21. AMIGOS NO CAMINHO

Este texto é seqüência do texto 20. TÃO AMIGOS QUANTO IRMÃOS.

Durante uma semana esperei por uma carona, que me levaria até Novo Hamburgo, há doze quilômetros da minha cidade, na Região Metropolitana de Porto Alegre. No final do mês de novembro do ano anterior eu tinha saído da casa do meu pai, em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, indo até São Paulo, de onde retornava havia umas duas semanas e até então pegara duas caronas, uma de um quilômetro, de um senhor em uma Rural, e outra de cem quilômetros, de um baiano que transportava dois caminhões pequenos para a transportadora Rio Grande-São Paulo, em Novo Hamburgo. Alegando haver muitos fiscais da empresa pelo caminho e por isto não poder dar carona, ele me deixou num posto de combustíveis em Registro, de onde segui a pé. Dias mais tarde, sofri um atropelamento quando andava pelo acostamento da rodovia e nesse mesmo dia cheguei num outro grande posto de combustíveis, onde fui acolhido por um rapaz que se disse meu conterrâneo. Além de me acolher, me arranjar roupas novas e pagar meu alimento durante uma semana, o conterrâneo me conseguiu uma carona até Novo Hamburgo, com um seu amigo que viajaria dali uma semana com um FNM. Corria o mês de fevereiro de 1981.

No restaurante desse posto fiz amizade com os funcionários, gente maravilhosa, a quem eu auxiliava enquanto esperava o dia da viagem. Levaria grande saudade desse pessoal. Num colchão estendido no chão do quarto de hotel, onde o conterrâneo se hospedava com seus companheiros de trabalho, eu dormia. Assim passei a semana, até que, ao findá-la, na tarde do último dia o homem do FNM me procurou no restaurante para confirmar a carona, mandado que o esperasse por volta das vinte e duas horas junto ao caminhão numa oficina do próprio posto, onde o Vilson reformava os freios. Feliz, por tratar-se o mecânico de meu xará, quando me encaminhei para a oficina eram ainda vinte e uma horas. O Vilson trocava as lonas de freio do caminhão. Disse-me, porém, que demoraria ainda muito para aprontar o serviço, sendo que achava que nem partiria naquele dia. Então me aconcheguei sobre uns papéis pardos próximos a traseira do veículo, pois o sono me vencia aos poucos. Quando acordei, por volta de duas horas mais tarde, o caminhão já tinha partido e o Vilson sequer se deu ao incômodo de responder porque não me acordou, como eu tinha pedido que me fizesse o favor.

O que fazer? Xingar aquele marmanjão negro? Tentar bater nele, só mesmo para louco. Meramente insultar o cidadão pareceu-me o mesmo que se bater em si próprio com uma tremenda marreta de ferro. E mesmo que eu pudesse desaforá-lo sem sofrer danos, de que adiantaria? Nada poderia mudar a situação. Há pouco eu tinha me despedido do pessoal no restaurante e a senhora cozinheira, bem como a jovem, tinham ficado com lágrimas nos olhos. Não poderia voltar com uma tremenda cara-de-pau e dizer-lhes que perdera a carona, que tanta expectativa tinha criado por toda aquela semana e que todos tinham se empenhado em me ajudar a não perder, mas eu perdi simplesmente porque vacilei, dormindo sobre um monte de papel. Fora muito desleixo da minha parte. Não podia voltar e contar-lhes que os lanches que tinham me preparado para a viagem eu consumira antes mesmo de partir. Também não poderia encarar o amigo conterrâneo que tanto se empenhara, arcando também com prejuízos durante toda uma semana para me auxiliar e eu deixara a chance passar porque não consegui manter-me acordado por um pouco mais.

Após engolir em sego a indiferença do homenzarrão, dei de mão na minha bagagem de mão (o casaco de guarda enrolado com a cacharel e a esteira) e fui saindo de fininho para que ninguém me visse, pois a essa hora o restaurante ainda funcionava. Andei até a rodovia e mergulhei na escuridão sem nem mesmo olhar para trás. Arriscava algum deles estar me olhando e eu não suportaria a vergonha. Se dormisse por ali, arriscava acordar tarde na manhã do dia seguinte, então eles me veriam e ficariam decepcionados.

Era quase meia-noite. Por isto, sem relutância, segui pela rodovia na escuridão meio assustado, sendo alumiado por um ou outro carro que passavam a espaços. Andei por mais de uma hora até encontrar um abrigo onde passar o resto da noite, sendo que na relva não poderia dormir, pois chovera por dias a fio.

No dia seguinte segui caminho a pé. Ao tomar a rodovia procurava ver em qual quilômetro começara a caminhada, observando umas pequenas placas que aparecem a cada dois quilômetros, sendo que a cada um aparece para um sentido da estrada. Em virtude de já ter caminhado tanto sem conseguir carona, conformara-me com a idéia de retornar a São Leopoldo a pé, por isto encarava a caminhada em nível de produção industrial, sem perder tempo pedindo carona. Parava somente para pedir o que comer nos restaurantes quando imaginava que estavam próximos os horários de refeição. Marquei a média de cinqüenta quilômetros por dia andando das sete até por volta das dezenove horas, quando parava, se já tivesse encontrado um local propício. Do contrário, seguia até anoitecer e, às vezes, até mais tarde, indo a bem mais de cinqüenta quilômetros.

Numa noite de uma garoa grosa seguia caminho tarde da noite a procura do que comer e de um telhado sob o qual me aconchegar. Em um grande posto de combustíveis no lado esquerdo da rodovia, havia uma borracharia seca sob um bom telhado e um restaurante no fundo do estacionamento, onde ao aproximar-me pude ver muitos homens bebendo junto ao balcão. Hesitei à porta, mas enfrentei a timidez lembrando que dali para a frente posto e restaurante, talvez, somente no Quilômetro Quinhentos, que estava distante ainda, segundo a última placa que eu tinha visto anunciando as distâncias. Junto ao balcão, à esquerda, um homem grande, de cabelos crespos, aparentando uns trinta anos, tomava um samba (ou Cuba Livre). À direita, uns três homens tomavam cerveja. Ao centro, do outro lado, o atendente, pelo visto, o próprio dono.

Em pé, junto ao balcão, aguardei para dirigir-me ao atendente e pedir algo para comer. Vendo-me ali, o homem grande da esquerda perguntou-me se estava com fome, determinando logo que eu pedisse o que quisesse, pois ele pagaria. Não querendo abusar de sua generosidade, aproveitei para pedir um grande bolo de carne que vi numa caixa de vidro aquecida sobre o balcão, o qual me pareceu muito suculento e havia muito que eu desejava experimentar um. Vendo meu pedido, ele perguntou-me se não queria mais nada e acrescentou que poderia pedir mais, se quisesse. Pedi então mais um daqueles grandes bolos de carne. Depois pedi uma Coca Cola média, pois ele insistiu que também pedisse o que beber.

Depois de pôr os bolos num prato de papel, o atendente despejava o refrigerante em um grande copo de plástico, quando o homem perguntou-lhe porque fazia isso. Ele respondeu que era porque eu ia comer no lado de fora do restaurante. Para mim não havia nenhum problema, nem mesmo achava que tivesse qualquer coisa errada na atitude do homem. Mas o outro lhe retrucou, dizendo que eu comeria ali mesmo, sentado a uma mesa, se quisesse, ou em pé junto a ele perto do balcão, como quisesse, mas comeria no interior do restaurante, pois ele estava pagando, eu era seu convidado e por isto ia comer ali, como qualquer cliente. Contrariado, o homem pôs o refrigerante de volta na garrafa, pondo os bolos em um prato de louça. Então comi até me fartar e sem qualquer temor. Depois lhe agradeci a generosidade, despedi-me de todos e procurei um lugar seco num canto escuro da borracharia, onde passei a noite guardado por Deus, embalado pelo barulho da goteira.

Wilson Amaral

Romance e Poesia
Enviado por Romance e Poesia em 28/11/2007
Reeditado em 28/11/2007
Código do texto: T755979