Perdão
 
 
- Ana é um palíndromo, quando lido de trás pra frente tem o mesmo significado. Essas foram as últimas palavras do professor, no dia em que Ana conheceu seu futuro marido. Godofredo era de uma família tradicional de uma pequena cidade e bem mais velho que ela.  

Ainda tentou frequentar as aulas, mas o marido era muito ciumento. Abandonou de vez ao engravidar do primeiro filho. E, quando pensou em retomar os estudos, novamente ficou grávida, e dessa vez, de gêmeos.  Assim, o tempo foi passando e outras ocupações foram preenchendo seus dias.

Seu marido não era o melhor dos homens, embora fosse muito respeitado na cidade, um notório cidadão, que ia a igreja com a esposa e os filhos todos os domingos, hábito que Ana adquirira desde a infância e continuava a passar para os filhos.  Mas, quem via aquele casal não imaginava o homem de máscara ali presente, pois na intimidade era mulherengo e, às vezes, chegava à casa bêbado e esbofeteava a esposa.

Ana pensou várias vezes em deixá-lo, mas a dependência afetiva e financeira a impedia. Ao consultar um advogado descobriu que a pensão não seria suficiente para uma vida digna com os filhos. Além disso, ele a ameaçava de tirar-lhe a guarda dos filhos por não ter condições de criá-los. Carregada de tradições familiares sabia que a vida de uma mulher separada numa cidade pequena não era fácil.  Até seus pais a aconselhavam a relevar as coisas, pois era um “bom homem” que vivia para a família.

Sem apoio, se resignava a sua situação. Até que um dia, ele se superou nos espancamentos. Deixou-a roxa de dar pena! Sentiu-se envergonhada por ter sido na frente dos filhos. A maior humilhação para uma mulher é apanhar diante dos filhos, a dor moral foi maior que a dor física, com a qual já estava acostumada. Nesse dia, resolveu deixá-lo.

Esperou os hematomas sumirem. Começou a fazer as malas, sob protesto do marido, que prometia não fazer mais aquilo, para esquecer, pois tinha sido um ato impensado.  Ana estava decidida a não voltar atrás, mas passou mal, desmaiou e só voltou a si no hospital. O médico diagnosticou que ela estava grávida do terceiro filho.  
 
A gravidez foi a mais difícil de todas. Teria que ficar a maior parte do tempo deitada para não perder o bebê, por isso, sua irmã mais nova teve que ficar cuidando dela e das  crianças. 
 
Quando já se encontrava no sexto mês de gravidez, Ana acordou assustada com um grito vindo de sua irmã. Saiu correndo para vê do que se tratava. Godofredo estava vomitando sangue pela  casa toda.

Assustada, pediu ajuda aos vizinhos para levá-lo ao médico. Foi diagnosticado como  tendo estourado uma úlcera em seu estômago, resultado de uma gastrite, da qual ele sempre reclamava,  talvez por causa da bebida excessiva.

Foram meses penosos para Ana. Devido ao susto perdeu o bebê. Sua irmã, apavorada com a quantidade de sangue que viu sair de Godofredo e diante do abortamento da irmã, pediu para voltar para casa dos pais, deixando Ana sozinha com as crianças e o marido muito doente.
 
Ana passou a se dedicar ao marido como nunca se viu. Quem via aqueles cuidados nunca imaginaria que se tratava de um companheiro tão sem merecimento. Cuidava para que sua comida nunca fosse feita com condimentos, óleos ou sal demais.

Levava-o ao médico e dava o medicamento nos horários certos. Não teve sequer tempo de chorar pelo filho morto.  Godofredo, vendo todos aqueles cuidados, sentiu remorso por ter sido um marido tão ruim, deveria ter amado mais a esposa. Mas aquela era sua forma de amar. Cuidava dela e dos filhos, não lhes faltava nada. Foi assim com seus avós e com seus pais. Sua bebida não fazia mal a ninguém, e, aquelas mulheres era sem significado algum, coisa de homem mesmo.  

Mas, sentia pena da esposa, que mesmo tendo sido muito maltratada continuava ali ao seu lado cuidando dele cheia de amor e demonstrando a fidelidade de um cão. Fazia tudo praticamente sozinha. 

Numa noite em que Ana deitou-se um pouco para descansar. Diante de seu semblante pálido e triste, pegou as mãos da esposa e pediu que o perdoasse. Pela primeira vez conversaram como nunca tinham feito antes, com troca de carinho e sinceridade. Ela disse-lhe que já o tinha perdoado. Que o perdão era necessário para que ela continuasse a vida, e que todos os dias ia à igreja pedir perdão a Deus por ele e por ela. Que fizera, também, uma promessa de cuidar dele até a morte, pois só ela os separaria.

 
Aquela foi a última conversa que tiveram. Godofredo sentiu-se leve ao dar o último suspiro, pois o perdão de Ana era muito importante para ele. Ana sentiu-se livre, pois cumprira sua promessa de cuidar do marido até a morte. Ainda era muito jovem, teria uma vida pela frente.  Foi à missa entregar a Deus sua missão cumprida.
 
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Ana decidiu viajar com os filhos e a irmã por uns meses. Godofredo deixou-lhe um gordo seguro de vida e uma pensão, pois era funcionário público fantasma de um órgão. Assim, ela poderia viajar por uns tempos e esquecer os dias ruins por que passara.

O filho mais novo estava sempre com fome, enquanto ele foi até a despensa pegar algo para comer, Ana aproveitou para conversar com a irmã.

- Aline, eu sinto muito por tudo que te aconteceu. Tentarei compensá-la pagando seus estudos. Quero que tenha uma profissão para nunca depender de homem algum.
- Você sabia? Pensei que não tivesse percebido.
- Sim. Eu vi que ele estava te assediando e tentou abusar de você na noite em que passou mal. Vi que ele tinha ido até seu quarto quando começou a sangrar.

O filho esfomeado voltou trazendo um pote com farinha para que a mãe abrisse e colocasse no leite.

Ana assustou-se!
- Onde achou essa farinha? Menino morto de fome vá procurar outra coisa!
- Calma Ana! É só colocar a farinha para ele.

Ana foi até a despensa e pegou um biscoito para o garoto. Depois saiu com o pote de farinha. Foi até um morro vizinho a casa e começou a soltá-la ao vento. Nada melhor que o vento para levar toda sua culpa e aqueles farelos de vidro pisado.