A Exposição

- Eu lamento, Nolde. De verdade.

Emil Nolde, enquadrado pela porta aberta de sua residência, encarou seu interlocutor de braços cruzados. Gerd Bachmayer, chapéu e terno escuros, um pin do Partido Nazista no bolso direito do paletó, parecia menor ali, dois degraus abaixo, do que era na verdade. Mas os dois agentes da Gestapo parados atrás dele, sobretudos e chapéus claros, apesar da absoluta falta de expressão, transmitiam um senso de urgência. E, sim, mesmo dois degraus abaixo eram mais altos do que Bachmayer. Os olhos deles, gélidos e azuis, encontraram os de Nolde.

- Lamenta mesmo, Gerd? - Nolde não pode evitar uma ponta de ironia na interrogação.

- Ordens são para serem cumpridas... mesmo quando não apreciamos o teor delas - prosseguiu Bachmayer num tom calmo.

- Sim, estou a par disso... - retrucou Nolde. - Quando você ainda era um garoto de calças curtas, eu já fazia parte da seção dinamarquesa do Partido Nazista. Ah, e também já era um pintor consagrado!

- Estou a par disso, Nolde. Como eu disse, lamento que a ordem tenha sido dada, mas... - passou a língua pelos lábios finos. - Você sabe, o Führer não considera a chamada “arte moderna” como uma expressão genuinamente germânica... ele deixou isso muito claro há três anos. Que você tenha continuado a pintar depois disso, deve-se muito ao seu prestígio dentro do Partido... mas agora, a tolerância chegou ao fim. Queira nos dar licença, por favor.

A solicitação havia sido feita num tom respeitoso, mas firme. Nolde suspirou. Não havia razão para bancar o herói naquela hora. Afastou-se para um lado e fez uma vênia sarcástica perante Bachmayer. Os dois agentes tomaram a frente e passaram por Nolde como se ele não existisse. Bachmayer entrou em seguida e fechou a porta atrás de si.

- Deem uma busca na casa toda... se encontrarem algum quadro, tragam para cá - ordenou.

Enquanto os agentes subiam para o andar superior, Bachmayer puxou uma cigarreira de prata do bolso das calças e acendeu um cigarro, sem dar importância à Nolde, que continuava parado de pé, encarando-o de braços cruzados.

- Parece que você não andou vendo as campanhas antitabagismo do Ministério da Propaganda - comentou Nolde.

- Minha atividade é muito estressante, Nolde. Permita-me que fume - atalhou Bachmayer.

E dando uma baforada na direção do pintor, comentou em tom displicente:

- Sabia que você vai ser a principal atração da exposição?

- Uma exposição? Com as minhas obras? - Indagou Nolde incrédulo.

- Exatamente - acedeu Bachmayer. - Goebbels assim determinou: “recolham tudo do Nolde, retirem seus quadros dos museus e coleções de arte; vamos fazer uma seleção especial do melhor dele”.

E, dando de ombros:

- Ou, do pior, vai saber. Todavia, você vai receber o destaque que merece.

- Estão confiscando minhas obras para uma exposição de arte? - Insistiu Nolde.

- Sim, uma exposição de arte em Munique... mas não qualquer tipo de arte - redarguiu Bachmayer com um sorriso cínico. - Você já deve ter ouvido o termo: “arte degenerada”.

Nolde engoliu em seco.

- Esse era um termo aplicado somente às obras feitas por judeus... - murmurou.

Bachmayer soltou outra baforada displicente.

- Alegre-se... você estará em companhia deles na exposição. Para todos os efeitos práticos, agora são todos judeus. Ou gente com sérios problemas mentais, o que dá no mesmo.

Nolde ficou em silêncio, incapaz de dizer uma palavra. Pouco depois, os dois agentes desceram do andar superior, mãos abanando.

- Não encontramos nada - declarou o primeiro a chegar.

- Ótimo. Seria desagradável se você estivesse desrespeitando a sua proibição de pintar, meu caro Nolde - declarou Bachmayer num tom falsamente cordial. Ergueu o chapéu em saudação e fez um sinal para os agentes. Saíram pela porta da frente, fechando-a suavemente atrás deles.

Nolde ficou alguns minutos ali parado, sem se mover. Finalmente, descruzou os braços, foi até a porta e a trancou. Em seguida, subiu para o seu quarto, no andar superior. Agachou-se ao lado da cama e puxou de sob ela uma velha mala de viagem, de couro gasto. Abriu os fechos e contemplou seu tesouro: aquarelas que pintava em segredo, para que sua atividade não fosse denunciada pelo cheiro de tinta a óleo, que usava antes da proibição.

- Cores, cores... - murmurou ele, enquanto repassava as imagens abstratas. - Mesmo na total escuridão, eu ainda continuo a vê-las.

Tornou a guardá-las em seu esconderijo e sentou-se na cama, cabeça entre as mãos.

- [06-10-2018]