O sopro do dragão

“Minha testemunha é o céu vazio.”

Jack Kerouac

Não existe crime perfeito, pensou André, enquanto apagava seu Marlboro na palma. Deitado de costas contemplava a copa da árvore e sentia o leve cheiro de queimado que vinha da mão. Alçou o corpo, sentou-se e vislumbrou as grossas nuvens de fumaça que evolavam da grande construção. Aquela fumaça se juntaria a outras e formariam desenhos imperfeitos nas nuvens. Alguma criança em algum lugar estaria olhando para cima e sendo enganada por sua própria imaginação.

Fez uma cara de fratura exposta e retirou da mochila as luvas usadas. Depois, retirou as botas, as meias e o restante das roupas. Deu uma golada no Dreher enquanto punha roupas novas de atleta, corredor dos bosques. Por fim, já vestido, juntou gravetos e ateou fogo ao montículo comprometedor. Deu mais um gole e jogou a garrafa no fogo. Ela explodiu como uma mini-galáxia: fez surgir um mundo novo.

Não se pode ganhar todas e André estava calejado de perder; era o campeão dos perdedores. Perdeu o pai ainda bebê, perdeu o amor da mãe para o padrasto, perdeu os avós em um acidente. Perdeu tudo o que um ser humano normal pode perder sem perder a vontade de se vingar. Não de todos, só dos vencedores. Então, começou incendiando um milharal. Depois, incendiou uma casa de campo. Nunca teve cúmplices, nem testemunhas, por isso nunca foi apanhado.

O penúltimo fogo, entretanto, ganhou uma condição espetacular. Ao riscar o fósforo e contemplar a labareda, por instantes, esqueceu-se do galão de álcool. A explosão o atingiu no peito e o fogo inverteu sua missão: passou a queimar a mão e o peito de quem o alimentava. Foi socorrido. Salvou-se e salvou também sua ira. Deu um tempo nas loucuras, mas não parou de sonhar. Sonhava com um mar de fogo devorando e lambendo a superfície da terra.

Antes de ajustar os fones de ouvido deu uma última olhada para trás e sorriu. Já era hora de voltar para a civilização, pois é impossível sentir ódio no paraíso. Peixes, aves, cascatas e árvores acabariam umedecendo a pira de sua fúria. Como um São Francisco nostálgico, relanceou a vista para o arvoredo e viu o pássaro no galho do ipê entreabrindo as asas e sendo levemente violado pelo veludo do vento.

Fechou os olhos por um instante e lembrou-se. E a lembrança veio viva: um menino que ele era, de cabelos vermelhos e sardas. Pequeno ainda e já correndo. Correu com a roupa em chamas. Atrás dele vinha a professora, o porteiro e alguns colegas que riam. Um deles não corria. Estava parado, encostado ao velho muro da escola e tinha um caixa de fósforos na mão. No rosto um sorriso mordaz. Nunca mais o viu com aquele sorriso. Nunca mais sorriu dele. Seis meses depois teve que ser transferido de escola porque o risonho foi encontrado desacordado no banheiro com a roupa parcialmente queimada e a boca cheia de excrementos.

Abriu os olhos num átimo e não havia mais fogo nem lágrimas. Apenas a secura do semblante e um coração que batia alucinado. O pássaro já não cantava. O silêncio era a senha. Pôs a mão por entre a camisa e sentiu as cicatrizes. Sorriu intimamente. Olhou novamente para a casa do vale em chamas. Talvez um dia sentisse saudades. Por enquanto sentia alívio e a consciência de um dever pessoal cumprido. Então caminhou...

Depois de sair do bosque, atravessar um descampado e adentrar a alameda, parou um pouco para ouvir o ruído do trânsito. A quatro quadras dali o tráfego pestilento do dia soltava seus rugidos de fumaça. Olhou para a fila de automóveis na pista abaixo do bosque e pensou - ou suponhamos que tenha pensado - que bela fogueira daria todos esses carros.

make
Enviado por make em 20/09/2018
Reeditado em 20/09/2018
Código do texto: T6454532
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