Evolução

Artur olhou enigmaticamente para o homem à sua frente. Era um sujeito comum, simples, vestia calças jeans e camiseta, ambas pretas. Tinha os cabelos, também negros, cortados bem rentes, e seu rosto era tão inexpressivo que ficava até difícil traduzir em palavras. Seus olhos, estes sim, eram marcantes. Não que fossem belos ou deformados, eram comuns como ele todo, mas irradiavam uma sabedoria milenar, parecendo extremamente mais velhos que o resto do corpo.

“Devo estar bêbado”, pensou, esfregando seus próprios olhos. O estranho pareceu saborear sua confusão.

– Quer mais um chope? – perguntou ele, quando o garçom se aproximou. Artur recusou com um gesto, mas ele pediu um uísque.

– Olhe, que brincadeira é esta? – perguntou Artur, finalmente. – Eu estava aqui, sozinho, pensando na vida, quando você me aparece, cheio de sorrisos, e que ainda por cima alega que eu o chamei? Você por acaso é viado?

O estranho sorriu simpaticamente.

– Não sou homossexual, se este é o seu medo. Meu interesse em você é outro. Desejo apenas conversar. Acalme-se, e irei explicar tudo.

Artur acendeu um cigarro e tomou o último gole de seu chope morno. Recostou-se na cadeira e cruzou os braços.

– Ok, sou todo ouvidos – concedeu Artur, ainda desconfiado.

O garçom chegou com o uísque, que o estranho agradeceu e tomou um gole, olhando o copo admirado, e suspirando de satisfação ao final, enquanto o pousava à sua frente em cima da mesa.

– Bem, Artur...

– Opa, opa! Como é que você sabe o meu nome? – interrompeu-o bruscamente Artur, fazendo o estranho olhar para ele, como que surpreendido.

– Isso é irrelevante... – começou ele.

– E qual é o seu nome?

O estranho baixou os olhos e suspirou novamente, mas agora com nítida impaciência.

– Aqui neste mundo já tive muitos nomes – explicou. – Um para cada ocasião. Você pode chamar-me... Heitor. Está bem assim?

– Agora já não é mais um estranho.

Heitor sorriu. No fundo, parecia ser um cara simpático, avaliou Artur.

– Bem – recomeçou Heitor – como eu dizia, você disse que pensava na vida quando cheguei, certo?

– Certo.

– Mentira – disse Heitor, calmamente – Pensava na existência, na razão de tudo, numa explicação para o Universo. Até chegou a formular uma teoria, não estou certo?

Artur se ergueu num sobressalto, derrubando sua cadeira. Algumas pessoas que estavam perto se assustaram com o movimento brusco e com o ruído.

– Que... Quem é você? Como sabe?

– Sente-se, Artur. Não posso conversar com você aí, em pé. Por favor, não assuste o bar inteiro.

Sem tirar os olhos de Heitor, Artur pegou sua cadeira caída no chão e colocou-a novamente de pé, enquanto sentava vacilante. O bar logo esqueceu o incidente. Heitor bebericou novamente o uísque, estalou os lábios e continuou:

– Como sei, quem sou eu, são perguntas irrelevantes neste momento. Vim aqui para ouvir suas idéias. Quero ouvi-las de você.

– Eu... Quer dizer... São apenas divagações sem sentido - argumentou Artur, tentando acalmar-se. – Não sou filósofo, apenas um cara normal, bebendo num bar.

– Você dá extremo valor a questões insignificantes, mas tem idéias mais importantes do que imagina, meu caro, e eu estou sinceramente interessado em ouvi-las – disse Heitor, enquanto fixava intensamente seus olhos nos de Artur.

Artur deu uma forte tragada em seu cigarro, sem conseguir desviar o olhar. Suas dúvidas quanto ao estranho homem à sua frente não foram respondidas, mas decidiu fazer o jogo dele, nem que fosse apenas para saber onde aquilo iria parar. De alguma maneira sentia que podia confiar naquele estranho. Parecia um rapaz sinceramente sério e interessado.

Sua mente febril tentou desencavar da memória suas teorias, mas apenas conseguiu lembrar-se de sua mulher e filhos saindo de casa pela última vez, antes do acidente que os vitimou. Quase podia sentir o beijo que cada um deu em sua face naquele dia fatídico. Reviveu numa fração de segundo a dor de receber a notícia, e de enterrar as únicas pessoas que realmente amou na vida. Recordou o estado em que ficara, arrasado, deprimido, quase suicida, caminhando por centros espíritas, igrejas de diversos cultos, bibliotecas esotéricas, gurus, e até terreiros de macumba, procurando respostas para explicar uma tragédia totalmente sem sentido, e finalmente descobrindo, depois de cinco anos de pesquisa, que todas as correntes ideológicas são “certas” em alguns aspectos e “erradas” em muitos. Aos poucos criou sua própria teoria, e começou a acreditar nela, e a aperfeiçoá-la dia a dia. Era o que fazia quando Heitor se aproximou. Lapidava sua teoria.

– Eu sou deus! – sentenciou Artur, convicto. – Assim como você, e todos neste bar, neste mundo, neste Universo!

– Esplêndido! – comemorou Heitor. – Continue.

– Mas não imagine que são delírios megalômanos de um indivíduo que tomou algumas doses a mais. Muito pelo contrário! O modo como eu vejo o Universo na verdade me transforma numa peça ínfima de um sistema extremamente complexo. Eu sou o criador de milhares de universos, mas também fui criado por milhares, infinitos “deuses”, que, na verdade, são fragmentos do verdadeiro deus. Mas “deus” é uma palavra repleta de conseqüências, e não me agrada nomear a consciência universal – deste universo, é claro – de “deus”. Como tive formação católica, esta é a designação mais acessível para mim. Mas pode ser Jeová, Alá, Buda, Khrishna, o que você quiser.

– Como você gostaria de chamá-lo? – perguntou Heitor.

Artur deu um trago no cigarro, ergueu o copo vazio, cerrou os olhos, olhou para o lado direito, para a bolacha de chope úmida na mesa, e disse:

– Um. É o que mais se aproxima do que imagino. O Um. A Unidade. O número mais puro. O início.

– E como funciona este seu universo?

Artur de repente sentiu-se empolgado. Fazia tempo que não expunha suas idéias daquela maneira. Desde que sua família se foi, ele se havia se fechado numa concha hermética. Sua vida se resumia à rotina casa-trabalho-casa, sem nenhum traço de vida social. As únicas exceções eram as noites de terça, nas quais ele vinha a este bar, o predileto de Tatiana, e bebia sozinho em sua memória. Eles mantiveram este costume desde os tempos de namoro, pois haviam se conhecido lá, e ele não conseguiu abandoná-lo, mesmo após sua morte, por mais que doesse a lembrança. Não se envolveu com mais ninguém, apesar de não faltarem oportunidades. Já beirava os quarenta, mas ainda era considerado charmoso, e atraía bastante o sexo oposto.

O garçom colocou mais um copo de chope à sua frente, cortando suas reflexões. Artur olhou para Heitor e este fez sinal para que bebesse, e assim ele fez. Precisava urgentemente molhar a garganta.

– Imagine uma pessoa – recomeçou ele, revigorado pela bebida. – Não, imagine uma consciência, sozinha no nada. É hipotético. O próprio exemplo nega as teorias, mas simplifica a explicação.

“O que uma consciência faz? Ora, ela pensa! Ela só pode fazer isso, pois está no meio do nada. Pois bem, num certo momento, ela imagina um mundo, um certo mundo num certo universo. É uma idéia extremamente original. Ele imagina uma população para o seu mundo, um ecossistema coeso, os animais, e claro, cada indivíduo, cada ser neste novo mundo, é parte dele, é parte de uma vivência que ele desejou”.

– Esta é a idéia mais ortodoxa de Deus – complementou Heitor. – Os cristãos acreditam nisso há mais de dois mil anos, e os judeus há ainda mais tempo.

– E eles estão certos, só que sua visão é simplista – explicou Artur. – Eles imaginam um só Deus, e um só Universo. Eles colocam o bem e o mal em oposição, como o branco e o preto, quando na verdade tudo faz parte de uma carga de experiências do “deus” deste mundo.

– Agora você está caindo no espiritismo...

– Que também está certo, mas que só vê uma das faces do polígono, que é a noção de “crime-castigo”. Eles acham que o espírito de uma pessoa volta para pagar os erros de uma vida anterior, mas...

– O espírito faz parte de “deus”, isto é, do Um – acrescentou Heitor.

– Isso mesmo! Cada “encarnação” é uma criação dele! É uma experiência que ele desejava possuir. Todos os seres viventes de um mundo criado são experiências que ele desejava viver. Todos os eventos, acontecimentos, causas, são bagagem para que ele evolua!

– Por assimilar as experiências de todos os indivíduos daquele mundo, sua evolução deverá ser bem rápida...

- É quase imediata! – cortou Artur. – Neste momento, enquanto você imagina este universo, ele é criado, você recebe todas as experiências, e, quando se esquece dele, ele termina. Mas, para os viventes deste universo, passou-se uma eternidade de anos.

– O momento em que imagino o universo é o “Big Bang”, e quando paro de pensar nele, ocorre a entropia – disse Heitor.

– Sim, isso mesmo! Imagine novamente o mundo criado pela consciência solitária. Imagine se cada ser daquele mundo imagine um novo mundo.

– Cada indivíduo torna-se deus deste seu novo mundo.

– Sim! E assim continua, infinitamente. Cada ser criado cria um novo universo, em busca de novas experiências. Mas esta também é uma simplificação do pensamento. Na verdade, a idéia é tão grande que é difícil colocar em palavras. É a primeira vez que tento – justificou-se.

Artur tomou mais um gole de chope, e acendeu outro cigarro. Aquilo havia lhe feito bem. “Você só materializa suas idéias quando as verbaliza, quando as debate com alguém”, pensou. Chegou até a esboçar um sorriso.

Heitor olhava-o com os olhos interessados. Seu dedo indicador brincava com os cubos de gelo de seu uísque.

– Às vezes imagino que somos todos personagens na mente de um escritor – continuou Artur – que neste momento pode estar narrando nosso diálogo em seu caderno. Ou podemos ser somente coadjuvantes de uma história maior, mais complexa.

Heitor sorriu satisfeito.

– É uma possibilidade – disse ele.

– Sabe, eu pinto quadros – confessou Artur. – Paisagens. Não copio nada, eu as imagino. Foi daí que nasceu esta idéia.

– Que você, com seus quadros, criou um novo mundo, um novo universo, onde é o deus absoluto? É o Um?

– Sim. É isso o que penso. É nisso em que acredito.

– Mas, quando alguém admira seus quadros, imagina o mesmo mundo? O seu mundo? – interrogou Heitor.

– Não, absolutamente. Ele interpreta a gravura como quiser, e cria algo completamente seu. Neste aspecto, somos pessoas completamente diferentes, pois temos perspectivas diferentes do mundo criado pelo nosso Um. Tudo faz parte da experiência.

– Suas idéias me lembram a Teoria do Caos. Seu “universo” me lembra um fractal.

– Mas é um fractal! – entusiasmou-se Artur. – Cada indivíduo é formado por infinitos indivíduos, que no final são todos parte do Um, que é parte de uma nova consciência que o criou, etc. O ciclo é eterno.

– E quando chegar o momento em que o Um já tiver passado por todas as experiências? O que acontecerá com ele neste momento?

– Ele evoluirá. Poderá criar novos universos, completamente originais. Terá bagagem para isso.

Ao ouvir isso, Heitor abriu um sorriso, um sorriso do mestre que percebeu que seu pupilo aprendeu tudo o que lhe foi ensinado, mesmo sem ter consciência do fato. Terminou seu uísque e se levantou, estendendo a mão para Artur, que a apertou firmemente.

– Estou satisfeito, amigo. Suas teorias são por demais interessantes. Gostaria de conversar mais, mas tenho que ir.

– Podemos marcar outra data...

– Lamento, mas será impossível. Não nos veremos mais nesta vida. Mas fique sossegado. Somos todos uma parte do Um – brincou.

Artur ergueu o copo como num brinde. Heitor acenou, e se dirigiu à saída, acenando novamente antes de se retirar.

Artur sorriu enquanto bebia. “Que cara legal”, pensou. Reformulou em sua mente todo sua teoria, agora de uma maneira mais concreta. Ordenava tudo, já pensando em escrever um livro sobre o assunto, quando pensou numa conseqüência que não havia imaginado: A partir do momento que você sabe tudo sobre o seu universo, já é o momento de evoluir.

Como seria essa evolução?

Pensou nisso enquanto pagava a conta, mas não conseguiu imaginar. Estava distante de sua compreensão.

Não fazia parte de seu universo.

Pensou em outra coisa enquanto atravessava a rua, na direção do estacionamento: Se suas teorias estivessem corretas, talvez fosse o momento de evoluir. E se já era o momento de evoluir, o que o prendia a esta realidade?

Era esta a pergunta que pairava em sua mente quando o ônibus o atropelou, matando-o instantaneamente.

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Alexandre Heredia é co-editor do NecroZine (http://www.necrozine.blogspot.com/), e mantém os sites Psicopata Enrustido (http://www.psicopataenrustido.blogspot.com/) e Antelóquios (http://www.anteloquios.blogspot.com).

Alexandre Heredia
Enviado por Alexandre Heredia em 17/03/2005
Reeditado em 05/04/2005
Código do texto: T6847