Limiar do espelho

Ela sabia, quando acordou: aquele barulho não fora de seu sonho. Tivera sim, um sonho estranho, talvez mesmo um pesadelo. Porém aquele ruído que ainda vibrava agudo em seus tímpanos com certeza viera de fora do mundo onírico.

Estava sozinha. "Inferno...". Sonolenta, não queria abrir a porta. Fazia um frio de inverno, a chuva era constante, boa para embalar o sono. Resolveu que não era nada. Acomodou a cabeça no travesseiro disposta a voltar a seu sonho estranho.

Quem disse que era possível? "Droga...". Levantou-se e jogou um casaco por cima dos ombros. Havia um espelho para o qual olhou diretamente. Sempre teve a impressão de ver um vulto quando olhava para o espelho. Ela acenou para o vulto, que não acenou acenou novamente. Manias. "Vai ter medo depois de velha?".

Abriu a porta devagar, com um rangido arrastado "Que barulho foi esse? Merda." Tentou recordar. Seria um trovão? Não, era mais seco. Agora já não tinha certeza se o barulho não fora mesmo do sonho. Mas, afinal, àquela hora da madrugada, de onde viria um barulho como aquele?

Levantou-se, passeando pelos corredores em busca do sono que lhe escapava há muitas noites. Pensou que existiam espelhos demais naquela casa. Por que havia tantos espelhos, se só ela estava lá? De repente sentiu falta das pessoas que foram embora. Mas não nesta noite, nesta noite os espelhos faziam formas estranhas no escuro. Vultos. Ou era sua imaginação lhe pregando peças, fazendo com que se sentisse na presença de alguém, ou querendo lhe causar medo.

Andou rapidamente pelo corredor até a cozinha. Ainda que houvesse apenas a fraca luz noturna entrando pelas cortinas e o resto fosse breu, conhecia aquela casa , poderia andar por ela de olhos vendados. A luz do luar recém chegada revelava que talvez não fora um trovão, e talvez não houvesse barulho algum, de qualquer forma.

Pensou em relaxar e retornar ao conforto de sua cama quente. Mas ouviu. Novamente o barulho! Agudo e real como um trovão, porém mais fino e próximo. E ela sabia... vinha de dentro da casa. E era como vidro, se partindo e irrompendo em centenas de pequenos pedaços. "Escapando". Esse pensamento congelou-lhe a espinha e ativou seu instinto mais primitivo. Então, com as pupilas dilatadas e as narinas quentes e úmidas, pode caminhar rapidamente no escuro. Enxergava os movimentos, e os vultos...

De repente lembrou-se de uma história antiga sobre espelhos, e a frase, que ficou ecoando em sua mente junto à lanterna iluminando a lúgubre face de sua irmã, com seus olhinhos soturnos que a fitavam, na infância... "e eles podem olhar para você pelos espelhos, mesmo mortos. Se você enxergar de volta, talvez abra um portal para os que não estão mais aqui. Ou talvez, você é que passe para lá...". A irmã talvez a enxergasse agora, talvez todos a enxergassem, pois todos haviam partido.

Mas não podia parar, a lembrança a deixara apavorada, e sabia que sua mente lhe pregaria peças. Ela tentava escolher entre ser racional e fugir por medo puro e feral. "Do que você está fugindo?". Mas em seu cerne, sabia que havia algo sombrio, que não deveria enfrentá-lo, ou seria sua perdição. "Não olhe para os espelhos".

Sentiu o sangue ferver. A respiração ofegante, cada vez mais. Onde estava a porta? "Saia da casa!" Ela conhecia aquela casa, a casa de sempre, e agora aqueles vultos, aquele estampido que a perseguia. Algo terrivelmente errado a aguardava e ela estava indefesa. Sentia-se pesada, presa ao chão como se fosse parte do assoalho de madeira. Ela poderia acender a luz? Não estava raciocinando com clareza.

Ela estava paralisada. Tentava inutilmente lutar contra a irresistível atração a frente. Sem alternativas, ela olhou. Havia um espelho. Lá estava a perturbadora presença que gerara o ruído sinistro, trincando o espelho. Dessa vez, foi o vulto que acenou para ela.

Seus pensamentos pararam por um momento. Com os olhos inflamados, ela viu sua irmã novamente... "e eles podem olhar pelo espelho, mesmo mortos". Desfaleceu.

Quando acordou, estava em sua cama, era inverno. Mas o sonho... ela não recordava do sonho com clareza, havia apenas um estranho estampido que a despertara. Porém, ela decidiu continuar dormindo.

Gisele de Andrade
Enviado por Gisele de Andrade em 17/02/2019
Reeditado em 18/02/2019
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