A Menina e o Piano

O som da vida.

Gabriela era uma menina muito quieta, desde nova se dedicou a estudar, não dando trabalho aos seus pais, os quais nunca precisaram ir ao colégio por reclamação da menina.

Sua família não era rica, e talvez seu bem mais valioso fosse a honradez. O que Gabriela mais gostava era de tocar o velho piano que ficava num canto do velho apartamento em que moravam. Aos sete anos já sabia tocar algumas músicas, aprendendo sozinha através de um velho caderno de auto aprendizagem que seu pai outrora lhe comprara.

Todo dia depois do jantar, já tendo estudado, sua mãe permitia que a menina praticasse, sentava ao seu lado e pedia “toque para a mamãe”. A menina sentava no banquinho, escolhia uma música e tocava para sua mãe, que ficava sentada lendo um livro enquanto a música entoava o ambiente. Após isso, ela treinava uma música nova, uma que ainda não tivesse conseguido tocar, fazia isso por quase uma hora, quando sua mãe a colocava no quarto, para se preparar para dormir.

Para a menina seu pai era um herói, tinha dois empregos para que pudesse sustentar a casa, isso permitia que sua mãe ficasse em casa cuidando dela e das coisas da casa, não que fosse preciso, ela poderia trabalhar, mas ele preferia que a filha tivesse a mãe junto dela quando não estivesse na escola. Não confiava em babás, havia lido certa vez que uma dessas pessoas que cuidam de crianças havia abusado de uma, levando a família ao desespero, por isso preferia trabalhar dobrado e garantir a segurança da filha.

A mãe por sua vez, era sua vida, faria tudo pela mãe, pois esta faria tudo por ela. Acordava de manhã, sozinha, escovava os dentes para poder ir para a escola, ia no quarto dos pais, dava um beijo na cabeça do pai que possivelmente havia deitado uma hora antes e acordaria em três horas, então ia encontrar sua mãe na cozinha, tomava seu café, ia para o colégio de mãos dadas, conversando sobre o mundo, sobre o que queria ser quando crescer.

Era uma rotina fácil, colégio, chegava em casa, almoçava, sua mãe permitia que ela descansasse uma hora após o almoço até começar suas atividades de casa levadas pelo colégio, tendo acabado, a mãe sentava com ela, revisava, corrigia, e a liberava para brincar até a hora do jantar. Quase nunca conseguia jantar com seu pai devido aos horários, mas sempre o beijava pela manhã, jantava, e tocava seu piano, no quarto gostava de ler pequenas histórias, brincar com suas bonecas e sonhava poder escrever um livro um dia.

A adolescência.

Quando Gabriela fez treze anos sua mãe queria fazer uma festa para a menina, estava adiantada um no colégio, era a mais nova da sala, era quieta e quase não tinha amigas, a menina pediu que não fizesse festa, que preferia e se o dinheiro desse gostaria de ver um concerto, com um piano, música de verdade, pois era o que ela gostava.

Ela ainda praticava seu piano diariamente, e parecia cada dia melhor, e seu piano mais velho, mas com som perfeito. Sua mãe havia começado a trabalhar para ajudar na casa, seu pai estava meio donte e largara um dos empregos, ela já estava grandinha e poderia ficar sozinha, ajudar nas coisas da casa.

Gabi, como sua mãe a chamava nunca havia falado de nenhum menino em quem tivesse interesse, nunca saiu com as amigas, mesmo que sua mãe falasse para que fizesse isso, preferia seu quarto, seus livros, escrever seus textos, tocar o piano.

Gabriela já não descansava mais depois do almoço, ajudava a arrumar a casa, varria, lava a louça, colocava as roupas para lavar e ia estudar, o almoço a mãe sempre deixava pronto, ela só precisava esquentar.

Numa tarde, sua mãe chegou mais cedo em casa e escutou o som do piano, parou atrás da porta, sem colocar a chave, para escutar a filha tocar, fazia tempo que não a escutava, o trabalho não permitia mais, estava muito corrido, então aquele momento era para se aproveitar.

Entre as notas ouviu a voz de sua filha, cantarolava enquanto tocava. num segundo momento ouviu “Ficou bom assim? É assim que quer que eu faça?”. Seu corpo gelou, sua filha de apenas treze anos estava com alguém em casa enquanto a mesma trabalhava. Entrou em casa nervosa, mas preferiu fingir que não havia escutado nada, foi ao encontro da filha, que parecia meio pálida, talvez não esperasse a mãe tão cedo em casa.

Estranhamente não havia ninguém em casa. Foi ao quarto, sala, cozinha, banheiro. Ninguém. Tomou coragem e perguntou a filha com quem a menina falava, pois havia tido a impressão de ouvir a mesma perguntando a alguém se estava fazendo certo.

A menina ainda mais pálida, olhou em volta como se procurasse alguém, não havia ninguém além das duas. “Com ninguém mãe! estava falando sozinha, como auto critica”.

O piano.

O piano havia sido presente de uma velha tia que durante um tempo havia morado no apartamento de cima, mas com a mudança, e para uma casa menor não teria como levar o mesmo, então deu para a sobrinha que na época tinha apenas dois anos. Ora o que uma menina de dois anos faria com um piano? Gabriela aprendeu as primeiras notas aos quatro anos. Era seu “brinquedo” favorito, ficava horas fazendo esporro com as teclas. Logo que aprendeu a ler, seu pai comprou para ela o manual para autodidata.

O restante vocês já sabem, da relação de amor entre a menina e a música que saia do velho instrumento. Apesar de deteriorado esteticamente o piano ainda tinha um belo som, estava afinado e quando podia seu pai cuidava das cordas.

Ninguém sabe exatamente como esse piano surgiu na família, foram preciso quatro homens para descê-lo pelas escadas do prédio do quarto para o terceiro andar. Nas fotografias mais antigas ele já estava em algumas salas de geração para geração.

As tardes sozinhas.

Sua mãe estava desconfiada da menina, pensou até em conversar com o pai, mas este já estava doente, cansado do trabalho, preferiu não deixá-lo chateado com algo que poderia ser besteira.

Nos dias seguintes não poderia chegar mais cedo, estava com muito trabalho, naquela tarde chegou pois havia ido fazer um exame e pegou dispensa do trabalho para o resto do dia.

Gabriela continuava a treinar seu piano diariamente, estava tocando clássicos de Mozart. Seu pai estava muito orgulhoso, a menina nunca havia tido uma aula, iria tentar fazer com que alguém escutasse sua filha a tocar e desse a ela uma chance em algum lugar.

A menina ficou animada com as ideias do pai e passou a treinar ainda mais. Continuava falando “sozinha” perguntando sobre seu desempenho, como deveria tocar. Até que numa manhã, ela não teve aula, todos haviam ido trabalhar, ela estava na sala tocando seu piano fazendo as pausas para as indagações que fazia quando estava sozinha. Seu pai chegou, havia passado mal no trabalho e foi liberado, ouviu a filha falando “Já falei que não sei tocar essa música, muito difícil. Desde que tenho cinco anos você me cobra essa, não sei, nunca aprendi”.

Seu pai abre a porta rápido, corre até a sala, Gabriela está sozinha, de frente para o piano, estaria ficando doido, andou pelo pequeno apartamento, não há ninguém. Indagou a menina com quem falava, dessa vez ela já tinha uma resposta pronta “Comigo mesma, me auto cobro para melhorar sempre”.

A menina ainda fazia todas suas tarefas de casa, e antes de dormir deitava em sua cama e escrevia em seu caderno de capa preta, deveria ser algum tipo de diário, os pais não podiam ler, ela dizia que era particular, que por não ter amigas preferia escrever, assim aliviava a tensão sobre alguns assuntos que lhe eram particular.

As notas na escola iam bem, teria um show de talento e em casa ela comentou com a família sobre o evento, seu pai se animou, disse que deveria tocar, que era muito boa. Sua mãe concordou com a cabeça, sem dizer muita coisa, ainda pensava no dia em que ouviu a filha falando com alguém.

Na cama, seu pai olhou para a mãe e comentou que havia escutado a filha falando com alguém, mas que quando abriu não viu ninguém. A mãe assustada, contou ao pai sobre o dia em que chegou mais cedo, e também a escutou, mas que não achou ninguém dentro de casa, chegando a olhar até embaixo da cama do casal, a cama da filha não tinha como alguém se esconder embaixo.

Preocupados, mas não querendo entrar em conflito com a filha sem ter algum real motivo, até porque a menina nunca deu trabalho algum, sendo muito sincera sempre, resolveram deixar as coisas andarem mais um pouco e ver como ficaria.

Gabriela decidiu que iria tocar no festival de talentos do colégio. Nunca havia tocado para mais ninguém que não seus pais, não havia escolhido uma música ainda, talvez tocasse a preferida de sua mãe.

Na manhã seguinte se inscreveu, a escola tinha um piano no palco, ela nunca havia ido assistir nenhum dos eventos anteriores. Ficava pensando se gostariam de sua música, se deveria seguir um padrão de apresentação. Seu pensamento estava apenas no show.

De certo modo, com tanta aflição para o evento que acabava deixando algumas coisas de casa por fazer, pois chegava do colégio, almoçava, tovaca, estudava, arrumava rapidamente a casa para poder tocar, na arrumação sempre deixava algo para trás, certa vez esqueceu de estender a roupa, tendo sua mãe que fazê-lo.

A doença de seu pai estava piorando, os recursos da família não eram muitos, sua mãe estava passando mais tempo no trabalho, seu pai indo para casa mais cedo, pois constantemente passava mal, ou tinha consulta médica.

Gabriela parecia não se importar, tocava seu piano eloquentemente, todos os dias, a tarde, a noite antes de dormir, se deitava, escrevia em seu caderno preto. Sua mãe não estava reconhecendo a filha, a menina prestativa de antes estava agora esquecida das coisas, estava alheia a realidade da família.

Tarde da noite, sua mãe passa o braço pela cama e não sente o pai deitado, senta na cama e o vê de joelhos de frente para o vaso, dentro um líquido preto. Pega uma toalha de rosto que esta pendurada, molha um pouco e limpa seu rosto, com um olhar de preocupação. Os médicos não sabem dizer o que é, já foram feitos inúmeros exames, não há um remédio exato.

Ambos se deitam na cama, de frente um para o outro. “Minha avó tinha a mesma obsessão por este piano” diz o pai, com um olhar fúnebre, sem esperança, “Minha tia o deixava no fundo da casa, coberto, quase nunca limpava,mas ele continuava lá, depois disso minha irmã, todos se foram ou estão indo, mas o piano se mantém vivo na família”.

A mãe não sabia o que dizer, estava assustada com as mudanças que estavam acontecendo em sua família. Sua filha estava uma adolescente, e talvez isso fosse apenas fase, a doença de seu marido o consumia a cada dia, estava exausta, mas precisava continuar.

Naquela noite não dormiram mais, ficaram deitados se olhando, conversando, relembrando os tempos de quando ainda eram jovens, de como se conheceram. Já era cedo, quase sete horas da manhã. Uma nota do piano tomou conta do ambiente.

Sua mãe levantou, foi até a sala para reclamar com a filha por estar fazendo barulho tão cedo, pois seu pai havia passado mal a noite toda e apenas pegara no sono há poucos minutos. Gabriela já havia ido para escola, estavam sozinhos e ela atrasada para o trabalho.

Seu pai não foi trabalhar, estava muito fraco. Iria tentar pegar uma licença doença, para ficar em casa se tratando mas continuar recebendo. Quando acordou, foi até a cozinha, fez um sanduíche, estava com medo de passar mal de novo.

Andou até a sala, ficou de frente para o velho piano no canto, foi em sua direção, sentou no velho banco, levantou o protetor das teclas. Quando jovem sua mãe tentou ensiná-lo a tocar, mas parece que não tinha nascido para isso. Apertou duas notas com a mão esquerda, olhou para a mão direita, para as teclas como se escolhesse qual tocar, escolheu. O protetor de madeira fechou fortemente em cima de seus dedos, tirando sangue de alguns.

Correu até o banheiro, lavou, enrolou um pedaço de pano e resmungava xingamentos. Nesse momento olha para o espelho, percebe que o tempo o consumiu completamente, que não tem a aparência de quem tem apenas quarenta e oito anos, parece ter sessenta e muitos, está acabado, com a pele ressecada, olhos afundados, seu cabelo está ralo e mais branco.

Estava quase na hora de Gabriela chegar da escola, resolveu fazer algo diferente para ela almoçar. Nunca tivera muito dom na cozinha, passou mais tempo da sua vida na rua trabalhando, sua mulher lhe fazia a comida para levar para o trabalho. Ia fazer um bife com batatas.

Quando Gabriela chegou da escola encontrou seu pai caído no chão da cozinha, com algumas batatas derrubas no chão, não havia sangue. Ficou desesperada, tentou acordá-lo, em vão. Ligou para sua mãe, para uma ambulância.

Sua mãe entrou desesperada no hospital querendo saber do marido, Gabriela estava sentada numa sala de espera, pálida, cabisbaixa, olhos cheios de lágrimas, sua mãe a abraçou. Sua mãe entrou no quarto, o pai estava sob observação constante, respirando por aparelhos. Teria que ficar internado, sem prazo para ter alta.

A doença do pai.

Uma doença não reconhecida pelos médicos, inúmeros exames foram feitos, parece que é algo que afeta o pulmão, fazendo com que atrapalhe a respiração, como também ao estômago, fazendo com que este venha a vomitar uma substância escurecida.

Os primeiros sintomas apareceram a cerca de dez, onze anos, com cansaço, enjoo, algumas dores de cabeça, nunca aparecendo nada nos testes realizados.

Sua mulher nunca apresentou qualquer sintoma, mesmo com o convívio. Fazia para ele chá, e remédios caseiros que via na internet, já que muitas vezes os remédios industrializados não surtiam efeitos e em outras ocasiões eram demasiadamente caros.

Com sua filha ficando mais velha, a doença foi tornando-se mais severa, muitas vezes o impedindo de ir trabalhar devido a noites mal dormidas, dores e incômodos.

Nunca outrora havia ficado internado, dizia que não era nada o que tinha, apenas uma gripe mais forte, que seu avô tinha a mesma coisa e vivera até os oitenta e seis anos.

Estava deitado na cama do hospital, mal respirava, todo entubado, com soro, ainda conseguia manter um leve sorriso ao ver a família. Estavam todos dentro de um quarto de hospital, aquele clima de tensão, seu pai estava muto mal, sua mãe não sabia se chorava ou se tentava se manter forte para apoiar o marido.

“Quero que faça sua apresentação no colégio” seu pai lhe falou com um olhar mais vazio do que de todas as outras vezes. Olhou para a esposa “Eu te amo, amei por cada dia de minha vida”. Aquelas foram as últimas palavras de um pai dedicado, marido presente.

Com a morte de seu pai Gabriela pensou em largar tudo, estava sem base, sua mãe desamparada, não sabiam como seria dali para a frente. Sua mãe conseguiu pegar uma semana em casa de licença do trabalho, a filha não ia para a escola, ficavam em casa em silêncio.

Numa tarde, a mãe foi ao mercado, quando voltou Gabriela estava sentada na frente do piano “Não irei nunca mais tocar para você. Pedi para não levar meu pai. Você levou.” Sua mãe deixou uma das sacolas cair, estava em pânico, queria saber com quem a menina falava. Como assim pediu para não levar seu pai. Não sabia se gritava, chorava, se era medo, raiva ou confusão. Devia estar louca.

Gabriela não havia escutado a mãe entrar. Ficou parada em choque sem reação, “Diga que ela não está bem, que está confusa e que tudo isso não passa de um evento pós traumático pela perda do marido” soou uma voz para Gabriela. A garota reproduziu cada palavra, sua mãe ainda estava em pé encostada numa parede com as costas meio curvadas, como se buscasse forças para entender o que estava acontecendo.

A continuidade de uma vida pela troca de outra.

Estava quase na data do show de talentos, Gabriela não havia tocado uma nota desde que seu pai falecera. Certa noite, sua mãe chegou do trabalho e estava tudo arrumado, jantar feito, sua filha quis fazer uma surpresa, conseguiu. Durante o jantar a mãe perguntou sobre o show e que música ela iria tocar, tendo escutado uma respostada negativa quanto a sua participação, olhou para a filha, olhou para o piano “O sonho de seu pai era poder te ver tocar num palco um dia. Esse sonho nunca se realizará em vida, mas eu ainda estou aqui, e como somos uma família, compartilhamos o mesmo sonho. Você irá tocar, eu estarei lá, e tenho certeza de que seu pai também estará”.

A música voltava a fazer parte da casa, pelas manhãs Gabriela ia para a escola, de tarde fazia as tarefas da casa, e tocava piano o resto do tempo. “Você poderia ter evitado toda essa desgraça se tivesse tocado a única música que eu realmente queria”. Gabriela estava chorando olhando fixamente para as teclas do piano, uma lágrima escorria de seus olhos “Era meu pai, você o levou, o consumiu apenas porque eu não consigo tocar sua música”.

Desde que o piano foi para sua casa, há dez anos atrás, Gabriela sempre teve muito dom para a música, ficava sentada no piano brincando até conseguir tocar as primeiras notas.

Aquele piano trazia consigo um mal, todos na família de seu pai tiveram alguma doença e morreram antes da época. O piano resistia a tudo, passando de geração a geração.

O mal que habitava o piano ensinou Gabriela a tocar para ele, assim como diariamente consumia as forças de seu pai para que pudesse se manter forte, a menina só precisava tocar com a promessa de que sua família ficaria bem.

O piano havia quebrado a promessa, seu pai estava morto, sua mãe super esgotada, Gabriela sem forças para continuar, não queria mais o piano.

Mas o que Gabriela nunca percebeu que a voz que ouvia se mantinha viva apenas em sua mente, pois apenas ela escutava, era como se o próprio piano falasse com ela, de modo que a controlasse, quanto mais tocava mais forte o piano ficava, porém quando ficava algum tempo sem ser usado, precisava de outras fontes de energia para se manter vivo até que voltasse a ser tocado.

Esse era o mal que o consumia, por isso, logo cedo achou em Gabriela uma fonte nova, usaria a menina para se manter vivo, ensinando ela a tocar para si, em troca manteria sua família viva. Como a menina foi crescendo e ainda que tocasse todo dia, já não era o mesmo tempo que costumava tocar quando criança, estava enfraquecendo aos poucos, precisava estar forte, passando a consumir a vitalidade de seu pai, este por sua vez já se encontrava doente por causa do piano, não aguentou.

Gabriela tinha voltado a ensaiar, seu pai nunca dissera qual sua música favorita, tocaria a da sua mãe, pois ela estaria assistindo e ficaria orgulhosa. Estava nervosa, nunca havia tocado num piano diferente, será que apenas tocava num único instrumento?!

Na troca de uma vida pela outra, o piano sobrevivia consumindo a alma das pessoas que o cercava, até que não houvesse mais nada, ou quem o service. Tirava uma vida de alguém muitas vezes inocente para manter a sua baseada em ódio, música, dor e falta de compaixão.

Já sentiu a vida hoje?

Quantas vezes estamos sentados olhando para o nada e nos vem diversos pensamentos da vida, das coisas que fizemos e deixamos de fazer. Gabriela toda vez que sentava no banco do piano para ensaiar, tinha os mesmos pensamentos. Se o que fazia era certo, se era errado, se estava apenas com medo de também perder a mãe, estava louca.

O grande dia do show de talentos havia chegado. Estava mais afastada de todos do colégio nos últimos tempos do que normalmente era. As pessoas sabiam do seu drama recente, tentaram apoiar, mas a menina se excluiu, se fechando em seu próprio mundo.

Seria a quarta a se apresentar, o piano estava no palco, num canto. Quando os dois primeiros se apresentaram, uma banda de rock e a outra uma menina que cantava com uma voz bem fina, a terceira apresentação começou. Gabriela estava no palco, atrás das cortinas esperando sua vez, seria a próxima, andou um pouco para frente de modo que pudesse achar sua mãe na plateia, lá estava ela, olhar fixo no palco a espera de sua filha.

Era chegada a hora, a equipe que ajudava a montar trouxe o piano para o centro, Gabriela entrou, olhou para as pessoas, sentia um frio na barriga, sentou no banco de frente para o piano, lembrou de seu pai, de seus sonhos, uma lágrima escorreu de seus olhos.

Começou a tocar, a música favorita de sua mãe, olhou para a plateia, ela chorava de emoção, nunca havia visto a filha tão linda tocando de forma tão emocionante, dava para ver o sentimento em cada nota, em cada harmonia que aquele piano soava para todos que ali estavam. Todos estavam emudecidos, chocados com o talento da menina que ficara escondido por todo aquele tempo.

Alvoroço, aplausos, assobios, gritos, assim foi a reação do público quando Gabriela terminou, levantou-se andou em direção ao microfone e disse “Dedico ao meu pai já falecido, a música favorita de minha mãe, pois este era o sonho deles”. Sua mãe chora de emoção, não é a única a chorar.

Em casa, parece que há alguma coisa estranha, sente um clima diferente. “Vou tomar um banho filha!”, enquanto a mãe vai para o banho, a menina senta em seu velho piano, aquele que durante muitos anos foi seu melhor amigo, companheiro, confidente e que hoje ela já não sabia como fugir dele.

Levanta o protetor das teclas, aperta um “Lá” e sem que esperasse uma voz fala com ela “Você me traiu! Sofrerá consequências, tocou para outras pessoas”. Gabriela corre até o banheiro onde sua mãe toma o banho, gritando pela mesma, sem ouvir resposta, abre a porta, ela esta caída no chão do box, com sangramento no nariz. Desespero, medo, falta de reação. Chama uma ambulância, chorando tenta colocar uma roupa na mãe, acha um vestido, os médicos chegam, vai para o hospital, são três horas esperando uma notícia, já não tem mais lágrimas para chorar, seus olhos já ressecados, uma médica vem em sua direção. “Quantos anos tem?” pergunta olhando para uma menina desamparada sentimentalmente. “vou fazer quatorze”, a médica sem falar nada, a abraça, bem apertado, Gabriela entende o significado e desaba em choro, sente suas pernas fracas, está sem chão, sem mundo, não tem mais ninguém.

Sua mãe teve uma morte inesperada. Ela sabia o que havia acontecido, teria sua vingança.

Duas semanas após a perda da mãe, Gabriela está em casa, vai ao piano, abre o protetor de teclas, se senta, começa a tocar, levanta vai a cozinha, acende uma das bocas do fogão, abre o forno, abre o gás, volta para o piano.

A música nesse dia está eloquentemente diferente. Os minutos passam até que ela finalmente fala “Hoje tocarei sua música, aquela que você sempre quis”, o som toma conta do ambiente, da casa, como se fosse a melodia para seu funeral, esperando o gás do forno aberto entrar em contato com o fogo aceso, uma explosão, fogo na cozinha, se espalhando rapidamente tomando conta da sala, a ironia da vida, Gabriela continua sentada, tocando a música favorita do piano, aquela que ela nunca tocou, mas sempre soube, enquanto as chamas tomam conta da casa, ela ri, ri alto dizendo que aquela é sua vingança por ter levado seus pais, que irão morrer todos juntos ali, ouvindo uma última música.

Lá fora da para ouvir alguns gritos de pessoas tentando abrir a porta do apartamento, em vão, de longe já dá para ouvir algumas sirenes, o fogo toma conta de tudo, o piano grita, mas ela não para de tocar.

Um silêncio. A morte está no ar, o piano já não toca mais, os gritos sumiram, Gabriela esta consumida pelo pelo incêndio, um fogo que ela própria causou para matar o mal do piano.

Quando os bombeiros finalmente chegam, arrombam a porta, o apartamento está destruído, há um corpo caído na sala, próximo a um velho piano meio consumido pelas chamas, o fogo já está sendo controlado. Um corpo de mulher, jovem, possivelmente adolescente.

Os bombeiros controlam o fogo todo, a polícia também chega com sua equipe de investigação, o corpo é levado, os vizinhos tentam entender o que aconteceu. Um policial olha para o piano, suas teclas ainda intactas, aperta um “SI”, um silêncio toma conta do ambiente.

Nem sempre o fogo vence tudo, nem sempre o bem vence o mal, nem sempre damos valor as nossas vidas. Ouçamos mais música, ouçamos mais o mundo, toquemos mais o velho piano.

J A Grushazen
Enviado por J A Grushazen em 19/09/2018
Código do texto: T6453132
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