ELE SABE 8

"É irônico que a primeira coisa que o venha à cabeça ao recuperar-se de mais este descuido seja uma compreensão já tão antiga. Era nisto que pensava todas as vezes que se recordava do seu crime: como tudo, algum dia, ele teria suas consequências. Neste caso, a vingança de uma vítima que só seria saciada pela morte dos seus algozes. Uma resposta justa, para o mal que sofreu primeiro. Marcus não seria tão estúpido a ponto de questionar sua sede de sangue. E quem seria, afinal? Edgar, talvez.

Não. Fausto."

[PARTE OITO]

Fausto sempre soube compreender o peso dos seus atos e, por este exato motivo, ele os fazia. Diferente de Edgar. Edgar nunca precisou descobrir o preço dos seus erros; eles o eram descontados sem que ele sequer tivesse tempo de lamentá-los. Já Fausto, melhor que ninguém, conhecia com uma exatidão impressionante a causa e o efeito de tudo. Destacava-se entre eles por razões diversas, mas havia nele um traço específico que sempre os tirara o sono. Para Fausto, não havia nada que fizesse que fosse um equívoco. Suas ações, todas, eram preciosa e meticulosamente calculadas. Fosse como fosse, aquilo que fizesse era nem mais menos do que pretendera fazer.

Se havia alguém menos capacitado para arcar com seus próprios malfeitos, era ele. Possivelmente porque, de todos, ele era o único que tinha verdadeiro prazer em assistir e infligir sofrimento ao outro. Estava aí a pior das suas características. Fausto era um homem violento. Sempre foi assim, aliás. Desde criança; até a adolescência; mesmo quando adulto. A profissão, tão óbvia quanto contraditória, confundiu a uns e afastou a muitos. Era estranho que alguém tão perverso encontrasse satisfação em resguardar a vida de outras pessoas, a não ser por aquelas às quais cessaria livremente.

Iniciou sua carreira como policial militar na cidade aonde a maioria deles havia se mudado, assim como tantas pessoas faziam. Uma cidade grande, turística, conhecida e desordenada. Seu eventual posto de 1º Sargento foi de enorme ajuda no plano que agora os assombrava, mas a fama desonrada que corria pelos corredores marcara o seu nome. Sádico e detalhista, Fausto se tornava a cada movimento o elo mais fraco do grupo. Era apenas a sua incontestável dedicação a minúcia, tão prezada pelos colegas, a única coisa de que os demais não poderiam abrir mão. Não havia nada a temer, ele os assegurava, provas não haviam. Realmente, era incontestável. Fausto não deixava vestígios. A menos que, por algum motivo, ele o quisesse – como já havia feito. Era claro, e tarde demais, mas ele poderia tê-los traído. Seja lá por qual razão – ainda a ser descoberta –, ele bem poderia.

Apesar de por anos ter seu nome ligado a inúmeros casos de corrupção, Fausto Aquino dos Anjos escapara ileso das acusações que o acompanhavam e partira há menos de dois anos para os Estados Unidos. Junto a esposa e dois filhos, ele vive hoje de rendimentos de aplicações na bolsa de valores. Uma prática comum entre eles, mas que dera frutos em tal grau somente a um. Ao menos era o que aparentava, embora não explicasse totalmente suas posses exorbitantes. Em todo caso, o melhor a ser feito era mantê-lo distante. Contando que estivesse longe, eles não o questionariam – como os era de praxe. Agora já não importa muito quem deles está próximo, Marcus não suportaria a presença de nenhum.

Ele ainda não sabe, mas Fausto está de volta.

Marcus não consegue conceber a possibilidade dos outros tramarem qualquer plano, juntos. Restara-o nada e ninguém em quem pudesse confiar, e podia apostar que todos aqueles que ainda foram poupados pensavam o mesmo. Sem sombra de dúvidas, ele precisava fugir. Por enquanto manteria seu primeiro destino, a pousada dos pais de Fabrícia – uma velha amiga, dos tempos de escola. Nenhum deles sabia da sua existência; nem da pousada, nem da mulher. Por sorte jamais teve a oportunidade – ou motivos – de apresentá-los. Estaria seguro lá, se tudo ainda estivesse no seu lugar – embora isso, porém, ele não fosse se arriscar a descobrir. Bastaria uma ligação e alguém poderia esbarrar em algum rastro do seu paradeiro. Apenas a sua chegada lhe diria com certeza qual seria o rumo deste plano – que na prática mal havia.

Já está escuro. A parada está próxima. Menos de 3 km o separam de uma noite comum de descanso inocente – Marcus fabula. Teria se comunicado com Fabrícia, não estivesse em tamanho perigo. Mais à frente, o caminho que supostamente o levaria a fachada do edifício conduz os olhos até um portal. Por ele, luzes iluminam para além do jardim. As árvores e arbustos, que pouco se veem na visão limitada, se espremem junto a parede que os contêm. Pelo modo como o brilho fluorescente se projeta para fora da passagem, parece que lanternas estão postas ao longo do chão. Como em uma pousada, imagina. Não que seja possível ainda dizer ao certo. Os muros altos escondem a vista. Ele não sabe se o plano está mantido, mas é certo que o lugar não estará vazio. Marcus avança com a lentidão excessiva a que jamais antes se permitiria e reserva às últimas dúvidas um tempo razoável da tarefa que executa.

Desfizera-se dos seus laços sanguíneos. Subjugara-se a valores alheios. Utilizara-se de meios escusos. Participara de esquemas indevidos. Foi ele quem começou tudo, e ele o terminaria. Aquele a quem mais culpava já estava morto. Edgar não pagaria pelos seus atos, uma vez que nem a cadeia o apartaria do mal que fizera. Falta-lhe apenas culpar a si. Agora que há poucos metros, a imagem da pousada já se assenta na paisagem. Manobra o carro em direção a passagem. Atravessa a entrada sem preocupar-se demais com o gosto amargo que o vem a boca. Uma madeira de tom laranja cobre a totalidade da casa. A cor alegre de alguma forma o assusta. Das nove janelas três estão acesas. Através da porta aberta atrás da cerca que corre a varanda, ele vê uma silhueta transitar pelo interior da pousada, mas é a sombra de mais alguém que o chama a atenção agora. Nem um minuto se passa e já está ofegante.

Desce os curtos degraus da varanda uma mulher franzina de cabelos batidos. A noite não o ajuda a reconhecê-la, mas aquela não era Fabrícia. Ele mesmo sai do carro e decide por cessar o medo que tem o impedido de agir normalmente. É preciso lucidez. Pouco interessa quem seja aquela pessoa. Além do mais, sua arma está a mão. Assim que incorre em cálculos e planos alternativos, a reconhece. É Olga, com a mesma aparência centrada de sempre. Ele não sabia que ela planejava vir. Se a mente inabalável optara também por juntar-se a eles, talvez ele devesse rever seu plano de fuga. E ele o faria, fosse este o real motivo da sua vinda. Não era.

Ela sorri para ele. Parece bem. Descansada. Como se estivesse aqui muito mais do que um dia.

– Olga?

– Marcus.

– Então devo presumir que sua estadia aqui é mera coincidência?

– Gostaria que sim, mas não.

– Parece que ele tem entrado na cabeça de todos, até nas mentes mais firmes.

– O medo é também uma resposta coerente.

– Concordo.

– É claro que sim. Mas não é a mim a quem deve temer.

– Não importa se é mando dele ou não. Já sabemos que quem participa também comete o crime.

– Então está com medo de mim agora.

– Uma análise banal para o custo dessa consulta.

A grama farfalha. Quatro passos são ouvidos ao fundo.

– Pois não deveria – Ele ouve, às suas costas. A voz inconfundível. Marcus não adia a cena; vira-se sem mais demora.

– Você, Fausto, é digno de medo em qualquer ocasião possível.

– Mas nunca houve uma tão especial quanto esta.

Olga vem chegando mais perto do seu encalço e Marcus assiste a mais uma etapa da sua previsão seguindo o seu curso. Estava bem ali o propósito de toda aquela vingança. Eles passariam a temer até mesmo à presença um do outro.

Em Edgar jamais confiara. Solano, se necessário, seria capaz de tudo. Hilda dispensava o uso do bom discernimento para todos fins a que se dedicasse. Alessia agia apenas em benefício próprio. Fausto, em última instância, comprometia-se mais com seu gosto pela perversidade do que com qualquer um. Embora sempre tão assustadoramente sóbria, Olga - por outro lado - jamais o representou uma ameaça. De agora em diante, porém, ela também o seria. Pune-se instantaneamente pelo pensamento contra o qual vinha tentando lutar: ainda que nutrissem entre eles uma relação incompreendida, deviam um ao outro um trato menos vil.

Não era verdade. Estaria se enganando para além da ingenuidade se buscasse por um tempo em que algum um deles cultivara quaisquer virtudes. Não era este o caso. Não é que eles tenham mudado. Nem que só agora tornaram-se pessoas tão desprezíveis. Tudo estava igual. É ele que nunca antes fora a vítima. Continuavam, todos, o que sempre foram - ele, inclusive.

– Já estou de partida. – Ela o diz.

Marcus a encara por um momento; os olhos constrangidos. Eles a pedem em silêncio que o permita o mesmo. Não seria necessário por em palavras a sua resposta, mas é Fausto quem o faz – por fim.

– Não.