqueceu da manhã em que acordou pendurada pelos cabelos. Messias apenas sentia um leve remorso que margeava a falsidade. Pelo menos, pensava, não a havia deixado. E bem que podia. Ela não o valorizava o suficiente...

Dessa vez o telefone tocou três vezes. Parou. Tocou mais duas vezes e Messias, após uma enchente de recordações, estava sentado no sofá e fazia menção de levantar-se para atendê-lo, grunhiu uns palavrões e outra vez o telefone parou. A imagem de Bastinha surgiu na cozinha ao fundo, em frente ao corredor, e Messias notou que nunca a havia visto naquele vestido branco... Ela segurava uma vasilha numa mão e uma colher de pau na outra, mexia freneticamente algo na vasilha, seu ar era mecânico. Ela não percebeu que ele estava sentado a observá-la. Messias deduziu, com um pouco mais de sobriedade, que pela hora ela já estivesse adiantando os preparativos do almoço, e preferiu deixar que ela permanecesse só com o que de certa forma preenchia seus dias tão vazios quanto os seios de uma mulher que nunca teve filhos. Não tomaria café enquanto ela estivesse na cozinha, não conseguiria, esperaria que ela saísse, sentia-se mal depois de tantas lembranças. Cozinhar... Era o que ela fazia de melhor. Conversar com as panelas sobre coisas incompreensíveis. Com ele, ela já não conversava.

Mas existem coisas que não mudam, mesmo que queiramos acreditar que é possível mudá-las. Messias, embora tocado pelo sentimento de tantas lembranças, não poderia se tornar uma outra pessoa livre de toda a mancha que sua alma carregava, não assim tão facilmente. Ainda seria um homem orgulhoso e autoritário quando resolvesse se levantar e tocar sua vida em frente, quando resolvesse aceitar que ser um algoz era o único talento que a vida o permitira ter, que talvez sua fome só se saciasse com algo que não pudesse ser mastigado e digerido, algo que para o alimentar tivesse que sugar de outro alguém a seiva da vida. Bastinha talvez fosse a única coisa que ele tivera em toda a vida, mesmo que negasse, mesmo que achasse ser forte demais pra admitir. Talvez ela o quisera amar um dia... talvez ele tenha destruído tudo que poderia ter sido. O peso da sua mão havia sido maior que o peso de Bastinha. Desde sempre...

Quando o orgulho se fez mais forte do que qualquer lembrança revivida, o telefone se pôs a tocar e seu som pareceu a Messias insuportável. Pensou em tirá-lo do gancho e gritar pra quem quer que estivesse do outro lado da linha, xingaria e insultaria quem quer que fosse por ter invadido a tranquilidade de seu dia de folga. Um homem precisa ter o direito de se esquecer... e tudo o que ele mais queria era esquecer do que a ressaca moral que o tomara havia lhe dito secamente. O telefone continuou, seu som ecoou na cabeça latejante de Messias e ele sentiu mais uma vez a raiva incontrolada de sempre ganhar força. Gritou para que Bastinha o atendesse, que viesse pra que ele pudesse ver aquele vestido branco que não lembrava ter visto antes, queria ver o reflexo triste do que ele moldara durante tantos anos.

Bastinha não respondeu. Messias enfurecido como se nada houvesse lhe tocado, como se as lembranças nunca tivessem o visitado, gritou e perguntou se ela estava surda. Seus lábios sussurraram as palavras “vaca sebosa”. A fúria animal que sempre fez parte de seu ser explodiu repentinamente apenas por ele não querer se levantar e atender o telefone que insistia em tocar. Levantou-se com o sangue pulsando nas veias e retirou o telefone do gancho com violência, fazendo com que a estante balançasse e derrubasse alguns enfeites que nela repousavam. Depois que falasse com quem quer que estivesse a lhe perturbar teria uma pequena reunião com Bastinha... O ressentimento havia escorrido pelas brechas do seu egoísmo visceral...

- Alô? - a voz de Messias libertou-se como um rugido agressivo.

- Graças a Deus! O senhor é o Messias? Preciso falar com Messias - a voz de homem do outro lado parecia nervosa e trêmula.

- Sim é ele. Quem é que tá falando? O que é que cê quer? - Messias imaginou que fosse alguém da parte de Dr. Borba e tentou conter sua irritabilidade.

- O senhor é marido da dona Sebastiana? - a voz perguntou sem ao menos se identificar.

- Sou sim, ela tá aqui, deixe que vou chamar - irritado, Messias gritou por Bastinha, mas o ruído de pratos sendo colocados à mesa foi a única resposta que obteve.

- Senhor por favor me escute, pelo amor de Deus... - a voz do outro lado da linha continuou antes que houvesse resposta por parte de Messias - Sua mulé saiu pa comprá verdura na fêra de Santa Helena hoje de manhã lá pelas 6:30, e... infelizmente... sinto muito senhô... ela sofreu um infarto e nós socorremo ela num carro de um feirante. Levamo uma hora até chegar no Hospital Geral e conseguimo por milagre que ela dissesse o seu nome e o contato de sua residência antes que viesse a desfalecer. Temo tentado falar com o senhô desde as 7:30... - a voz do outro lado pareceu engolir em seco - Sinto muito senhô, mas ela não resistiu... faleceu senhô... sinto muito... o senhô precisa vir aqui no hospital, sinto muito senhô... a gente fez o possíve... Deus sabe o que faz - e a voz calou-se aguardando uma resposta.

Messias por alguns segundos imaginou que estivesse sonhando. A raiva se tornou ódio e ele gritou ao telefone com a mesma vontade que faz com que um assassino enfie uma faca em alguém e depois a gire enroscando suas vísceras.

- Seu filho da puta! Não tem o que fazer não porra?! Vá ligar pra puta que o pariu seu desgraçado! - e desligou o aparelho com força, arfando e com a saliva escorrendo pelo canto da boca.

A cozinha pareceu silenciosa e Messias que parecia tão bêbado quanto na noite anterior, cambaleou em direção à ela à procura de Bastinha. Queria descontar em alguém a raiva que sentiu por tamanha brincadeira de mau gosto. Pensou que se ela houvesse atendido a porcaria do telefone, não teria sentido o que havia sentido. O ódio o fez esquecer completamente de todo o possível arrependimento que sentiu deitado a recordar de coisas esquecidas.

Quando chegou à cozinha Bastinha não estava lá, mas seria impossível que ela tivesse passado por ele sem que ele a visse. Impossível. Em cima da mesa redonda havia uma panela de barro com inhame fumegante, um prato com bolo de milho, um bule preto que era usado para o café, pães assados, uma travessa com bacon e ovos fritos, uma pequena tigela com arroz-doce e uma xícara com munguzá também fumegante. Tudo parecia ter sido servido naquele exato momento, exatamente às 9:15 da manhã, por alguém que havia se retirado por uma porta que não existia.

Messias estava paralisado olhando para a mesa. Os cheiros se misturavam e faziam com que ele sentisse que em sua mistura um cheiro diferente de todos os que já havia sentido em toda a vida surgisse de maneira alucinante e assustadora; era o cheiro de rosas. Rosas que lembravam cantigas fúnebres... O vômito lhe chegou à goela num salto. Levou a mão à boca segurando o refluxo que aumentava de maneira descontrolada. Gritou o nome de Bastinha várias vezes com toda a força que o susto havia lhe deixado. Não houve resposta. Sua mão derrubou uma porcelana que estava em repouso na estante e ele descalço acabou por pisar em seus cacos, gritando e blasfemando como nunca, parecendo um cão raivoso que havia sido ferido por um espinho. Nesse instante o som de batidas na porta ecoou pela sala e invadiu o campo movediço ao qual Messias começava a se afundar. Ele se negava a acreditar na possibilidade de que algo inexplicável acabara de acontecer perante seus olhos, que a vida decidira lhe mostrar uma de suas inúmeras facetas brincando com sua lucidez... Ele era um homem, e nada o assustaria a ponto de o fazer enlouquecer... Sem tirar os olhos da cozinha recuou em direção à porta da frente da casa e a abriu com a chave que se encontrava na fechadura. O rosto de Dona Firmina surgiu envolto na claridade do dia que brilhava lá fora.

- Ah Seu Messias... Ah meu Deus do Céu!... Eu acabei de vir do hospital, tava com meu neto lá Seus Messias, eu vi Dona Bastinha... Toma a frente Senhor... - a mulher se debulhava em lágrimas de um lamento verdadeiro e Messias nada conseguiu dizer, olhava para a mulher e não tirava os olhos da cozinha, nem deixava de sentir o cheiro dos alimentos sobre a mesa. Rosas...

- Eu ainda falei com ela antes Seu Messias... num sei se ouvi bem, ela num tava conseguino respirar direito... mas eu acho que ela falou alguma coisa sobre café... ouvi quando ela disse “Messias... café... tem que tê café...” Num sei se entendi bem, ah Senhor... ela parecia tão assustada... pobrezinha... sinto muito, ela era tão boa... - aos prantos a mulher esticou os braços e abraçou Messias que sequer piscava os olhos, mais parecia uma estátua de sal que havia olhado para trás.

Quando a mulher percebeu que seu abraço não estava sendo retribuído, se afastou com respeito e disse a Messias que tanto ela quanto sua família estariam à disposição pra o que fosse preciso, que todos amavam Dona Bastinha, que ela era um anjo... Partiu silenciosa e foi espalhar a notícia para os vizinhos.

Messias, que por tanto tempo viveu somente pra si, sentiu que a fome despertava em meio a todo aquele pesadelo, ouviu seu estômago roncar e o aperto na garganta lhe dizer que estava acabado. Lembrou que não sabia cozinhar. Mas não se tratava do fim de um bom negócio. Ele sabia. O que quer que habitasse o fundo de seu interior deteriorado pela bebida e pelo egoísmo, agora deveria sucumbir à fome que seu arrependimento irremediável e além da carne o havia condenado. Seria um eterno esfomeado...

Edgar Lins
Enviado por Edgar Lins em 15/09/2018
Reeditado em 19/09/2018
Código do texto: T6449900
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