COVA CALADA - Um conto de desespero....

O chão era duro. De uma terra seca, um arenito que chegava a cegar. Como se não bastasse o suor que lhe empapava os olhos. A mão crispada no cabo da pá denunciava a velhice cansada de poeira e sol. A ferramenta, já sem fio, abria um risco que mais parecia o desenho de um sorriso indecente que a terra devolvia. Ia levar muito tempo, desalentou-se, passando as costas da mão pelo rosto a fim de tirar um pouco das gotas salgadas que faziam a pele de pergaminho brilhar.

De onde estava podia ver a casa, na verdade o que sobrara daquela por onde passara sua família, desde que o avô se mudara para aquelas bandas. Tinha sido uma bela casa nos tempos de feijão a bom preço, mas agora só restava um amontoado de paredes de taipa sustentada por madeira enegrecida encimada por telhas que abrigavam timbopevas e ratos teimosos. Ao redor, só uma cerca velha que não guardava mais nada e a casinha, onde antigamente se fazia farinha. O resto era morte. E calor. Tanto calor que parecia criar dobras no ar.

Outro baque no chão duro o fez lembrar que tinha pressa em terminar o serviço. A ferida feita pela pá já avançava um pouco, mas, para o que ele queria, ainda faltava bastante. Tinha de ter espaço. Espaço que desse pra dois. Quando pensou nisso levantou o chapéu e olhou novamente a casa e praguejou porque não precisava estar ali, estava por causa dela. Apenas um carcará quebrava a vastidão do silêncio, que parecia pisar-lhe até a alma.

Ele não queria, mas não viu outro jeito. Desde a madrugada que ela falava. Falava não, grasnava, rangia. Tentou abafar a cantilena apertando mais o radinho contra o ouvido. Só sabia que não era de gente aquela fala. Era só chiado que saía de uma garganta roída pela doença e pelo amargo da vida.

Encostada no fogão de lenha, enquanto mexia na panelinha com a última porção de feijão, a mulher rosnava contra ele, contra o mundo, contra tudo. Lembrava dos filhos mortos. Coração ressecado feito palha que sobra no coxo. Escarrava cada segundo de sofrimento, matraqueava tudo que ele queria esquecer. Ela dizia que ninguém era mais culpado do que ele, depois dele, só Deus. Culpado pela seca, pela fome, pelo câncer e pela dor.

Sentado na caminha de arame, com o quadro do Sagrado Coração de Jesus olhando pra ele sem nenhum traço de piedade, fumou e pensou. Ergueu-se, finalmente, como quem tinha dívidas antigas para acertar.

As pequenas esferas de chumbo que saíram de um dos canos da Rossi calibre vinte e oito acertaram as panelas penduradas no jirau em cima do fogão, mas antes atravessaram a cabeça dela. Fizeram um estrago e tanto. “Calou-se finalmente”, resmungou. As palavras saíram misturadas na fumaça do cigarro de palha com o cheiro de pólvora. Demorou até o estrondo sumir. Ficou um instante olhando os pedaços de ossos e miolo da esposa na panelinha de ferro. "Ainda por cima estragou o almoço..."

Não havia nuvem no céu, nenhuma, somente o sol, inclemente, tão onipresente que parecia que nem havia noite mais. Soberbo e alaranjado antes de despencar atrás da serra.

A cova que ele começara estava no fim, “cabem dois”, mediu de vista. Arrastou o corpo da mulher, o sangue deixando um rastro ocre nos pedriscos, não conseguia sentir nada com a cena, a não ser um incômodo, por saber que a vida tinha sido uma perda de tempo, uma guerra que ninguém vencia e que ele já tinha nascido perdedor.

O rosto desfeito fez um barulho nojento quando o corpo estatelou-se no fundo do buraco. Por causa do vestido que enroscou, uma perna ficou ridiculamente levantada. “Não posso deixar ela nessa descompostura”, pensou, enquanto escorregava para deixar a morta numa posição mais decente.

Um calanguinho correu por debaixo dos dois canos quentes da “vinte e oito”, um cartucho continuava intacto.

O sol ainda reinava quando ele encostou o cano debaixo do queixo e armou o cão. A mulher já não tinha mais nada para reclamar. Pelo menos uma vez na vida ele começou uma coisa e foi até o fim.

Acertei na medida, cabem dois mesmo, sorriu satisfeito. O carcará berrou assustado com o estrondo. O último.

RvCarlos
Enviado por RvCarlos em 24/02/2019
Código do texto: T6582891
Classificação de conteúdo: seguro