20. TÃO AMIGOS QUANTO IRMÃOS

Este texto é seqüência do texto 19. CONTERRÂNEO QUAL O PAI.

Após a manhã de um dia que começou estranho e dolorido depois que um caminhão me esbarrou deslocando meu braço direito, um amigo que acabara de conhecer no restaurante onde comia um bolo inglês com café preto em lugar de almoço, fez questão de me pagar o almoço à mesa com seus colegas de trabalho, todos vendedores da Zivi Hércules. Contando-lhes do que me sucedera naquela manhã e mostrando-lhes o braço direito inchado como um pão sovado, sendo que viam as roupas muito velhas e sujas que eu vestia e os sapatos que somente encobriam os pés, pois faltavam-lhes mais da metade das solas, solidário o amigo que tinha se apresentado como meu conterrâneo disse que eles iam me arranjar uma carona para São Leopoldo, ou proximidades, nem que demorasse uma semana ou mais, mas me proveriam abrigo e comida enquanto estivesse em sua companhia. Então fizeram planos para mim, determinando que poriam um colchão sobre o parque do quarto do hotel onde se hospedavam; me dariam roupas e sapatos novos, que eu somente vestiria após tomar um banho muito caprichado. Na verdade não consigo precisar quando eu tinha tomado o último banho. Me consta, porém, que as solas dos meus pés, que são bem macias, estavam rachadas e essas fissuras doíam muito. A calça que eu vestia era a mesma Lee cinza com a qual saíra de casa em novembro do ano anterior e a camisa, era ainda uma azul escuro, salpicada de pequenos desenhos triangulares brancos, que me acompanhava desde o início.

Após a farta refeição, como há muito eu não fazia, acompanhei os novos amigos grandes ao quarto do hotel, onde me providenciaram uma toalha e tomei um demorado banho, pois o amigo conterrâneo tinha dito que depois ia conferir a eficácia da limpeza. Mais tarde, um dos amigos chegou trazendo a nova roupa que eu deveria vestir: uma calça de veludo cotelê marrom claro, uma camisa de manga curta, um par de sapatos, além de meias e cueca, tudo novo. Imagino que tenha ido até a cidade, pois demorou um pouco para retornar de carro, apesar de que foi de carro.

Enquanto eu me perfumava e vestia a nova roupa, outro dos amigos chegou de fora trazendo a notícia de que já tinha arranjado a carona para mim com um outro amigo deles, caminhoneiro, mas a carona somente sairia no final da semana para Novo Hamburgo, mas não teria problema, pois eu ficaria hospedado com eles, que me pagariam o alimento até o dia do embarque.

Após vestir as roupas novas, dobrando a base da calça por não poder fazer a bainha, pôr a camisa para dentro da calça, colocar cinto, calçar os sapatos novos, encharcar-me de perfume e lamber bem o cabelo, acompanhei os quatro amigos ao restaurante, onde me apresentaram para os funcionários, dizendo que eu era um amigo da cidade natal de um deles e ficaria por ali uma semana até embarcar de carona para casa com o fulano do Alfa Romeu. Muito gentis, o pessoal do restaurante me disse para sentir-me como se estivesse em casa, podendo ficar por ali o tempo que quisesse e se desejasse podia passar para o outro lado do balcão e ir para a cozinha ajudar. Então fiz amizade com todos eles e logo estava na cozinha ajudando em tudo. Eram uns rapazes muito amigos, uma moça lindíssima, um pouco mais velha do que eu e muito meiga, além de uma senhora linda de uns trinta anos, que me tratava como se eu fosse seu filho. Sua maior beleza estava no sorriso carinhoso.

Durante toda a semana estive ali como se estivesse mesmo em casa. Tudo eu tinha no restaurante, além da amizade familiar de todos eles, e ao meio dia e a noite tinha a companhia paternal dos amigos vendedores de faqueiros.

O final da semana foi chegando e a vontade de que não chegasse foi aumentando. Muitas vezes a senhora comentou com a moça em minha presença que estava gostando muito da minha estadia e que gostaria que eu não mais fosse embora. A moça concordava com ela, reforçando que seria bom se eu ficasse. Algumas vezes os rapazes me indagaram porque eu não ficava, sendo que garantiam que intercederiam junto ao patrão para me arranjar uma vaga no restaurante, além que providenciariam o resto tudo que precisasse. Eu queria ficar, mas não sabia o que fazer, não vendo por onde ficar, pois pensava que devia voltar para casa; meus pais deviam estar angustiados e isto não era justo. Talvez até voltasse outro dia para lá, mas isto, certamente meu pai não permitiria e eu não fugiria de casa outra vez.

O fim da semana chegou e as horas derradeiras antes da minha partida se apresentaram de assalto. Após o almoço os amigos paternais se despediram, antecipando que já tinham confirmado a viagem com o motorista do Alfa Romeo, que logo me procuraria, e desejando boa viagem. Agradeci-lhes muito por tanta amizade e por tudo que tinham feito por mim. Mais tarde o motorista do caminhão me procurou e disse que sairia somente em torno das vinte e duas horas, pois estava trocando as lonas de freio e o caminhão. Nesse horário eu deveria ir para a oficina, ao lado da borracharia, no mesmo posto de combustíveis, e me apresentar para o Vilson, um cidadão de cor negra bem grande, que estava consertando os freios.

Após anunciar o horário que de partida, um clima de tristeza pairou sobre mim e o pessoal do restaurante. Fui para a cozinha e procurei estar o mais perto deles que pude. Falamos muito mais do que nos últimos dias e eu repeti várias vezes que jamais me esqueceria deles. Muitas vezes a senhora me abraçou e beijou como se fosse a minha mãe. Muitas vezes declarou que jamais me esqueceria, ao que eu sempre correspondia. Outras vezes fui abraçado pela moça, que a cada beijo na bochecha me provocava tremuras no corpo e vacilos nas pernas. Entretanto, ela não dizia nada, pois decerto o que tinha para dizer tinha dito nos últimos dias.

Em torno de oito horas eu não suportava mais a apreensão. Por um lado o temor de perder a carona, além da expectativa pela viagem tão longa, coisa que eu sempre gostei, mas por outro o desejo de ficar com meus amigos. Querendo sair desse sufoco, fui me despedindo. Então a senhora, e me deu juntamente com os colegas um cartucho (fardo de papel pardo) grande cheio de salgadinhos, dizendo que era para que não me faltasse comida na viagem. Depois me deu um abraço aconchegante enquanto derramava uma lágrima bendita. Também com os olhos cheios d’água, a moça me abraçou, fazendo sufocar ainda mais meu coração. Depois foram os abraços dos rapazes e os intermináveis desejos de sorte e boa viagem.

Era quase nove horas quando cheguei na oficina do Vilson e lhe disse que viera para pegar uma carona com o homem do Alfa Romeo, que certamente sairia em torno de vinte e duas horas. Batendo forte com uma marreta no ferro do cubo de roda do caminha, tendo no rosto expressão mal-humorada, ele disse que dificilmente o caminhão ficaria pronto antes da madrugada. Pensei em voltar para o restaurante com meus amigos, mas achei melhor ficar por ali para evitar que o homem partisse sem mim. Então fui comendo os salgadinhos até esgotar o pacote que os amigos me tinham preparado no restaurante. Passado uma meia hora, apesar das batidas enérgicas do Vilson nos ferros, comecei a toscanejar, não conseguindo controlar o sonho. Vendo um monte de papéis pardos num canto por ali, disse ao mecânico que ia tirar um cochilo sobre aqueles papéis, pelo que lhe pedi que não se esquecesse de mim, me acordando quando o motorista viesse pegar o caminhão.

Após cochilar por umas duas horas, acordei preocupado com o caminhão. Erguendo a cabeça, vi o homem negro sentado em um cepo por ali. Perguntei-lhe o que tinha acontecido com o caminhão. Respondeu que havia mais de uma hora que o serviço ficara pronto e o motorista o pegara, partindo rumo ao sul.

Wilson Amaral

Romance e Poesia
Enviado por Romance e Poesia em 27/11/2007
Reeditado em 27/11/2007
Código do texto: T754469