A minha menina?

Sempre fiquei impressionado com essas coisas que falam sobre os espíritos e sobre a “bendita” morte, mas nunca me envolvi completamente nestes assuntos. Tenho muito respeito com as pessoas que estão no outro lado, então, por escolha, não leio, nem tento aprender sobre a “matéria”. Mesmo assim, ouço muito os meus amigos falarem sobre fantasmas e suas histórias macabras. Eles acreditam cegamente no mundo pós-morte.

Na minha adolescência, meus amigos e eu, resolvemos fazer aquela tal “brincadeira do copo” em que as pessoas diziam ser do diabo e eu, por ser o mais novo do grupo, sofria com os demais que me assustavam muito. Eles contavam histórias horripilantes que sempre me faziam ter pesadelos à noite, isso quando não dormia com as luzes ligadas do meu quarto. Nos acampamentos da família sempre havia uma hora em que contavam histórias de terror antes de dormir, para deixar todas as crianças com medo e, como de costume, era eu o mais medroso de todos. Hoje em dia, não acredito mais em muitas coisas, apenas sei que existe um Deus em algum lugar neste mundo imenso.

Em um domingo de sol, eu resolvi dar uma volta na praça que fica a poucos metros da minha casa. É uma atividade que faço quase todos os finais de semana, de todas é a que eu mais prefiro, acredito ser um exercício completo para o corpo e para a mente. Durante o meu percurso, percebi uma menininha chorando em um dos bancos da praça. Achei estranho, pois ela estava sozinha sem ninguém por perto. Sem dar muita importância, continuei minha corrida como de costume. Acabei dando mais três voltas na praça ouvindo os meus pensamentos mais malucos possíveis. Ao final da terceira volta, notei que ela continuava no mesmo banco chorando muito. Seus cabelos eram pretos e sua pele bem branquinha. Estava vestindo uma blusinha rosa bem fininha que até eu conseguia ver as suas costelas marcadas na blusa. Ela me lembrava uma criança que eu havia conhecido, mas não conseguia me lembrar de onde e quando. Resolvi me aproximar e ver se estava tudo bem. Ela poderia estar perdida dos seus pais. Ao chegar perto da garota, que imaginei ter entre cinco e seis anos de idade, disse:

- Olá, tudo bom? Queria saber se você está bem.

Ela estranhando a minha pergunta e muito tímida respondeu:

- Sim, estou bem. Só que meus pais acabaram me perdendo e estou com medo que fiquem bravos comigo. – Algumas lagrimas escorreram sobre a sua pele viva - Eu não tive culpa nenhuma, muito menos o meu primo, Sam. Tenho certeza que foi um simples acidente. Ele estava cuidando muito bem de nós.

Seu rosto ficou tenso naquele momento, suas mãos se mexiam rapidamente e acrescentou:

- Eu juro que foi sem querer.

Logo fiquei preocupado, será que havia acontecido algo com o primo e ela estava com vergonha de me dizer? Sem hesitar, resolvi ajudar a encontrar seu primo e seus pais. Não poderia deixar a menina ali, sozinha, chorando, perdida. Resolvi questioná-la para tentar conseguir algumas pistas do que havia acontecido e assim levar ela direto para casa.

- Qual é o seu nome?

Com um olhar tenso e um leve sorriso saindo no cantinho da boca me respondeu:

- Meu nome é Clara, e o seu deve ser Paulo, estou correta?

- Isso, como você sabe o meu nome? - Fiquei surpreso com aquela abordagem. Como poderia saber o meu nome se mal havíamos começado a conversar?

- Eu sei, eu vi em sua camisa.

Foi quando notei que estava usando a camisa que minha esposa fez no nosso aniversário de casamento.

- Certo, você é muito esperta! Está com quem aqui na praça, afinal?

- Estava com o meu primo, mas não estou mais. Ele está distante de mim agora.

- Sabe onde é esse lugar distante? – Logo pensei que ela não deveria saber, se estava sozinha é porque não tinha noção de onde encontraria seus familiares.

- A única coisa que sei é que ele foi para outro lugar. Não sei onde realmente é este lugar. – As lágrimas novamente voltaram a escorrer pelo seu rosto - Gostaria de me ajudar a encontrar com meus pais? Poderia fazer este favor por nós?

Não podia deixar aquela pequena menina sozinha em uma praça. Em seguida perguntei se estava com fome. Muito educada, me respondeu que não. Segurei em sua mão. Elas tremiam e estavam geladas. Disse que tudo ficaria bem, que encontraríamos os seus pais sem nenhum problema. Falei para tentar acalmar ela, mas, na verdade, quem precisava ser acalmado era eu. O meu coração palpitava com toda aquela confusão.

No caminho fui conversando, tentava fazer alguns truques de mágicas para ver se conseguia arrancar um lindo sorriso dela. Só que, na verdade, quem eu estava enganando? Eu é quem precisava me distrair e não a menina.

- Quer um sorvete, Clara?

- Não, obrigada. - Me respondeu rapidamente. Deve ter sido educada a não aceitar comida de estranhos – Estou satisfeita Paulo.

Clara era muito inteligente para uma menina de cinco anos, sabia exatamente onde morava e tinha um diálogo muito bom, com ótimas palavras. Para a minha sorte, ela morava pertinho de onde estávamos e chagamos rápido.

- Chegamos Clara, vamos chamar seus pais, pois devem estar muito preocupados com você.

- Paulo, gostaria que fosse na frente e falasse que estou aqui no pátio esperando por eles. Estou com medo da reação que possam ter quando me verem. Tenho certeza que eles não vão entender nada. – Seus olhos encheram de água naquele momento.

- Ok. Espera aí, vou trazer eles até você.

Fui em direção a porta e toquei a campainha. Alguns segundos se passaram e ninguém me atendeu. Resolvi bater na porta. Assim como antes, nada. Logo imaginei que não deveriam estar em casa. Devem ter ido em busca dela, pois quais pais não se preocupariam com o desaparecimento de seus filhos? Neste momento a porta se abre.

- Olá, quem é você? – A mulher que abriu a porta estava com os olhos vermelhos, parece que estava chorando a tarde toda. Só pode ser a mãe da menina.

- Oi, boa tarde! Me chamo Paulo, eu vim trazer a sua filha Clara de volta. Encontrei perdida, na praça aqui próxima, chorando.

Neste momento aquela mulher caiu de joelhos na minha frente, chorava muito que sua voz saiu fina e pausada:

- O que você está pensando, rapaz? – Seu rosto ficou vermelho de raiva. Parecia que iria me matar com os olhos. Só não tinha forças para isso.

- Calma, minha senhora! – Respondi seco e com medo. - Ela está ali no pátio, apenas olhe. - Quando apontei na direção dela, percebo que a Clara não estava mais onde havia deixando quando fui bater na porta. - Mas... – Fiquei sem palavras - Minha senhora, ela estava ali, aqui o tempo todo.

Quanto mais eu me explicava mais a mulher chorava. O sentimento do seu choro era desesperador. Eu não conseguia entender o que se passava naquele momento.

- Entre. – Falou a mulher um pouco mais calma, mas ainda se recompondo. – Acho que devemos conversar um instante.

Assim que entrei levei um susto enorme. Ali, naquele ambiente havia uma família chorando. Alguns inconsoláveis.

- Olá, sou o Pai da Clara – Disse um homem vindo em minha direção com a mão estendida. - Percebi que estava falando com minha esposa na porta. Deve ser amigo ou professor da minha Clara, estou certo?

- Sim. Não. – Não sabia o que responder naquele momento. - Estava explicando para ela que eu a encontrei perdida no parque. Como ela me disse, o seu primo tinha ido a outro lugar e se perdeu dela. Ela está muito triste, chorando muito.

- Sente-se, por favor. – Apontando para um sofá onde deveria ter mais umas três pessoas já sentadas nele.

Foi quando me dei conta que Clara deveria estar na rua, novamente perdida. Deveria ter algum tipo de problema que não obedecia aos seus pais. Aquele senhor me questionou:

- Seu nome é? Desculpa, não fomos apresentados ainda.

- Paulo. Paulo Augustus.

- Muito prazer, Paulo, meu nome é Rafael. Infelizmente o que tenho para falar é que... – Não estava conseguindo falar, começou a gaguejar naquele instante - Clara e seu primo, Sam acabaram de falecer em um acidente de carro. Isso aconteceu ontem pela manhã.

Rapidamente questionei:

- Como senhor? Não é possível. – Levantei do sofá e fui em direção a janela - Ela estava esse tempo todo comigo, trouxe ela até aqui para falar com os senhores. Já estava nervoso e suando frio apontando para o pátio da casa.

Em um rápido momento notei que existia um livro em cima de uma mesinha com o título, “Evangelho Segundo o Espiritismo”.

- E ela disse algo para você? – Falou Rafael, com um tom de curiosidade.

- Apenas comentou que estava perdida de vocês. E que ela e seu primo não tinham culpa de nada. Que não deveriam ficar bravos com eles, pois não tinham culpa de nada do que aconteceu ontem. Naquele momento percebi o porquê as pessoas passavam por “nós” e nos olhavam com cara de assustados. Outras até riam da minha cara. Deveriam me achar um louco que falava e brincava sozinho.

Não entendia mais nada do que estava acontecendo, comecei então a metralhar aquele rapaz de perguntas:

- Como aconteceu isso? Quando foi? Por que ela me procurou para falar com vocês? O que eu tenho a ver com isso? O senhor acha que estou mentindo? – Suava cada vez mais.

- Calma meu rapaz. – Disse aquele sujeito calmo na minha frente colocando a sua mão no meu ombro. – Vou explicar tudo direitinho.

- Estou esperando as respostas. – falei, sentando no sofá novamente (Como se eu fosse importante nessa história).

- A praça aqui próxima tem um cruzamento perigoso. Um carro a toda a velocidade atingiu o lado do carona, fazendo com que a minha filha ficasse esmagada entre as ferragens, ela não aguentou os ferimentos. Já o seu primo por não estar de cinto de segurança, acabou batendo a cabeça no vidro do carro, fazendo migalhas. – Sua face voltou a ficar triste. - Isso é o que sabemos até agora. Pode ser que o Sam estivesse em alta velocidade. Não sabemos bem, mas alguém foi imprudente.

- Meu Deus! – Fiquei sem palavras na hora. Aquela história me deixou muito assustado.

Não conseguia pensar no que fazer. Se tentava ajudar a família ou iria embora sem entender, acreditando que tudo aquilo não passava de uma ilusão. Meu medo era grande, me sentia perdido naquela situação.

Acabei ficando mais um tempo com a família expressando meu singelo apoio. Deve ser muito difícil perder um filho. Graças ao bom Deus, eu nunca havia passado por esta dor. Todos presentes foram muito simpáticos comigo. Conversando um pouco mais com os pais dela, descobri que eram espíritas. Acreditavam que Clara veio ao meu encontro para que eu pudesse tentar solucionar o caso e passar uma mensagem de carinho para seus familiares.

Jamais imaginei que este tipo de situação poderia acontecer, ainda mais, comigo! Sou uma pessoa que acredita em Deus, mas não sou muito seu fã. Tenho minhas dúvidas em suas decisões, apesar de muitos julgam que Deus faz as escolhas certas.

Alguns dias após o nosso encontro “meio que inusitado”, os pais de Clara entraram em contato comigo. Me relataram que o resultado da perícia havia saído e que o seu primo Sam não estava em alta velocidade no momento da colisão e foi averiguado que ele estava usando o cinto de segurança, que acabou rasgando ao meio durante o momento da colisão. Por ser um carro mais antigo, deveria estar gasto, fazendo com que arrebentasse quando deveria ter sido útil.

Suas palavras eram de agradecimento. Depois da minha aparição, sua família começou a questionar se realmente poderiam culpar Sam pela morte trágica de sua filha, pois não teve o cuidado necessário com a sua Pequena. Confiavam muito em Deus, mas o acidente fez com que sua crença fosse abalada e colocada à prova. Enfim, estávamos falando de uma menina que poderia ter sido morta pela imprudência de seu jovem primo. Acreditam que, além de ajudar eles a refletirem, eu havia ajudado Clara a encontrar o caminho da luz e da paz de seu espírito.

Depois dessa conversa por telefone não mantemos mais contato. Não sei muito bem como funciona essas coisas de espíritos e sonhos, mas quase todas as noites sonho com uma menina sorrindo e correndo em um bosque rodeadas por flores azuis e amarelas. Tenho a sensação do seu vestido ser da mesma cor que Clara usava no nosso “encontro”.

Após se passar um ano desta surpresa em minha vida, resolvi entrar em contato novamente com a família para dar uma notícia:

- Olá! Tudo bom? Só estou ligando para contar que serei papai e que o nome da minha filha será Clara. Espero que não se importem!

Segue no Inta: @francisbetim

Francis Betim e Jéssica Souza
Enviado por Francis Betim em 07/11/2018
Reeditado em 07/11/2018
Código do texto: T6497049
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