ELE SABE 7

"– Como foi de viagem?

– Rápido. – Solano o responde.

– Muito bem. Só avise ao Edgar que fui embora. Não existe nada que me prenda aqui, pelo contrário. – Avisou, Marcus.

– Edgar já foi. Tento falar com ele mais tarde.

– Esse imbecil vai ficar em casa esperando a vez dele chegar?

– Isso quem sabe é ele.

– Muito bem. Espero não termos que nos ver de novo, você entende.

– Entendo.

– Certo.

– Certo. – E é Solano quem fica, e Marcus que se vai."

[PARTE SETE]

Marcus entra no carro e mantém as janelas fechadas. Poucos minutos se passam até que ele não possa mais suportar o chiado das suas ideias em choque, distorcendo e desviando repetidamente a direção do seu raciocínio. Ele precisa se distrair. No rádio, nada vale a pena. Sua respiração comprometida mal o preserva a vida, quem dirá lhe servir de alento. O tamborilar dos polegares contra o volante volta e meia perde o seu ritmo. Volta sua atenção para o chacoalhar irregular do celular contra as paredes de plástico do compartimento onde se aloja – mas isto também não é o suficiente. A contragosto, abre as janelas. Consola-o saber, porém, que o tumulto das ruas cedo ou tarde se acumulará nos seus ouvidos até que se misture ao som dos seus pensamentos. Nem que tenha que viajar por doze, ou vinte horas, mesmo que tenha que cruzar estados, ou países, partirá dali.

Ele tenta acessar o número de Edgar novamente. É absolutamente inadmissível que ele não o atenda, sob qualquer circunstância, a essa altura dos acontecimentos. Estava morto, é evidente. O infame advogado Edgar Toledo Souza de Nobrega, impiedoso e desmedido, fora derrotado. Marcus não se privaria da satisfação de apreciar sua morte. Edgar merecia morrer. Não mais do que os outros, certamente. Ele apenas merecia. Dele, contudo, sentiria menos falta –, e ainda não havia conhecido quem de fato a sentiria.

Norma Toledo de Nobrega – sua tia – e Aluísio Souza de Nobrega – o tio – sentiriam muitas coisas. Dentre todas elas, entretanto, não estava a saudade. Ele mesmo, agora, parecia experimentar um certo alívio. No momento em que toda a família enfim tomasse ciência do que fizeram, e não demoraria muito este dia chegaria, eles também o experimentariam. Não por retidão moral, menos ainda por honradez; ou honestidade; escrúpulo; pudor; decência. A hora em que os tios agradecessem a perda do próprio filho, eles o fariam unicamente por autopreservação. Não poderia julgá-los; não por isto. É verdade que por um bom tempo Marcus viveu inadvertido das forças por trás deste instinto. Mas, hoje, ele as conhecia muito bem. Fora apresentado a elas anos antes, pelo primo, durante a conversa que mudaria o curso da sua vida. Assim que as viu, não as reconheceu de imediato, em parte porque era ainda muito novo para isso:

– Se está tão perdido assim, venha comigo. Eu te apresento a todos os figurões, amigos meus. Futuros amigos seus.

– Não quero ser advogado, Edgar.

– E não precisa.

– O que você quer?

– Não se faça de vítima, você já é um homem.

– E o que você quer?

– Eu trato de proteger os interesses dos empresários, Marcus, mas não sou um.

– Porque não quer. Eu não tenho nada a ver com isso.

– Ano que vem você vai tentar o vestibular, certo?

– Isso, mas adiante de uma vez essa conversa, por favor.

– Você deveria participar mais desta família, tenho pensado.

– Da sua família?

– Da nossa.

– Não acho que haja lugar para mim ali, muito menos entre os teus amigos.

– Clientes. Eles são clientes.

– E qual minha parte nisso?

– Liderar uma empresa é gerenciar a economia, Marcus, e a economia são eles.

– E você acha que eu posso ser também. Por que não você?

– Porque eu já sou. Estou sendo agora.

– Você parece seguro demais disso.

– Não se preocupe, você também logo estará.

Edgar era – daqueles com quem mantinha a menor relação afetiva – seu parente mais rico; milionário, se apegasse-se a precisão dos números. A distância entre eles talvez se devesse mais a isto do que a personalidade aristocrática do outro e seus antecessores. O dinheiro se mostrara uma nuance intransponível quando somada a supremacia do seu longo histórico de sucesso largamente reconhecido. Uma história de fortuna e poder. Mais velho e mais afortunado, Edgar sempre tirou um proveito particularmente prazeroso em testar com o primo seus conhecimentos na arte que havia consagrado o nome da família. A manipulação, frequentemente classificada como uma retórica tão abrupta quanto atraente, sempre lançou os seus membros às mais altas castas do setor corporativo.

Quando em campo, os Nobrega pareciam materializar por entre o bom uso da terminologia jurídica a premonição dos anseios dos seus nobres congêneres. Na fala bem-posta, suas ambições mais indizíveis sabiamente camufladas. Marcus, conhecido entre eles por representar a parte mais simplória dos que a quem seu nome se estendia, abdicou das pretensões do pai de seguir carreira na arquitetura para aventurar-se – sem qualquer recurso ou prática precedente – no mundo dos negócios, junto ao seu primo distante.

Tão logo percebeu as vantagens de atribuir ao meio-sobrinho a proteção do título, Aluísio decretou ao seu meio irmão – pai de Marcus – que o permitisse cuidar pessoalmente dos seus estudos. Primo e tio – pai e filho – buscavam encontrar nele não o parentesco por anos desprezado. Acima de tudo, buscavam um aliado. Ao decorrer dos cinco anos de faculdade, paga com a garantia de aboná-lo de todo custo e cobrança, Marcus se tornara seu novo discípulo. Por este feito, Edgar e Aluísio conquistaram a admiração de Marcus, e a inveja dos seus irmãos, também a gratidão do pai, bem como a confiança da mãe – esta, morta pouco tempo depois, acometida pelo câncer de intestino que consumira metade dos seus parentes.

No tempo em que Edgar chegava ao seu quarto e último ano trabalhando ao lado do pai – no mesmo escritório que um ano mais tarde ele herdaria –, Marcus se formava por uma das maiores escolas de negócios do mundo. Prestes a iniciar o programa de pós-graduação que também lhe foi prometido, ele se preparava para seguir a carreira que nunca o pertenceria. A aliança, que os dois tão antes planejaram, para sempre estaria à frente de toda e qualquer escolha sua. Antes de ser o homem de negócios a quem hoje tantos temem e reverenciam, Marcus era um devedor, e a memória do dia em que firmou em sua mente a plena clareza sobre este fato é a mesma que o corrói agora.

O sinal aberto não lhe diz nada; nem mesmo a sinfonia de buzinas alardeando-se em vão na tentativa de puni-lo pelos segundos de distração egoísta. Um acidente agora poderia ter lhe custado a vida. Estaria neste exato momento preso à uma sucessão infindável de burocracias, impedido de cumprir a fuga que talvez nem mesmo viesse a mantê-lo à salvo. Quase que imediatamente, ele cai em si. O trânsito de fato precisava seguir. E falhou na tarefa de assegurá-lo. Cometeu um erro, e todo erro tem suas consequências. Esta é a verdadeira natureza da vida. É irônico que a primeira coisa que o venha à cabeça ao recuperar-se de mais este descuido seja uma compreensão já tão antiga. Era nisto que pensava todas as vezes que se recordava do seu crime: como tudo, algum dia, ele teria suas consequências. Neste caso, a vingança de uma vítima que só seria saciada pela morte dos seus algozes. Uma resposta justa, para o mal que sofreu primeiro. Marcus não seria tão estúpido a ponto de questionar sua sede de sangue. E quem seria, afinal? Edgar, talvez.

Não. Fausto.