O sol se escondeu detrás de uma nuvem azul-acinzentada.

— Vamos tomar chuva no lombo.
— É nuvem passageira. Estamos quase chegando. Mais um taco  de hora e dá pra ver a  sede da fazenda Campo Grande.
Com dificuldade, João  retirou do bolso um pedaço de Arapiraca;  palha de milho e um canivete.
— O senhor gasta, seu Alexandre?
— Agradecido! Não bebo nem fumo.
— Pode enrolar outro  palheiro  pra mim?
— Não se acanhe.
Meio sem jeito, Xandão  cortava e deixava o fumo picado miúdo, cair na palma mão. Aparou as pontas da palha de milho, e derramou o fumo nela. Enrolou. Apertou bem e entregou a João Velho. “ Agora o senhor acaba de fechar.”
João passou o cigarro nos lábios umedecidos, pôs fogo numa das extremidades e puxou uma baforada. Levantou o queixo, e soprou a fumaça  pra cima. Depois, aproximou-se da outra montaria para entabular com o cavaleiro uma conversa mais de perto.
— Arrede,  seu João! meu animal não aceita nada por trás!
— Pareceu manso!
— Tem sestro.
— Se fosse só bicho que tem sestro... Conheci uma polaca na Vila Mimosa... Conto não! É  coisa feia...
— Estou gostando se sua prosa.
— Também tive simpatia por seu modo.
— Por que veio sozinho caçar onça?
— Vingança!
— A fera  deu baixa na criação?
— Não quero falar disso agora. Guardo meu sentimento na bacia dos olhos, para derramar em mim mesmo. Despejo sozinho, lá dentro do coração.
— O senhor me pareceu uma pessoa boa. Acho melhor a gente se tratar de compadre. Aproxima mais o sangue.
— Fico satisfeito com a proposta, compadre Alexandre.  Se Euzébia ainda pudesse ter filho, eu dava pro senhor batizar.
— Fico feliz, compadre Velho.
— Você se resolve,  Xandão. Ou me chama de João, de Joao Velho, ou Nhô Velho. Só não precisa chamar pelo nome completo. Nome de João Ferreira da Silva, quase todo João  tem.
— Respeito seu gosto, compadre Nhô.
—Tem coisa de gostar mais. E a gente gosta muito quando é chamado pelo nome que gosta. Tem apelido que faz mal! Quero dizer: faz mal lá dentro da pessoa. Lá na vaidade dela. Todo homem tem seu orgulho de homem dentro si.  Não falo mal de ninguém. E se o sujeito vier falar mal de outro perto de mim, eu disparo a fazer elogio;  passo a falar bem  da pessoa  mal falada. Aí, o língua-de-trapo  fica desconsertado, quando não vai embora, muda de assunto.
— Falar mal do próximo é se colocar como juiz. Quem é o homem para julgar o outro? Deus julga porque tem poder para salvar. Já o homem condena o outro, mas não pode salvar nem a si mesmo.
— Compreendo. Todos nós caímos em muitos pontos. Se não caímos de outro modo, caímos por palavras ou pecamos em pensamento. Quem nunca pecou?
— Quando Adão pecou, até os animais pecaram — disse Xandão.
— Fumar  é pecado?
— Todo vício, de alguma forma, faz mal. Se leva ao inferno, não sei dizer.
— Já estive  no inferno.
— Foi no inferno?
— Fui!
— Viu o capiroto?
— Quase coisa.
— Cruz, credo. Pois conte! Mas deixe eu me benzer primeiro.
Xandão se benzeu; João Velho, também.
— Faça o Glória ao Pai direito, Nhô! Esse gesto que fez é de tanger mosca!
E João Velho tornou a se benzer. Desta vez, traçando, pausadamente, uma cruz bem desenhada na fronte, outra nos lábios e outra no peito.
Xandão temeu.  Queria ouvir a história e não queria.
— Conta, compadre Nhô!
— Foi assim: quando me senti com o gangote grosso, arrumei a mala e fui procurar emprego no Rio de Janeiro. Tinha quase nada não! O quê um rapaz nascido e crescido na roça tem pra botar na bagagem? Até o saber é pouco!
— Conta logo, homem de Deus!
— Pois bem! Meu primeiro emprego foi numa chácara. Num era bem dentro da capital não! Era puxado pra fora, numa cidade montada no morro. Lugar bonito pra morar...
— Conta logo, homem! Não precisa passar o endereço. Quero ir lá não!
— Como eu ia dizendo. O primeiro emprego não deu certo. A culpa foi minha. Não roubei, nem matei, mas fiz besteira.
— Foi por causa disso que o senhor veio embora?
— Não! Por causa disso, mudei pra capital. Foi na capital que conheci a VM da rua Ceará.  Recomendo ninguém ir lá não!
— Quero ir  não. Conte a história.
— Foi lá que vi a desgraça, o inferno.
— Viu ou  não viu o capiroto?
— Já disse que não vi.
— Com licença da palavra: que merda você viu?
— Pior que isso compadre. Senti fedor de enxofre.
— Então diga!
—Tem uma vila lá no Rio de Janeiro,  cheia de casa.
— Qual é a vila que não é cheia de casa, compadre?
— Cheia de casa de prostituição. É uma vila só de rapariga. A rua, d’um lado e do outro é só de mulher da vida. Mulher bonita, mulher feia, nova, velha... Na Vila Mimosa tem mulher vestida no jeito de ir pra festa, outras com roupa, no ponto de esperar homem na cama. Pouco pano cobrindo as vergonhas. Dá pra ver tudo: peito mole, duro, peito caído, peito empinado. Todo mundo caçando jeito de se divertir. Bebendo e dançando.
Fez uma pausa. Tomou um gole de água e continuou.
— Foi na dança que vi a  feição do capiroto, e senti o fedor de enxofre. O capiroto requebrava no corpo daquelas mulheres,  fazendo posição de quem vai vadiar,  provocando assanhamento.  Num lugar daquele, não tenho coragem de beber nem um copo d’água. E vou contar pro senhor: é dentro da cidade, arribado da praça da Bandeira. Pouquinho.
— Quero endereço não, Nhô! Conte só a história.
— Pois bem, o lugar é muito conhecido no Rio. Jornalista vai lá fazer retrato pra botar no jornal. A televisão mostra para o mundo todo. Acha que é vantagem. Sujeira que a gente não pode com ela, empurra debaixo do tapete. Não tem pra quê mostrar ao mundo. Só estou contando que o senhor me pediu.
— Pedi, e até agora você não contou.
— Vou contar agorinha: as mulheres chegavam lá empurradas da sorte. Sem maridos, fugidas da guerra...  naquele tempo.
— Adiante essa parte. Você não é do tempo da guerra.
— Bom, quando estive por lá, as prostitutas estrangeiras não estavam mais.   Tem história delas em livro, mas num dá o recado de modo de se  entender. Ou dá, e o povo não  entende. Tem que ir lá pra ver.
— Vou não, compadre, já disse que não vou!
— Cansadas de apanhar dos maridos — contando já nos tempos de agora,  —  as mulheres se separam deles e vão  caçar meio de vida na Vila Mimosa. Elas chegam com meia-vida,  e são obrigadas pela dona do cabaré a se misturarem com aquelas que já têm mais de cem mil quilômetros rodados, precisando fazer serviço de motor e lanternagem. É ordem da madama: tem que se misturar para o freguês escolher. Então, a madama acende uma luz negra; fica todo mundo igual. Quem se deu mal na escolha, tem que pagar, nem que não faça nada. Entrou no quarto, paga. Aquilo é um inferno.
— Que inferno é esse que não tem capeta?
— Ele está lá. Ninguém vê o capiroto com chifre e tridente. E ele  é besta de se apresentar  assim? Fica dançando e se requebrando no corpo daquelas mulheres, convidando, convidando pra vadiagem. Penso que pra vadiar, tem que casar na igreja, pra Deus abençoar.
— É assim mesmo!
—Tem gente que diz que homem beijar homem e mulher beijar  mulher é  normal. É a realidade do mundo! O mundo lá fora pode ser desse jeito... Comigo não! Coisa do mundo é do mundo. Respeito. Seja por doença ou safadeza, respeito, mas não quero pra mim, nem pra minha família.
— As  coisas do mundo devem ficar no mundo.
— A casa do homem é o santuário da família. Tolero, mas não aceito. Aceitar é outra coisa. Ninguém venha me obrigar a ser mulher. Nasci homem! Sou macho. Homem é homem, mulher é mulher! Deus não criou o terceiro sexo. Isso é coisa do cão. Quando o mundo todo estiver igual a Sodoma e Gomorra, vai cair enxofre do céu e acabar com todos os viventes. Até os animais vão pagar pelo pecado do homem.
Nhô olha admirado para  Xandão, montado num burro velho, com as rédeas soltas,  sem fazer diferenciação.
— Não acredito que esse burrinho seu seja brabo! Não aceitar  nada por trás é outra coisa. Também não aceito! Mas  se anda com as rédeas soltas. É manso.
Xandão riu.
— Dizem que burro não amansa. Acostuma com o dono. Esse aqui já teve tanto dono, que se acostuma com qualquer nome e  com qualquer pessoa.
— Como é o nome dele?
— Cada dono põe um nome que quer em seu burrinho. Em minhas mãos ele atende por fome.
— Fome, compadre! Nome esquisito.
— O dono caça é nome esquisito pra botar nos bichinhos!
— É mesmo. O meu chama Xerém. Quem monta nele fica quebrado igual milho no  pilão. Pra ter ganhado o nome de fome. Seu burrinho deve ser muito comedor.
— Nem não! Ele nasceu na beira do riacho seco, lá nas bandas de onde veio. A mãe morreu na parição. Burrinho passou muita  fome, até o dono encontrar outra jumenta parida para dividir o leite com o Fome. Morreu de fome.  Quase. Foi aí que pegou o nome pra ele.
João Velho silencia por alguns minutos como se estivesse fechando as cortinas para mudar o cenário.
— Ia pensando comigo:  eu me sinto vingado.
— Vingado?
— Vingado desse bicho que levo as orelhas nos alforjes.
— Ela comeu bezerro na fazenda?
— Comeu, mas isso não conta. O padrão tem muito. Ela comeu meu filho, e eu só tinha um.
— Fico de coração  rasgado, de luto com o senhor.
— Tem luto não! Honrei o sangue de meu filho. Tristeza tem. Fico pensando na mãe. A mãe de José Lino era muito apegada ao menino... Por pouco num perdeu também o marido... Quando a onça se aproximou, eu já estava machucado da queda. Botei a carabina pra matar o burro, mas não tinha bala na agulha. Tivesse matado, tinha me arrependido, porque depois que a onça apareceu, assim, do nada, ele não arredou o pé de mim. Parece que se entregava para morrer junto. Até serviu de apoio para encostar a carabina. Eu estava fraco, se não apoiasse n’alguma coisa, era perigoso errar o tiro e o bicho me comer. Fiquei detrás do burro. Mais para me apoiar. Medo, tive não! Eu não tinha mão pra segurar. Tinha mas estava sem  serventia. Foi como se  o burro tivesse segurado a arma  pra mim. E eu só tinha duas balas.
— Com sua licença, Nhô! Estou meio sem jeito de perguntar, mas o senhor achou o cadáver?
— Só o batedor e a sangueira. Tive coragem  de farejar não.  Só me subiu ira. Se a arma não disparasse, eu ia de unha na onça. Caçava um jeito de fundar o dedo no ‘zói’ da malvada ou no traseiro... O lugar que tivesse um buraco, eu  enfiava o dedo  e arrancava um  pedaço de  carne dela. Morria grudado na onça igual tamanduá-bandeira.
— Sou compreendido de sua dor. Se o compadre não se zangar, a história da visita ao inferno acabou, ou o amigo deixou uma parte pra contar depois?
— Estive umas duas ou três vezes no Teatro Municipal. Prestei atenção. Eles contam estória dividida em pedaços. Conta um pedaço, fecha a cortina. E quando abre, mostra o visconde bebendo numa mesa, arrodeado de prostituta, como na Vila Mimosa que João Guimarães diz sem dizer. Aí, fecha de novo, e quando reabre, mostra a vida acontecendo, já de outro jeito,  e com outras pessoas. Mas é gente que não existe mais. Na VM de hoje é diferente, o povo sem nome, mostra a cara mesmo, nem precisa de ninguém fazer o papel. Quem tem nome a zelar, sabe como se divertir sem ser visto.  Mas o capiroto tá vendo e bate palmas.
— Que diacho é VM, compadre?
—Homem, fica mais esperto! VM é Vila Mimosa. Já se esqueceu?
— Humm!...
— Pois bem, aquelas mulheres foram perseguidas, mais da conta. Ninguém queria polaca morando perto. E foram dando jeito de escorraçar pra longe. Isso naquele tempo. Hoje ninguém mais sabe quem é quem... Quando estive lá, foi nesses tempos modernos. Tinha mais polaca não.  Vi mulheres tatuadas, seminuas a fervilhar nas calçadas e portas de bares; vi quartos enfileirados como lojas de galerias. Em cada porta uma mulher dizendo em voz alta: ‘Paga só dez reais por um beijo. O serviço completo na cama é vinte’.
— Que diacho é polaca?
— Aquele povo que veio de longe, do estrangeiro. Povo claro, de olho azul. Gente que foi pra Vila Mimosa se prostituir pra não morrer de fome,  porque os maridos tinham morrido na guerra. Com o tempo,  polaca passou a ser o mesmo que meretriz, por conta da atitude daquelas estrangeiras. E na roça esse nome pegou nos  bichos, nas fêmeas dos bichos... Disso você sabe, compadre!
— O senhor é estuado, compadre Nhô.
— Assentei banco de escola... pouco. Aprendi pro gasto.  Gosto mesmo é de correr atrás de boi arisco no mato.
— Minha leitura também é fraca, compadre, mas o amigo gasta bem a palavra.
João Velho suspendeu o chapéu em gesto de agradecimento. E gemeu.
— Não faça movimento, sua  cantareira tá quebrada. Esbarre aí, vamos fazer uma tipoia.
— Precisa não! Dou conta de chegar em casa.
— Como o senhor queira.
— Se  o senhor não se agastar...  isso em sua matula é um berrante? — disse João Velho.
— É um berrante! Sou guieiro. Nem faz diferença. Pra mim tanto faz ir na frente ou no coice. Dou o recado.
— Pois toque o berrante! De um jeito triste e alegre. Estamos chegando.
Xandão puxou a cordinha que fechava o saco de pano. Soprou o berrante, imitando a vaca no curral chamando  a cria. Ouviu o murmúrio de uma leve brisa  e seu o coração rasgou-se ao meio só de saudade. Saudade de casa, de um lar e família.
Ajustou o bocal e ondas sonoras se  propagaram no ar,  anunciando a chegada. João Velho chorou. O sol inclinou a  cabeça no travesseiro da serra. Campo Grande era toda vista.
Vaqueiro Onofre parecia apanhado por um golpe de remorso, um sentimento  de culpa por ter deixado José Lino ir com Pururuca. Aquele moleque só tem tamanho de gente grande, mas pensa como menino. Euzébia enxugou as lágrimas que escorriam no rosto.
Tome  — disse Nhá Santa, entregando-lhe uma caneca de louça com chá de jasmim.  Euzébia levantou-se, descansou os cotovelos na balaustrada da varanda, e viu no meio da pastagem um vulto cavalgando o trote da vitória. ‘É ‘seu’ José Lino!’ Gritou um menino.
— E traz um couro de bicho na lua da sela, pintado, bonito, estampado em preto e amarelo-ouro como chita.
Simultaneamente, João Velho e vaqueiro Alexandre Guedes se aproximavam, vindo de outra direção.
A fazenda Campo Grande, toma ares de festa. Apareceu uma cabeça na janela. Depois, cada janela tinha duas ou três cabeças curiosas. Coronel Generoso  chega    fumando um cigarro de palha.
— Onofre, faça o combinado!
— O boi, patrão?
— Sim! O boi da matutagem. Primeiro, toque o berrante. Prenda no curral os bois  mais gordos. Eu mesmo quero fazer a escolha.
— Vai ter  missa?
— Não dá tempo de chamar o padre.
— Com licença, patrão. Preciso tomar providências.
— Espere... Passe no curral e confira se a índia está bem amarrada. Não quero acidente na festa. Vá até a oficina e mande Zé Coco guardar as ferramentas. Quero ouvir um “Guiano em Oitava
— Tô indo, patrão.
O  juízo de Onofre ferveu.
Catou quatro pedrinhas e pôs na algibeira. Cada uma representava uma ordem recebida. À medida que fosse cumprido, retirava uma pedra e jogava fora. No fim se sobrasse pedra, faltava cumprir alguma obrigação.  Mas Generoso dera três ordens. E Onofre pôs quatro  pedrinhas na algibeira!...Bem,  a outra era pra se lembrar de  ir no Juramento, comprar extrato Dirce pra ficar  cheiroso...
Teve vontade de soltar a índia capturada para que ela  se acostumasse logo com o povo. Ela estava presa por uma corda ao  coração do vaqueiro. Ninguém podia se aproximar da índia. Mas Onofre chegou perto. Perto demais daquele coração selvagem e ofereceu  à índia água numa cuité. Apinajé aceitou. Bebeu, e seu espírito ouviu a voz do  Deus de homem branco, saindo do coração do vaqueiro.
A torre de Babel desmoronou-se. Índia e vaqueiro falaram  a mesma língua.
— Chegue aqui!...
— Posso não! O homem branco é  inimigo. Mata  mãe natureza, e nossa gente.
Nenhuma palavra humana é capaz de descrever o que Onofre viu e sentiu ao perceber que estava em franco diálogo com uma índia selvagem pela qual se apaixonara.
— Vaqueiro ter cheiro bom — disse Apinajé.
— Índia ser bonita. Ter cheiro de mata orvalhada, ovelha molhada,  leite fresquinho e tupixaba. Cheiro de vassourinha varrendo forno de fazer biscoito caseiro.
— Índia gostar de vaqueiro. Vaqueiro  gostar de índia.
— Vem comigo.
E Apinajé tocou cangoeira na festa de homem branco.
 
 
Auá cuiarana-araruana, araruana–araruê...
 
A notícia que uma índia tinha sido capturada nas imediações da fazenda Campo Grande espalhou-se, rapidamente. Gente da circunvizinhança veio conhecer aquele vivente estranho. Até o padre que celebrava na capela da Catarina, também apareceu por lá.