15. CHEGADA A DESTINO ALGUM

Este texto é seqüência do texto 14. CARONA PARA O PERIGO.

A dormir sob o telhado de um ponto de ônibus na serra do Quilômetro Quinhentos da BR 116, no Estado de São Paulo, vez ou outra acordávamos e, vendo que a água se achegara mais, íamos mais para o centro do abrigo. A chuva fraca perdurou pelo resto da noite, avançando sobre a parte seca do abrigo, fazendo-nos buscar aconchego sempre mais para o centro, até que para seguirmos dormindo teríamos que nos acomodar uns sobre os outros.

Por detrás do morro a nossa direita já se podia ver o tom branquicento do alvorecer. Apenas um chuvisqueiro caia, mas ia diminuindo lentamente. Por um pouco estivemos em pé no centro do abrigo e logo o dia raiou. Então, sob um chuvisco agora quase imperceptível, seguimos descendo o asfalto encharcado da serra do Quilômetro Quinhentos.

A direita, numa pequena reta, em uma roça de milho verde, peguei umas espigas para amainar a fome. Na estrada, o mais velho dos catarinenses encontrou um pequeno pacote de camarões, que experimentou constatando que não estavam estragados. Em toda minha vida foi a única vez que provei tal alimento, comento um único módulo do corpo do bicho, só para confirmar que o gosto condizia com o cheiro de peixe rançoso. Segui comendo as espigas, enquanto ele saboreava seus camarões achados.

Em uma curva que corta uns rochedos eu ia adiantado uns dez metros dos catarinenses, que pareciam pouco dispostos a caminhar, quando ouvi ruídos de pneus aos solavancos. Olhando para a trás, vi um cavalo Scania com um prancha e, esforçando-se, conseguiu parar pouco além de onde eu estava. Percebendo que se tratava de uma carona que os catarinenses tinham atacado, corri com eles à porta do passageiro, que ao abrir-se o motorista perguntou como podiam estar juntos dois “catarinas” e um gaúcho. Tal pergunta me pôs surpreso, sendo que ainda não conhecia nenhuma das piadinhas entre os gaúchos e os catarinenses, muito menos que alguma vez tivessem querelas.

No dia anterior, em Curitiba, eu tinha alcançado os dois catarinenses na mesma rodovia. Eles iam de Canoinhas para São Paulo em busca de prosperidade e eu apenas fugira da casa de meu pai, em São Leopoldo, na Região Metropolitana de Porto Alegre haviam quase dois meses, sendo que corria o mês de janeiro de 1981. Tínhamos conseguido uma carona no posto de pesagem na divisa dos Estados do Paraná e São Paulo, mas a viagem tinha sido interrompida num acidente que sofremos no meio daquela mesma serra, pelo que seguimos a pé, na chuva, até acharmos o ponto de ônibus, onde tínhamos passado o resto da noite.

Agora de carona, seguimos viagem ouvindo a conversa do motorista entremeada aos assuntos do rádio animado pelo suspense do Gil Gomes, que salpicava de sangue os alto-falantes. Embora que quando bem pequeno ouvia ao fundo, na calada da noite, o programa do Zé Bétio, na Rádio Record, que a tia Antônia sintonizava em Taquara quando posava na casa dos nossos avós maternos, jamais ouvira tal rádio durante o dia, tampouco um programa bizarro como aquele.

Era cedo ainda quando paramos num grande posto de combustíveis na cidade de Registro, onde o motorista convidou-nos para um bom café, que ele pagou generosamente. Dali, seguimos para a última etapa até a Capital e pelo caminho foram surgindo outdoors, indicando que a Metrópole estava cada vez mais perto, aumentando minha expectativa.

Logo a pista única tornou-se dupla e breve vimos um Alfa Romeu trucado, da Expresso Rio Grande São Paulo, tombado entre as duas pistas da rodovia. O movimento de veículos foi crescendo rápido a medida que avançávamos, dificultando mais e mais a locomoção. Por fim, os carros andavam mais lentos que as pessoas e nos outdoors viam-se artistas da Globo no papel de garotos-propaganda, algo que eu ainda não vira e isto me dava a certeza de estar entrando em São Paulo. Em muitos desse painéis vi o Jô Soares.

Eu entrava numa das maiores cidades do mundo e tentava me emocionar mais do que a emoção que eu sentia, que então não parecia enquvalente a expectativa. Queria descobrir o que havia ali capaz de me fazer mais feliz do que em qualquer outra cidade. Seria que esbarraria em algum artista da tevê? Talvez visse a tevê Globo, o SBT, o Sílvio Santos, alguém da Bandeirantes passando, artistas de algum filme de Holywood. Somente uma pergunta se materializava em minha mente. De resto, carros haviam muitos, mas eles também haviam no lugar de onde eu tinha vindo e para mim não precisava mais do os que lá haviam, pois todos eram propriedade de outras pessoas. Pessoas tinham muitas, mas todas eram como as outras tantas que eu já tinha visto aos milhares. Ruas tinham demais, mas eu sabia que ao percorrer cada uma delas chegaria em uma casa onde eu não poderia entrar. Logo percebia que não haviam motivos para ter ido até ali, muito menos para seguir adiante. Nem mesmo a título de curiosidade a viagem fora válida, exceto pela experiência conseqüente adquirida, sendo que tudo que eu via em excesso nessa cidade imensa havia em medida menor em qualquer outra cidade. Exceto por uma coisa: na cidade de São Paulo havia algo que eu não podia encontrar nas outras, o riacho Ipiranga, onde imaginava que poderia me reportar para o passado e esse riacho eu tentaria encontrar, para me encontrar com nossa história.

Após desvencilhar-se do engarrafamento na BR 116, o motorista seguiu rodando pela marginal Tietê rumo a oeste, passando em frente a Editora Abril e a Bic. Foi emocionante esse contato com o, aparente, inatingível, embora a Editora Abril e as Canetas Bic sempre foram peculiares em muitos recantos. Deixando a Avenida dos Estados para a esquerda, rodamos por muitas quebradas até que o homem nos deixou meio a um emaranhado de muros e prédios, onde em cada esquina havia um soldado com o que eu entendia por uma metralhadora em punho. Meio a toda essa aparência hostil, apenas um carrinho da Kibon dava um toque familiar, embora que eu não tivesse dinheiro para comprar um picolé. De resto, o ambiente mais lembrava uma cidade sob alerta máximo.

Andamos quebrando esquinas em direção ao sul, conferindo vagas nas placas das empresas. A um homem na rua perguntei onde ficava o riacho Ipiranga. Ele respondeu perguntando-me o que era riacho Ipiranga. Somente em 1992, em viagem a São Paulo na casa do meu tio Simão, ele com a tia Míriam me levaram ao riacho Ipiranga, que é seco, coberto de concreto.

Após muito caminhar, cruzamos para o lado sul do rio Tietê, perambulando por entre as ruas estreitas de um bairro de casas próximo dali, subindo umas lombas e descendo outras, sem encontrar qualquer coisa que pudesse ser comida, exceto água que pedimos em uma pequena fruteira. Mais tarde retornamos para a marginal Tietê, onde passamos a noite sob um viaduto, com o estômago colado nas costas. Bem cedo no dia seguinte, nos pusemos a caminhar no acostamento da pista central rumo ao leste, certos de voltarmos cada um para sua casa. Eu levava junto um casco marrom de lã, tipo de guarda, que tinha encontrado sob o viaduto.

Durante boa parte da manhã os catarinenses forçaram o ritmo, fazendo-me cansar muito, pelo que fui ficando para atrás e cansando ainda mais porque, às vezes, corria, tentando alcaçá-los. Em certo momento eles iam ao menos uns cinqüenta metros na frente, quando vi que uma pick up Chevrolet parou em resposta a um seu pedido de carona. Com muito esforço, corri pensando como faríamos para ir os três, além do motorista na caminhonete. Mas faltando muito para alcançar, o veículo arrancou sem tomar conhecimento da minha existência.

Parado no meio do nada, vi minha chance e amigos me deixando para atrás sem nem uma satisfação. Me vi pequeno e perdido, com uum aperto no peito e o choro que deixei brotar. Andara desde o Rio Grande do Sul praticamente a sós para chegar em São Paulo, mas não tinha me preparado para estar sozinho em meio ao nada, há mais de mil quilômetros de casa, sem comida, sem onde dormir e sem como voltar, apenas a estrada, os carros e a possibilidade de a sorte me conseguir carona e comida.

Wilson Amaral

Romance e Poesia
Enviado por Romance e Poesia em 24/09/2007
Reeditado em 24/09/2007
Código do texto: T666352