A moça do curso de Letras

O vento que entrava pela janela aberta deixava os seus cabelos negros revoltos desconcentrando-a de sua leitura. Em um gracioso gesto tirou uma caneta da mochila e com um rápido movimento deu uma volta nos cabelos prendendo-os com ela.

O ônibus seguia seu itinerário de sempre. A moça sentada em um dos seus bancos estava concentrada na leitura de um livro acadêmico, um desses que a maioria das pessoas sequer sabe para que serve ou, no pior dos casos, ignora totalmente a existência.

Encontrava-se imersa na leitura quando alguém começou um discurso.

“...Jesus salvou a minha vida, eu vivia na rua, cheirando e roubando ... hoje estou aqui nesse coletivo entregando para os senhores passageiros esses adesivos. Eles não têm um valor fixo, vocês podem colaborar com o que Deus tocar no coração de vocês. Pode ser cinco, dez, cinquenta centavos ou um real. Pode ser qualquer valor, aí vocês vão ajudar a fazer a obra de Deus ...”

- Vai ajudar a obra, amada? – Um rapaz de testa larga e rosto com marcas de espinha perguntava para a moça que lia o livro.

Pega de surpresa pela pergunta esta fechou o livro e respondeu:

- Não, amigo. A única obra que me interessa agora é dar conta de um capítulo deste livro. Bom trabalho aí prá você. – Falou isso e voltou para a sua leitura.

- “Curso de Linguística Geral”, nome bonito esse livro tem, mas se fosse a bíblia que estivesse lendo talvez você não fosse tão arrogante.

Dando um sorriso descontraído a moça respondeu-lhe:

- Certo, amiguinho. Voce tem razão, desculpe. Bom trabalho prá você – Falou isso e retornou para o seu livro.

Não satisfeito o rapaz de testa larga voltou à carga.

- Um dia o Senhor Jesus vai fazer você descer desse pedestal de arrogância e agir sobre você da mesma forma como agiu em mim. Eu roubava, causei mal para as pessoas, fiz minha mãe sofrer, mas um dia Jesus entrou em meu coração e hoje estou aqui fazendo a obra dele. Vai chegar o dia que a senhora vai se arrepender ...

A moça do curso de Letras fechou em definitivo o livro de Saussure que estava estudando.

- Amigo, deixa eu lhe fazer uma pergunta! Por que Jesus só entrou no seu coração quando você já tinha feito um monte de merda? Por que ele não entrou antes e impediu que você fizesse mal para as pessoas? Seria tão simples e um monte de gente não teria sofrido ... inclusive você.

Os passageiros passaram a prestar atenção na conversa entre o rapaz com rosto marcado por espinhas e a moça alta com um livro na mão. Alguns comentavam baixo o que viam e outros até riam. Todos esperando o desenrolar da situação.

- Moça, você não entende os caminhos de Deus. Ele usa das mais variadas formas para traçar o caminho dos seus filhos. Ninguém explica Deus ... e não seria uma herege arrogante quem iria explicar ...

- E com certeza também não seria alguém que fala sem pensar e que repete um monte de bobagens sem sequer saber de onde vem tudo isso.

- Você deve ser ateia para falar essas coisas. – Olhando para os demais passageiros seguiu falando – Vocês viram como o Inimigo age? Ela fica lendo esses livrinhos de universidade e acha que pode mais que Deus.

- Eu estava estudando tranquilamente aqui e você chega, me incomoda e me xinga do nada ... É isso que Deus quer? Que você seja grosseiro e mal-educado?

- Minha filha aceite Jesus como seu salvador ...

- Para, amigo. Pare por favor e nem me chame de “minha filha”. Semana passada um sujeito tarado me chamou assim e a coisa não terminou bem. Dá um tempo ...**

- Tenha cuidado com suas heresias e seu ateísmo. Deus tudo vê e tudo sabe, minha filha. Prove do seu amor ou do seu açoite ...

Já nitidamente impaciente e irritada a moça do curso de Letras falou:

- Em primeiro lugar não sou ateia e nem herege, só não acho que Deus seja esse sujeito ruim que você diz que açoita as pessoas. E em segundo lugar não me chame de “minha filha”...

- Pelo amor ou pelo açoite ...

- Não seria Deus quem me açoitaria e sim você. Se o senhor fizesse isso posso lhe garantir que não seria algo saudável prá você ...

A moça falou isso encerrando a discussão. Tornou a ajeitar os cabelos negros e retornou a leitura do seu livro, afinal tinha que apresentar um seminário dali há dois dias.

** Situação descrita no conto A moça do ônibus

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 22/12/2018
Reeditado em 23/12/2018
Código do texto: T6533395
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