Mãe

Magda estava ansiosa pelo reencontro porque fazia muito tempo que não via sua mãe. Após muitos anos longe uma da outra, por causa de circunstâncias, ela precisou viajar para longe para conseguir um trabalho decente, porém acabou por ficar como auxiliar de cozinha numa padaria modesta.

Magda arranjou um pequeno apartamento de quatro cômodos: um quarto, banheiro, cozinha e sala minúsculas, um pouco abafado mas suficiente para uma pessoa só. Esquecendo as cenas e lembranças que vinham na cabeça, Magda concentrou-se na paisagem à frente e à sua volta.

O período de chuva no Ceará mal havia começado e dava resultados, a plantação seca do cerrado ganha uma coloração viva que se estendia pelos campos e arvoredos. O cheiro de terra molhada subiu nas narinas da moça. Uma nuvem escura e pesada acabava de se afastar do local onde em breve o ônibus estacionaria.

Magda pegou sua bolsa e sua mochila, a primeira deu a volta no pescoço e a segunda colocou nas costas, segurando nas mãos sacolas com presentes.

A pequena casa que estava procurando era de um muro alto que ocultava a parede amarela descascada e o portão com grade enferrujada. Parecia que há anos ninguém pisava ali.

Sua tia Mary correu para o portão e a recebeu com entusiasmo.

- Finalmente você chegou! - abraçou a sobrinha.

Magda correspondeu o abraço com uma certa timidez.

- Como a senhora está?

- Estou bem; entre e venha ver sua mãe.

- Olhe, trouxe alguns presentes.

- Sua mãe vai amar!

Sentada numa cadeira de balanço com o olhar na televisão estava Marta. A mãe de Magda um dia tivera um corpo bonito e esbelto mas com a ingestão de sucessivos remédios anticoagulantes e antidepressivos, ele começou a inchar. Marta usava um vestido amarelo desgastado, seus cabelos ressecados estavam presos com uma fivela e o rosto não parecia saudável como da última vez que a menina o viu.

- Mãe?

Marta fez uma cara de surpresa, levantou-se e abraçou a filha. Magda teve a impressão que até a força da mãe tinha mudado.

- Como a senhora mudou...

- Mudei não; foram só alguns remédios que o médico prescreveu.

- Remédios?

- Tive alguns problemas de saúde.

- Quais?

Sua tia interrompeu o interrogatório e ofereceu uma merenda saborosa: bolo, pão assado, tapioca com coco, café, leite e chá.

- Obrigada, não tomo café.

- Por quê?

- Parei porque notei que o café faz mal ao meu estômago.

- Ah.

- Cadê o papai?

Marta tossiu.

- Ele vai ficar fora por uns dias... a trabalho. - disse a tia.

À noite, Magda ficou no quarto. A casa de sua mãe era grande: tinha quatro quartos, duas suítes e dois quartos de solteiros, um banheiro social no corredor, que dava para a cozinha e a sala. O vasto quintal também comportava algumas galinhas, patos e codornas, que tia Mary preparava nos finais de semana.

Havia um pequeno quadro em cima da cômoda, ao lado do banheiro. Magda não distinguiu a figura de longe, aproximou-se e notou que ele tinha sido colocado ali de propósito: uma foto dela quando criança junto da mãe. Ela deu um sorriso.

Alguém bateu na porta.

- Se precisar de alguma coisa, pode me chamar viu - disse sua tia.

Magda não conseguiu dormir por causa de um estranho incômodo no estômago, mas ela não tinha tomado café. Porém, a estranha sensação queimava dentro de si, não sabia se isso era algum problema de saúde ou era sua intuição lhe dizendo que havia algo errado. Ligou o interruptor do corredor e foi até a cozinha, a luz iluminava parcialmente. Sorte que carregava comprimidos e elixir para aliviar congestões.

De costas para o corredor, Magda percebeu uma fina silhueta formada na parede a partir da sombra do corredor. Ela se virou, ninguém.

Na volta para o quarto, desligou a luz e foi para a cama. A madrugada avançou, mas a moça ficou prestando atenção no som de passos pelo corredor.

No dia seguinte, conversando com a tia Mary, ela tocou no assunto:

- A senhora ja dormiu aqui?

- Sim; por que?

- Não notou nada estranho?

- Não; o que foi?

- Eu escutei algumas coisas.

- Tipo o que?

- O som de gente andando no corredor e na cozinha.

- Os únicos companheiros da sua mãe são os ratos - brincou sua tia.

Foram até a sala da televisão e Marta continuava no mesmo lugar se balançando.

- Aqui está seu café da manhã... Deus do céu, suas olheiras... você não dormiu?

Magda aproximou-se e constatou: os olhos vermelhos e as bolsas enormes abaixo dos olhos que indicavam resistência ao sono e cansaço.

- A senhora está bem, mãe?

- Sim; estou bem sim foi só uma noite mal dormida. - disfarçou.

Tem certeza?

- Você tomou o remédio? - perguntou a irmã de Marta.

- Tomei.

- Então por que você está neste estado?

- Porque eu não consegui dormir!

- Se tivesse tomado o remédio...

- Não começa! Eu não quis dormir e pronto!

- Por que a senhora não quis dormir,mãe?

- Isso é problema meu!

Marta levantou-se, atravessou o corredor e trancou-se no quarto.

Passou a manhã, a tarde e quando começou a escurecer, apareceu a primeira estrela; o céu tinha passado do tom alaranjado para o avermelhado, depois para completa escuridão. A irmã de Marta sentou-se na sala da televisão, ainda inconformada com a revolta repentina. Magda a seguiu com os olhos quando ela tentou falar com Marta através da porta.

- Você quer comer alguma coisa?

- Não!

- Mas você precisa comer alguma coisa!

- Não!

Então ela desistiu.

Um pouco deslocada naquela situação, Magda resolveu arriscar; usando seu tom de voz mais sereno e suave tentou persuadir a mãe.

- Mãe, eu sei que está me ouvindo; vim de muito longe para ver a senhora e você se tranca no quarto. Venha, vamos comer e conversar um pouco, quero ficar ao seu lado.

Sem resposta.

Perto das onze da noite, Magda começou a escutar pancadas surdas. O estômago apertou novamente, aquilo era nervosismo. Era um ambiente completamente estranho para ela, mas mesmo assim resolveu averiguar. Não vinha do corredor, nem da sala nem da cozinha, mas do quarto da sua mãe. Tia Mary não dormia na casa, só tinha elas duas, mas parecia que havia uma terceira pessoa.

Quanto mais chegava perto da porta do quarto, mais escutava pancadas. Ela colocou o ouvido na madeira da porta e o som parou. Magda se distanciou. Segundos depois novamente os ruídos.

- Mãe? A senhora está bem?

- Feliz...

Magda não entendeu.

Marta abriu a porta e tentou um sorriso.

- Feliz de ter você aqui.

- O que está acontecendo?

- Nada...

- E o que são esses barulhos?

- Estou movendo e mudando móveis de posição.

- Quer que eu lhe ajude?

- Não precisa... Mas se eu precisar eu chamo você.

- Está bem.

Contra vontade Magda voltou para seu quarto. Satisfeita por ter conseguido contato e apreensiva com o barulho das pancadas que poderiam voltar.

Pela madrugada, a jovem escutou barulhos graves que estremeceram o chão, eram trovões anunciando chuva intensa. Um relâmpago clareou seu quarto por conta da janela de vidro, que mesmo coberta pela cortina não escondeu a potência do fenômeno. Quando Magda se deu conta de que ainda tinha medo de tempestades, lembrou-se de quando corria para o quarto da mãe para refugiar-se em seu abraço.

Magda pegou no sono mas acordou de repente por causa de outro estrondo: um raio. Ela acordou assustada, com medo, com o coração acelerado; e quase sem fôlego, correu até o quarto da mãe. Bateu na porta repetidamente mas nenhuma resposta.

- Mãe! Abre aqui! Por favor!

A porta estava encostada e se abriu sozinha revelando um quarto bagunçado e imundo. A cama exibia lençóis sujos, os móveis jaziam pelo chão coberto com uma gosma que pareciam ser fezes humanas misturadas a um líquido avermelhado. Com a ponta do dedo indicador, ela recolheu uma amostra: era sangue.

Magda escutou um tom familiar e assustador atrás de si:

- Ainda tem medo de trovão, filha?

Marta estava de cabeça baixa, os cabelos ocultando seus olhos vermelhos, exibindo os pulsos cortados e as mãos ensanguentadas.

- NÃÃOOO!!

Magda acordou do horrível pesadelo. Chovia.

De repente, ela escutou batidas na porta. Aquela altura seu coração quase saiu pela boca. Para sua surpresa, foi sua mãe quem veio vê-la.

- Está tudo bem?

- Sim, eu… foi só um pesadelo.

Ela não via o rosto da mãe, oculto na sombra.

- Eu também não consigo dormir.

- São pesadelos também?

Desconfiada, Marta abriu um pouco a porta e revelou seu pijama: uma camisola de um tecido fino que evidenciava as curvas pelo corpo volumoso e ao mesmo tempo, mostrava hematomas e arranhões por todo seu corpo.

Magda teve um sobressalto. Marta sentou à cabeceira da cama.

- O que são essas marcas?

- Seu pai.

- O que?

- Tivemos várias brigas por conta do vício alcoólico dele e era inevitável que ele descontasse em mim.

Naquele instante, a jovem sentiu que perdeu o equilíbrio.

- Por que não me disse isso antes? Você avisou a tia Mary?

- Ela sabe mas eu não quis contar para você com medo de que você o odiasse.

- Seria estranho se eu não odiasse meu próprio pai, não acha?

- Mas ele não é mal, o vício dele que é mau.

- Não importa e não justifica isso, mãe! Amanhã vou dar queixa na delegacia!

- Não! A situação vai ficar muito pior!

- E onde ele está?

- Não sei; quando ele sai de casa toma um caminho sem rumo, e quando volta, volta bêbado e descontrolado.

- Ele é um imbecil!

- Não fale assim do seu pai.

Magda conteve muita da raiva que sentiu no entanto para não deixar sua mãe ainda mais fragilizada, a acompanhou até o quarto. Ficou aliviada ao saber que nada daquele sonho era verdade: os móveis estavam limpos e no lugar, a cama do casal tinha um perfume de rosas e nas paredes retratos do seu pai e da sua mãe juntos.

Ele tinha uma aparência severa e rude, seu rosto era oval e o nariz tipo grego, lábios finos iguais aos dela.

Marta adormeceu profundamente. Na companhia da filha ela entregou-se ao sono sentindo confiança e segurança. Magda porém estava distraída; por quanto tempo sua mãe teve que suportar maus tratos? Ela evitou encarar a foto do pai na parede.

Pela manhã, tia Mary flagrou as duas dormindo juntas. Não achando Magda no quarto, correu para o quarto da irmã e viu Marta dormindo no colo da sobrinha, que ficou sentada com a cabeça apoiada na parede.

Mary ficou perturbada ao saber que dos cinco comprimidos tomados durante a semana, três estavam intactos.

Marta exibia bom humor e tomou um grande gole de café, em seguida levantou-se e foi ao banheiro. Magda parecia imperturbável; comia um bocado de pão assado na chapa com leite morno.

- Vocês conversaram?

- Sim; e por que a senhora não me contou?

- Sobre o que?

- Sobre meu pai.

O assunto a deixou desconfortável.

- Ah seu pai...

- Se a senhora sabia devia ter feito alguma coisa?

- E eu tento fazer minha parte, mas a sua mãe não colabora.

- Como assim? - perguntou Magda.

Ela hesitou.

- Não falei nada até você vir porque tive receio que você rejeitasse o convite de ver sua mãe se soubesse do problema dela.

A moça sentiu um nó na boca do estomago.

- Sua mãe é esquizofrênica.

- O que?

Se ela não tomar a medicação, ela vai ter novos surtos, alucinações, não dorme a noite e por ai vai.

- E aquelas marcas de espancamento?

- Não foi seu pai; ele foi embora há muito tempo.

Magda lembrou-se dos episódios que escutou passos e pancadas surdas na parede.

- Ele voltou alguma vez para bater nela? - perguntou confusa.

- Sua mãe começou a ter lapsos de memória, crises de choro, terrores noturnos, insônia causando inúmeras brigas. Você ainda era criança e não viu nada porque eu cuidava de você.

- E quem fez aquilo com minha mãe?

- Foi ela mesma. - respondeu sua tia.

Uma lágrima caiu do rosto de Magda. Sua tia mostrou a cartela com os vários comprimidos intactos, que não foram tomados durante a semana, e revelou uma estratégia:

- Quando ela não quer tomar os comprimidos, eu coloco na comida, nos sucos e no café; e eu acho que sua mãe foi cuspir.

Magda percebeu mesmo a demora de Marta no banheiro. Sua mãe tentava vomitar o remédio.

- Mãe? A senhora está bem? - ela correu e tentou conversar através da porta.

- Sua tia tentou me envenenar!

- Não é verdade!

- E por que me senti engasgada quando tomei aquele café?

- A senhora precisa tomar medicação.

- Você está do lado dela? Por isso quis me sufocar até a morte enquanto eu dormia? - vociferava Marta.

De repente, um barulho de vidro quebrado e pancadas vindas de dentro do banheiro.

- Ah meu Deus! Mãe!

- Só saio daqui morta!

- Já chamei a ambulancia! - disse sua tia.

A ambulância estacionou na frente da casa amarela e o grupo de socorristas correu até o banheiro.

Tia Mary pediu que ela voltasse para o quarto porque o que estava prestes poderia deixá-la traumatizada durante uns dias. Magda escutou as pancadas dos chutes querendo arrombar a porta do banheiro, ela aproximou-se da soleira da porta e com dor no coração, ouviu quando um deles disse "precisamos estancar a hemorragia e levá-la urgente para o pronto socorro..."

A moça desabou.

Nefer Khemet
Enviado por Nefer Khemet em 16/02/2019
Reeditado em 04/02/2021
Código do texto: T6576661
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