O QUARTO (História de um pai)

* Esse texto é a parte 3 de uma série, chamada O QUARTO. É a perspectiva de abusos pelo ponto de vista de dois irmãos. Leiam os dois primeiros para uma experiência mais intensa e integral. Boa leitura.

Vocês querem mesmo saber a minha história? Então vou contar.

Sou o que estava predestinado a ser: um miserável. Meu nome é Tadeu e aos 9 anos fui estuprado na paroquia do Menino Jesus de Praga durante os preparativos para a minha primeira comunhão. Ele era padre. Não quero com isso dizer que todos os padres são iguais, tampouco questiono a fé de quem quer que seja ou a providência divina. Esse é apenas o meu relato, uma perspectiva da história e sei que tendemos a não ser imparciais quando repassamos a própria vida. Quero só que entendam que isso deixa marcas num homem. Não retiro minha responsabilidade pelo que depois me tornei. Fiz escolhas. Não foram certas, mas assim que sou.

Embora acreditasse num Deus que também é Pai, penso que perdi a fé nos homens. Difícil acreditar ou confiar em alguém depois disso. Você me entenderia se vivesse numa cidade como a minha no interior do Maranhão e desde pequeno dentro de uma comunidade católica ouvisse que o padre é o esteio moral que dita as regras da sociedade e tem a autoridade de Deus para nos perdoar dos pecados.

Pequei muito, eu sei. Como disse sou apenas um homem com a alma marcada pelo mal e que lutou a vida toda para esquecer um trauma e ser alguém na vida num mundo no qual já comecei em desvantagem ao nascer por ser discriminado por minha pobreza e por minha cor.

Quando contei do estupro em casa a reação dos meus pais não poderia ser mais apática. Minha mãe fez que não ouviu e me obrigou a continuar indo a missa e na catequese. Se eu estava em pecado precisava deixar Deus agir em minha vida e me conceder o Seu perdão. Para isso precisava me sacrificar como o Filho Amado e Salvador fez na cruz.

Papai também se omitiu. Numa cidadezinha como a minha em que todos conheciam todos ele não teve coragem de se colocar contra a autoridade religiosa. Ele era um covarde e me fez acreditar que o silencio era o melhor pra mim. Não iria me estigmatizar como uma criança estuprada. Hoje entendo que ele fez o melhor para ele. Tão machista não queria passar a vergonha de ter um filho que seria ridicularizado como bicha, gay, maricas ou qualquer outro adjetivo pejorativo que me imputava culpa por ter transado com um homem, não importando o fato de eu ser uma criança e de que fui obrigado ao ato sendo que jamais foi uma escolha pela qual optei.

Não virei gay por conta disso, nem sei se alguém “vira”. Tornei-me um homem heterossexual vitima e algoz de minha sexualidade e desejo perverso e cruel.

Para meu pai era mais fácil esquecer sua omissão e se entregar as bebidas. Realmente é mais fácil aceitar o mundo, lidar com a culpa e suportar a própria vida vendo-a pela perspectiva do fundo de um copo.

Á minha mãe coube a violência desmedida e me bater quase diariamente. Não sei se ela me batia por minha culpa ou pelas culpas dela. Ela também tinha muitas. Por exemplo só depois de adulto eu soube que enquanto ela trabalhava na casa dos patrões para ajudar no sustento da casa era constantemente abusada. Ela era empregada doméstica na casa de um branco e meu pai trabalhava como ajudante de pedreiro e gari. Ela ficou calada, não podia perder o emprego ou as referencias sendo uma empregada que reclama. Precisava trabalhar e se calar, mesmo quando obrigada a fazer um aborto. Achava que esse era o destino traçado por Deus para uma mulher pobre e negra como ela e que tinha um filho pra criar. O silencio diante de abusos sexuais era a praxe e por isso ela se acovardou e não tomou minha defesa quando precisei. Eu era um lembrete da vulnerabilidade e omissão dela. A minha história era também um pouco como a dela e por isso apanhava todo dia. É difícil conviver com um espelho que reflete a sua verdade.

Aos 15 anos fugi de casa, morei na rua e fui parar na capital. Meus impulsos sexuais passaram a ser direcionadas para de meninas menores do que eu. Na rua e na vida vale a lei do mais forte. Precisei encontrar e demonstrar minha força para sobreviver. Um homem não pode chorar. Já era negro, não podia ser fraco. Quem não bate, apanha. Simples assim.

Mais tarde me entreguei também as bebidas, formei família, casei com uma amiga de boteco e tivemos dois filhos: Estefânia, que era uma magrinha surda e Jackson.

Por muito tempo controlei meu desejo. Não sei se era pecado ou doença, Já não importa. Não vou justificar aqui meus erros, mas entenda que lutei muito contra a carne. Poderia ter abusado da surdinha desde os primeiros meses de vida, mas só fiz quando ela completou 7 aninhos. Nunca toquei no menino. Não era gay. Era só um pedófilo que achava justo ter algum prazer na vida. Prazer que a bêbada de minha esposa já não era capaz de me dar.

Por toda a minha vida adulta juro que foi só a menina que levei pra cama. Não fui como esses tarados de internet que ficam aliciando criancinhas e se masturbando vendo ou gravando vídeos pornôs. Eu nem sei mexer em computador. Afinal ela era minha filha, tinha algum direito sobre ela – eu pensava. Eu sou um homem. Como eu podia resistir a ela de shortinho deitada sobre minha barriga enquanto eu fingia dormir? Se não eu quem iria querer saber de uma menina surda, pobre, mestiça e feia? No fim ela até gostava...Na cama ela era a empregadinha e eu o patrão.

Você deve estar pensando que fui um canalha, mas francamente achava que fiz tudo o que podia por ela e pra manter nossa família unida. Fui um cristão cheio de culpas e pecados, mas família pra mim era algo sagrado que só deve se separar na morte. Errei tentando acerta. Feri muitos tentando me recompensar. Hoje sei que nenhum de nós poderia ser feliz.

O resto de minha história você já sabe. Uma vida de pobreza, vícios e violência. Fui um miserável e deixei que a miséria financeira e moral predeterminassem os meus passos e corrompesse as pessoas que amei.

Minha esposa aguentou o quanto pode, mas no fim cedeu ao mar de lamas onde afundei nossas vidas. Lamento que ela tenha premeditado a minha morte e que no ultimo minuto manipulou o nosso filho para que se tornasse o assassino do pai e da irmã. Ele era menor e inocente e creio que com o tempo irá superar tudo isso. Eu era um simples miserável que teve nas chamas de um quarto um merecido fim.

Agora você sabe a minha história. Como minha filha, eu também comecei como anjo e a vida (ou Deus) me transformou em demônio. Talvez cada um tenha um papel para desempenhar nesse universo.

Sou só um homem. Um miserável. Humano ou desumano já não sei dizer.