Então, é assim que acaba?

“Eu, que chamava de amor a minha esperança de amor.”

Clarice Lispector

Minha namorada amava mais aos mortos do que a mim, eu supunha. No entanto, quando chegava à noite ela se despia de toda frieza e entre uma garrafa e outra de cerveja rolávamos no sofá com roupa e tudo e cavalgávamos um ao outro com ímpeto e fome. A bem da verdade, de tempos para cá nossa relação esfriou um pouco. Tudo começou depois que ela passou a freqüentar velórios, indiscriminadamente.

No início atribuí sua atitude apenas à curiosidade. Depois entendi que ela agia assim porque gostava. Deu o que pensar: como alguém pode se sentir bem em visitar defuntos, parentes de defuntos, repetir incansavelmente, “meus pêsames, meus pêsames, sinto muito, é lamentável, condolências à família, à viúva, etc?. Principiei a sentir ciúmes de cadáveres.

Certa noite havíamos combinado de sair, comer uma pizza. Chegada à hora marcada ela não veio, fui a casa dela e ela não estava. Liguei, irritado e macambúzio. A voz que me atendeu não parecia deste mundo. Notei, pelo tom cansado, que estivera chorando. Relembrei-a do nosso encontro. Ela me pediu que fosse a tal endereço dentro de meia hora. Saí queimando pneus, pronto para um princípio de discussão.

Quando cheguei próximo ao endereço - um prédio antigo, mal pintado de cinza - deixei o carro sob uma velha árvore na penumbra morna da noite calorenta e segui a pé o meio quarteirão que faltava. Andava pelas sombras das árvores como se fosse um recluso, um desconfiado. Subi os três degraus que separavam a porta de entrada do recinto fúnebre do meio fio. O que vi acabou de encher a taça da minha desconfiança. Ela estava de pé, sozinha e olhando o morto como quem olha um beija-flor: espantada.

Tive que chamar seu nome duas vezes antes que ela pudesse perceber minha presença. Antes de se dirigir a mim ainda deu uma última olhada no finado como quem se despede a contragosto. A pizza que não comemos azedou no meu estômago. Peguei sua mão e saí quase arrastando-a daquele recinto. No carro, disse apenas que a levasse para casa, pois estava cansada e indisposta.

Chegamos e enquanto ela tomava banho eu folheava algumas revistas aleatoriamente sobre o balcão da sala. Achei que já era hora de uma explicação e perguntei assim que ela saiu, ainda com a toalha enrolada no corpo. O que você fazia sozinha contemplando aquele morto como quem contempla um pôr do sol? Jogando os cabelos molhados para trás, ela sentou-se no braço do sofá e articulou uma resposta exótica:

-Estava diante de uma tragédia que se transformou em estatística.

Sorri alto e debochadamente enquanto abria a sua geladeira à procura de uma cerveja. Ela deslizou para o sofá e disse que entendia o fato de eu estar chateado, pois havia esquecido do nosso encontro. Bebi toda a latinha antes de responder-lhe que eu a amava e não seria um morto, ou alguns mortos, que poria fim à felicidade dos vivos. A luz dos olhos dela espalhou-se pelo rosto inteiro e sua língua contornou sensualmente a boca, dando um leve estalido ao final. Pegou-me a mão e conduziu-me até o quarto.

No outro dia, após a jornada de trabalho, recebi uma mensagem dela que dizia que não queria mais mentir para mim e que se eu estivesse a fim de comer aquela pizza hoje era só ir ao lugar de sempre. Em quinze minutos eu já estava limpo, leve e dirigindo-me para o Savana Pizzas. Antes de estacionar ainda pude vê-la sentada à ultima mesa da lanchonete com o cardápio nas mãos. Senti um leve tremor que atribuí ao cansaço do dia e à rapidez das circunstâncias. Desci do carro e meus pés conduziram um corpo cansado e inquieto. Cheguei à mesa, beijei-a suavemente e tentei sentar-me. Com uma força insuspeita ela segurou-me os quadris e lançando-se aos meus braços chorou de soluçar.

O que aconteceu, amor, eu perguntei com receio da resposta. Ela olhou-me de forma resoluta e, em vez de responder, silenciou o meu medo com um grande, molhado e faminto beijo. Depois disso, abriu-me o apetite e perdi a conta de quantas fatias de pizza e garrafas de cerveja consumimos. Saímos do local a gentil pedido de uma exausta garçonete. Deixamos o carro no estacionamento e fomos de ônibus para minha casa.

Em casa mal chegamos, ela deixou sua bolsa sobre o sofá e pediu-me que se sentasse ao seu lado, pois a história seria longa. Disse ainda que não contaria tudo, mas contaria a parte mais importante caso eu desejasse saber. Eu assenti com a cabeça e ela desandou a falar como se tivesse ficado a vida toda amordaçada. Começou dizendo que não pediria perdão porque nada fizera de errado. Eu disse que compreendia e que ainda que ela estivesse errada o arrependimento, por si só, já era digno de louvor.

Sem lágrimas sem pausa e sem vírgulas ela disse que havia um menino e que o menino havia se tornado um homem e que esse homem a amou e foi correspondido, no entanto teve que ir embora procurar emprego em outra cidade, mas prometeu voltar e não voltou. Desapareceu por uns anos, apareceu casado, depois descasou-se, apareceu doente, muito doente, indignado com a vida e com as pessoas não quis mais saber dela e disse que voltaria pra cidade apenas para morrer. Então, ela esperou. Foi a todos os velórios esperando despedir-se dele pela última vez, não por amor, só por piedade.

Ficamos em silêncio um instante. Depois, a abracei e a trouxe para junto de mim e ficamos ouvindo o barulho do vento lá fora. De vez em quando ela limpava o nariz com as costas da mão. Ofereci-lhe um lenço que ela recusou. Olhou-me de frente, beijou minha testa e levantou-se do sofá. Saiu cambaleando na direção do banheiro. Ouvi ela tossindo, depois assoando o nariz. Ouvi também o barulho da descarga. Pouco a pouco foi se apossando de mim uma gigantesca vontade de chorar.

make
Enviado por make em 05/12/2018
Código do texto: T6519900
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