Um pacote inesperado

Leila estava atrasada e quando ela estava atrasada tudo dava errado. Na primeira volta da treta chave na porta se lembrou de conferir se o celular estava na bolsa – não estava. Também não estava na mesa e nem na cama perto do travesseiro. Ou seja, tinha desaparecido. Enquanto buscava o telefone, lembrou que não tinha impresso o ofício para entregar o projeto do prédio comercial na prefeitura. Calculou mentalmente o que seria pior, e decidiu ligar o computador. Não entregar o ofício seria gravíssimo; o atraso implicaria apenas em algum desconto na folha de pagamento. E já que iria utilizar a impressora era melhor simular alguma calma – “elas pressentem o medo”, seu marido sempre dizia. Pegou alguns biscoitos e um pouco de suco de caixinha.

Foram três tentativas até o ofício sair aceitável. Foi em direção a porta e se lembrou que ainda não tinha achado o celular. Decidiu escovar os dentes e percebeu que o celular estava na bancada da pia. Pela terceira vez ela foi até a porta, três voltas na chave, check list mental e… Não tinha passado desodorante. Corrida rapidinha ao banheiro. Finalmente Leila abre a porta.

De inicio seu cérebro não processou. Não fazia sentido. Não tinha encomendando nada. Tão pouco seu marido. Não tinham tocado a campainha. Não havia motivo para uma caixa estar na entrada da sua casa.

Entretanto, lá estava a caixa. Papelão marrom, lacrada com fita adesiva, sem identificação. Pesada. Havia algo sólido solto dentro. Ela supôs que o normal nessas situações seria levar a caixa para dentro, e portanto, foi o que ela fez. Estava atrasada, estava terrivelmente atrasada, e deveria apenas ter deixado a caixa sobre a mesa. Mas como resistir ao mistério de uma caixa fechada?

Sem cerimônia ela cortou a fita adesiva com uma faca. Seu estômago entendeu antes que sua cabeça e ela vomitou no tapete. Enquanto encarava a mancha de vômito, tentava processar o que tinha visto. “Não pode ser isso, não é possível. Eu devo ter enxergado errado”. Apoiou as mão na mesa e foi elevando o tronco, temerosa do momento em que seus olhos cruzariam o limite da caixa de papelão. Uma massa negra e flexível sugeriam que o temor dela era real.

Tratava-se de uma cabeça. Uma cabeça decepada de um ser humano. Não qualquer ser humano. César Martins, contabilista, empregado na Limeira SA, a mesma empresa que seu marido trabalhava.

Já tinha visto o suficiente. Sentou-se no chão. Por que alguém se daria ao trabalho de mandar a cabeça do César para ela? Não possuíam intimidade, mal conversavam. Será que… Teria sido um ato de ciúmes? O marido teria desconfiado que ela e o César..? Impossível!

Ela nunca tinha traído o marido. O mais perto que chegou disso foi num cinema, quando foi sozinha assistir “Lady Bird”. O marido não gostava desse tipo de filme, preferia ação. E na fila do cinema havia um rapaz bonito, na casa dos 30, que também estava sozinho. Ele veio conversar com ela, e eles acabaram desrespeitando os lugares marcados no ingresso e sentaram lado a lado. Lá pelo meio do filme, ele deslizou a mão do encosto da cadeira para as coxas de Leila. Ela sentiu o rosto queimar, a voz sumir, o peito explodir e o sexo encharcar. E a mão do rapaz subia, e ela ia ficando cada vez mais quente. Então, num lapso, ela se lembrou que era casada e sem dizer nada se levantou e foi embora. Até hoje a imagens de Lady Bird a fazem umedecer o sexo…

Mas com César isso nunca aconteceu. Nem isso nem nada parecido. Sequer tinham o número um do outro. Ela mal conversava com a esposa dele – uma arrogante que se achava melhor do que todos só porque era médica dermatologista. Uma única vez conversaram apenas os dois em público. Foi numa festa da empresa. Falaram do champagne e de como odiavam fruta misturada com comida salgada. Nada, absolutamente nada a respeito do qual o marido pudesse desconfiar.

Então deveria ser outra coisa. Talvez não fosse para ela achar a cabeça. Talvez fosse para o marido – e seria o caso do assassino ser muito desinformado, posto que o marido estava no Rio de Janeiro e só voltaria amanhã. Mas Leila supunha que uma pessoa podia ser boa com mortes e péssima com datas. A cabeça do César seria um aviso? Talvez o marido e César estivessem metidos num esquema qualquer de corrupção. Ou seria o contrário? Ambos se recusaram a participar de um esquema, e mandaram a cabeça de César como aviso? Ela achava a segunda hipótese mais honrosa ao marido e a memória de César, mas admitia que podia ser a primeira também. Amava o marido, mas não colocaria a mão no fogo nem por ele nem por ninguém. Fosse o caso, o que ela deveria fazer? Chamar a polícia? Mas se o marido fosse criminoso, a polícia complicaria ainda mais a situação. Ligar para o marido? “Oi amor, deixaram a cabeça do César aqui na porta de casa. Devo jogar no lixo ou quer que guarde para você?”. Suspirou. Precisava se lembrar de mandar os pêsames para a esposa dermatologista do César. Ela deveria estar aos pedaços nesse momento.

Foi quando lhe ocorreu uma coisa. Aonde estaria o resto do corpo do César? Por que despedaçar uma pessoa assim? E se fosse um serial killer que gostava de apavorar as pessoas mandando pedaços de corpos? Nesse caso, ela provavelmente estaria sendo observada nesse momento. Talvez ela fosse a próxima vítima, e alguém da Limeira SA receberia a cabeça dela numa caixa do sedex. Talvez fosse um ex-funcionário da empresa. Ou um cliente lesado. Era um ato de vingança.

Ficou de tal forma absorvida na história, que chegou a ver um vulto na janela – era apenas a sombra de um pássaro – e pés na mesa da cozinha; eram apenas sapatos fora do lugar.

Bobagem! Não havia nenhum assassino observado, isso era coisa de cinema – e receber cabeças em caixas também era, mas ela preferia não pensar nisso. Ela usaria a razão e faria o que qualquer pessoa normal faria: ligar para a polícia e em seguida para o marido. Ou seria melhor o contrário? Seria compreensível que uma mulher, diante de um fato tão horrendo, buscasse primeiro o marido? Ou isso atrairia a desconfiança dos policias?

Fosse como fosse, ela não podia continuar sentada no chão com um cabeça na mesa de jantar. Discou 190 no celular e se levantou: os policiais provavelmente lhe fariam perguntas sobre a caixa e ela queria responder da melhor maneira possível. Manteve a caixa na visão periférica quando algo chamou a atenção. Algo que ela não tinha visto nas duas primeiras vezes, por culpa do choque. Branco, retangular, impresso, embalado em plástico. Um bilhete.

O certo seria não tocar no bilhete e chamar a polícia. Anos de CSI diziam isso para ela. Mas como resistir ao mistério de um bilhete? Abriu o plástico e leu:

“Enterre a cabeça”

Só. Mais nada. Uma ordem seca. Devolveu o bilhete para dentro da caixa. Ela ainda poderia chamar a polícia. Seria compreensível: ela se assustou com o conteúdo da caixa, supos que o bilhete tivesse alguma explicação, tocou nele. Não a culpariam por isso. Mas uma ordem seca, direta… E se o marido…?

Não podia ser. O marido era dado a rompantes de raiva, mas nada nesse nível. Ele não era homicida. E além do mais, não faria isso com ela. Não a envolveria de forma tão sórdida num assassinato, assim, sem nem hesitar ou se explicar. Além do mais… Por que não dar à cabeça o mesmo fim que deu ao corpo? Não havia motivo para a cabeça ter tratamento especial.

Ou talvez fosse um teste de lealdade. Ele queria saber se ela o amava. Talvez ele nem estivesse no Rio. Talvez ele estivesse a observado nesse momento. E no fim tudo se resumiria a: ela queria continuar casada com um homem assim? A resposta era não. Restava então uma última pergunta: era possível se separar de um homem assim?

E não havia certeza, apenas o dilema: obedecer a razão e chamar a polícia ou obedecer ao bilhete e abrir um buraco no quintal?

O telefone tocou. Das cinco coisas que ela pensou quando ele tocou, nenhuma se realizou. Era apenas o chefe querendo saber onde ela estava e se tinha conseguido protocolar o projeto na prefeitura. Ela desconversou. Se chamasse a polícia, o chefe descobriria o motivo do atraso. Se não chamasse… talvez ele levasse alguns anos para descobrir.

O telefonema a trouxe para a realidade. Havia uma vida para ser vivida lá fora. Não poderia permanecer a manhã inteira amarrada àquela caixa. Era o César que tinha morrido e não ela. Não havia pá na casa e a dúvida sobre a real natureza do marido parecia demais para ela. Ela chamou a polícia.

Em menos de meia hora a entrada da casa de Leila tinha mais repórteres do que policiais. Todos queriam uma entrevista com ela. A polícia não sabia se tratava Leila como suspeita ou testemunha. O marido apressou o retorno da viagem. Ele parecia completamente chocado e arrasado. Os vizinhos faziam suas conjecturar; um deles viu um motoqueiro deixar a caixa. Outro diz que foi um homem gordo num uno preto. A senhora do inicio do quarteirão jura que foi um casal num HB20 branco. O projeto do prédio comercial só foi protocolado uma semana depois, quando a situação se acalmou um pouco.

Nunca acharam o resto do corpo de César. A motivação do crime nunca foi descoberta, assim como o local e a maneira da morte. Segundo o legista, decapitação tinha sido pós morte. Não havia nada de anormal na cabeça, apenas sujeira na cavidade nasal. A perícia não sabia especificar o tipo de sujeira que era.

A única coisa que Leila sabia é que até o fim da vida ela responderia a respeito desse caso. A cada geração apareciam jovens interessados em saber o que ela sentiu e o que ela pensou nesse fatídico dia.

- O que você acha que teria acontecido se eu tivesse obedecido ao bilhete? - perguntou ao marido, enquanto se preparava para deitar.

- Teriam nascido lindas begônias.

Um arrepio percorreu a coluna de Leila.

- Eu gosto de begônias. - ela respondeu.

No escuro, enquanto a mão do marido pesava sobre a cintura dela, ela planejou. O passaporte ainda estava na validade. O dinheiro da conta conjunta estaria inacessível, mas ela ainda tinha algum na conta pessoal. Daria certo. Antes que ele percebesse, ela já estaria em outro continente. Assim que amanhecesse ela estaria livre. Tentou pensar em algo bom. Lady Bird.