Crimes Passionais

Dois dias e aquele corpo ainda estava no chão do corredor. Os olhos abertos de Júlia pareciam vidrados em algo que não estava mais ali. Aqueles olhos que tantas vezes Luiz havia contemplado e feito chorar. Dois dias, e nenhum sinal de comida pela casa que, silenciosamente, guardava o cheiro de queimado da última tentativa frustrada de bolo de chocolate.

Portas altas, janelas grandes para deixar o ar entrar, uma casa para o verão. Mas era inverno, e as paredes estavam frias. Assim como o corpo de Júlia. Os cabelos, de cor castanho claro, amarrados frouxamente por um elástico azul escuro, pareciam ter sido puxados para todos os lados. Deitada, com as pernas para a direita, o tronco para o teto e os braços esticados ao longo do corpo, uma mulher, de vinte e nove anos, morta.

*

Samuel atendeu aos chamados do telefone de seu escritório (uma sala improvisada no lado direito de seu quarto, que ele insistia em chamar de escritório). Uma suspeita de que há três dias Júlia, a secretária, não teria ido ao trabalho, em uma pequena empresa de publicidade, simplesmente, por ter desaparecido. Não atendia ao telefone, nem a campainha. Os vizinhos nem perceberam o silêncio da casa verde do início da Rua das Amoras, nº 28. Também, nem tinham como, viviam atarefados com seus trabalhos, seus compromissos sociais e suas coisas muito importantes para ficar prestando atenção se a mulher de 1,70 e cabelos compridos estava ou não em casa. A colega de trabalho estava preocupada e solicitou a ajuda do amigo porque não sabia o que fazer nem o que responder aos questionamentos do patrão.

- Ninguém avisou a polícia ou tentou entrar na casa da moça? – perguntou Samuel.

- Não. Ela mora sozinha e não tem parentes aqui em Praia Bela e não sei de amigos, só um namorado, que eu não conheço.

- Alice, a primeira coisa que teremos que fazer será entrar na casa. Precisamos saber se ela está lá.

- Mas se estivesse em casa ao menos o telefone ela poderia atender.

- Preciso lhe dizer, sei que ela é sua amiga, mas ela pode estar passando mal, desmaiada ou até mesmo morta.

- Samuel! Não diga uma coisa dessas!

- Há três dias ela não dá noticias, ninguém vê ou viu sair... Ela pode ter sido seqüestrada ou assassinada.

- Tudo bem, mas como faremos para nos encontrar?

- Às 16h na Praça do Embaixador?

*

O banco de cimento acomodava, não muito confortavelmente, duas pessoas que apesar de amigas pouco se conheciam e conversavam atenciosamente. A mulher parecia preocupada e o homem curioso e compreensivo. Trocavam olhares expressivos. Saíram em direção à casa de Júlia sem dar importância a presença de um homem, sentado em baixo de um abacateiro, olhando uma fotografia. De outro homem.

Ao chegar no número 28 da Rua das Amoras, Samuel percebeu que a porta lateral estava destrancada e a lixeira guardava cascas de ovos, uma caixa de leite e outros restos esperando para ser colocados na lixeira comunitária. Ele abriu a porta e o cheiro era tão desagradável que Alice não conseguiu entrar. O homem que se perguntava porque estava ajudando uma amiga distante a procurar uma desaparecida, colocou um lenço sobre a boca e o nariz e caminhou cuidadosamente pela cozinha semi-organizada.

Sobre a pia de mármore um escorredor de louça segurava três copos de vidro com a boca virada para baixo, dois pratos pequenos de plástico decorados com motivos de primavera, talheres, uma fôrma e uma panela. Dentro da pia, rodeada por um pouco de água, repousava uma xícara de chá, com algumas ervas sobre o pires. A toalha branca de louça parecia ter sido jogada em cima da mesa, feita do mesmo mármore escuro da pia. Três cadeiras estavam em seus lugares a mesa, e uma não estava no campo de visão de Samuel. E não poderia estar.

(Era domingo e Júlia pediu que Luiz trocasse a lâmpada da cozinha que havia queimado na noite passada. Sem pensar, subiu na cadeira que, frágil, não suportou seu peso e quebrou. Ao cair, apoiou a mão no chão sem soltar a lâmpada que quebrou e cortou sua mão. Vários, pequenos e profundos cortes, dos quais ele levaria as cicatrizes para a vida toda.)

Samuel viu o bolo de chocolate em cima da mesinha da sala, sem uma metade. Imaginou que a mulher que ali vivia estava com fome antes de sumir. Olhou para a sua esquerda e viu o corpo inerte.

- Alice! – Gritou

Alice, que achava sua colega de trabalho misteriosa demais, pensava que não deveria estar preocupada com o desaparecimento. Mas seu senso humanitário e sua curiosidade (mais a curiosidade do que o senso humanitário) não a deixavam sossegada. Júlia não falava sobre sua vida pessoal, mas Alice desconfiava que havia algo escondido na vida da colega, como na sua também havia. Alguma coisa que ninguém poderia saber. E agora com o desaparecimento como descobriria o segredo de Júlia? Ouviu o grito de Samuel e entrou na casa correndo e enjoando imediatamente.

- Júlia! – O grito de Alice era uma mistura de espanto e desespero. Apesar da possibilidade não cogitava que a colega pudesse estar morta. De que morrera? O que faria?

Samuel olhou mais de perto o cadáver vestido de calça jeans escura e blusa de mangas compridas preta. As sandálias rasteiras, gastas pelo uso, caiam-lhe dos pés como se tivessem congelado no tempo. Não acreditou no que viu. Não era possível. Só poderia ser uma coincidência aquela mulher ser tão parecida com Paula. Paula trabalhava de cozinheira em um café no centro da cidade, não de secretária. Não queimava bolos... Como poderia?

Saíam juntos todas as sextas-feiras. O dia de folga de Paula. Jantavam, dançavam, bebiam. Há três meses, doze noites tinham sido maravilhosas. A companhia daquela mulher alta de cabelos castanhos, sempre soltos, era a razão da felicidade de Samuel. Ele esperava o dia de encontrá-la com a ansiedade do primeiro encontro. Eles se conheceram no supermercado, nada romântico, mas casual.

A última pizza congelada. Ele cede o pacote a ela (apenas por gentileza, porque estava morto de fome). Ela o convida para comerem juntos. Ele diz que adoraria, mas recusa (um homem recusando!) e diz que compra pizza pronta já que tem certeza que a queimaria. Ela indica uma pizzaria. Ele percebe que está falando com uma mulher linda e convida a desconhecida para irem juntos a tal pizzaria. Ela aceita. Eles vão. Comem pizza, conversam, dançam, bebem vinho, beijam-se. E isso se repetiria pelas próximas doze sextas-feiras. Até ele encontrá-la, como uma estranha, morta. No corredor frio de uma casa desconhecida.

- Paula! – Disse Samuel transtornado, incrédulo.

- O que você está falando Samuel? – Alice entendia menos que ele.

- Essa mulher é a sua amiga?

- Sim! É Júlia.

- Não. Ela se chama Paula!

- É impossível! Eu a conheço há um ano... Sempre foi Júlia, eu preenchi o cadastro para emprego, vi a carteira de identidade, você deve estar confundindo, Samuel.

- Não estou... Essa é Paula.

- De onde você está tirando isso?

Alice sentiu que descobriria o segredo de Júlia. Samuel deveria ser o namorado do qual a amiga pouco falava. Mas como ele seria o namorado, se não conhecia a casa? As peças eram parecidas, mas não se encaixavam.

- Eu a conheço, Alice! Saímos juntos há três meses.

- Vocês são namorados? – perguntou Alice desconfiada e confusa.

- Sim! Não! Na verdade apenas saímos juntos, mais amigos do que namorados. Só nos vemos no dia de folga dela, na sexta-feira. Não sabia que ela morava aqui, sempre pedia para deixá-la na outra rua, oposta a essa. Não acredito que depois de tudo ela mentisse pra mim!

“Depois de tudo”. Alice percebeu que Júlia traía o namorado com Samuel. Ou nem tinha namorado. E se esse namorado existisse, quem seria? Um assassino? Mas não era para pensar nisso agora (volta o instinto humanitário), pois precisavam chamar a polícia.

*

O corpo de Júlia, ou de Paula, como Samuel insistia em dizer, estava coberto por hematomas. Aparentemente a causa de sua morte teria sido o espancamento. Mas só uma autópsia revelaria a verdade.

Alice e Samuel reconheceram um sinal que Júlia tinha no pulso. Definitivamente, Júlia e Paula eram a mesma pessoa. Faltava descobrir porque a troca de identidade. E muitas outras coisas que eles nem imaginavam.

Procuraram telefones e contataram a família que viajou imediatamente para ajudar nas investigações e enterrar o corpo. Os dias se passavam, o laudo médico não saía, a polícia liberou a casa, e a família começou a reunir e organizar os pertences de Júlia com a ajuda de Alice (sempre muito prestativa) e de Samuel (inconformado).

Cinco dias depois, enquanto a equipe de limpeza fúnebre limpava a casa para colocá-la a venda, Alice encontra uma foto de Benjamin em uma das caixas das coisas de Júlia. Benjamin era o seu namorado secreto. Um homem que ela havia conhecido em uma festa, mas que ela sabia que morava com uma namorada. Ele era muito bonito, gentil e apesar de às vezes ensaiar algumas ameaças a ela o romance dava brilho à sua vidinha pacata. Mas por que Benjamin teria uma foto com Júlia? As peças se juntaram na cabeça de Alice. Benjamin era o namorado misterioso de sua colega de trabalho.

A campainha toca. Samuel dispõe-se a atender.

- Pois não?

- Quem é você?

- Desculpe, quem o senhor procura?

- Desgraçada! Já te colocou dentro de casa, seu vagabundo!

- O que é isso? Você acha que pode insultar os outros assim? Quem é você?

- Eu sou o dono dessa casa, seu advogadozinho de uma figa. Pensa que eu não sei quem você é? Por isso que não tem clientes! Fica andando com a mulher dos outros! Cadê a Júlia? Eu vou matar aquela desgraçada, mas eu vou matar você também!

- Desgraçado é você! E não vem com essa história de “eu vou matar” porque agora eu sei que foi você que a matou! Chamem a polícia! Aqui tem um assassino!

- O quê?

- É sim! Você matou a Paula com pancadas, seu covarde! Agora vem aqui com a cara deslavada querendo inventar histórias!

- Cala essa boca! Eu não sou assassino coisa nenhuma. Nós discutimos e eu bati nela como eu sempre fiz, mas ela ficou bem, saí de casa e disse que não voltava mais, e ela ainda estava bem viva no sofá chorando em cima daquele bolo queimado que ela nunca acertou fazer.

A polícia chegou, em tempo recorde, pois Alice disse que estavam matando um homem na frente da casa e não que era uma apenas uma discussão, pelo menos por enquanto. Todo mundo para a delegacia.

O homem que bateu à porta de Júlia, cinco dias depois da descoberta do corpo, oito dias depois de sua morte, era Luiz. O namorado. Ele afirmava que não havia assassinado a namorada, mas que realmente tinha espancado-a. Porém, quando saiu da casa ela não estava tão machucada e seus tapas não poderiam tê-la matado. No interrogatório teve que dizer o motivo da briga: semanas antes Luiz descobriu uma foto de Samuel na carteira de Júlia e perguntou quem era, desconfiando que ela estava traindo-o com ele. Depois de muito discutirem e se estapearem Júlia admitiu o romance com o advogado. Mas não parou de se encontrar com ele.

No dia em que Júlia morreu, ela havia contado a Luiz que estava grávida dele. Luiz não acreditou e disse que o filho que ela esperava era de Samuel. Ela disse que tinha certeza da paternidade do bebê. Ele não acreditou e esbofeteou-a. Mas usou menos intensidade da sua capacidade de força, lembrou-se de que ela estava grávida e não queria que ela perdesse um filho que realmente poderia ser seu.

Samuel não podia ter filhos, sabia que a criança de Júlia (para ele Paula) realmente não era dele. Mas ficou abalado ao saber do modo que Luiz tratava a mulher que ele enchia de mimos e carinhos. Entendeu o motivo de sempre achar que ela tinha um olhar triste: era uma mulher que amava um homem violento, e conheceu um advogado que além de defendê-la, poderia amá-la. Mas não queria que ele conhecesse seu lado fraco.

*

Alice ainda não acreditava que Benjamin era Luiz. Duas pessoas, na mesma casa, mantendo relacionamentos paralelos com identidades falsas. O que havia entre os dois que levou a essa situação? Como um relacionamento poderia se tornar algo tão maléfico. Estava inconformada, não se considerava uma pessoa que era traída, pois sabia que Benjamin morava com outra mulher, mas ele poderia ter dito a ela que seu nome era Luiz. Ele não foi sincero, quantas mentiras a mais contou? Um sentimento de raiva tomou conta dela subitamente.

*

Como a casa que a família de Júlia (sua mãe, sua tia e um primo) estava instalada era alugada, desocuparam a casa e aceitaram o convite de Samuel para passar os últimos dias no apartamento-escritório enquanto esperavam o resultado da autópsia.

Alice contou a Samuel que ela mantinha um relacionamento com Luiz (para ela Benjamin!) e que depois de ter descoberto tudo ele ainda não sabia que ela conhecia sua verdadeira identidade e que tinha medo de que ele a procurasse e fingisse que nada tivesse acontecido, já que nas últimas semanas ele não a procurara. Ela estava com medo do homem violento que conhecera.

Samuel sentia pena das duas mulheres. Como podiam trabalhar juntas e se relacionarem com o mesmo homem, sem uma saber da outra? E Luiz, Benjamin (seja lá quem for...) sabia que as duas eram colegas? Aquelas mulheres sabiam guardar segredos.

Luiz, de fato, procurou Alice. Estava abatido, magro de doente. Mas fingia ter um resfriado mal curado e que não queria incomodá-la já que sua namorada cuidou dele. Disse que ela cansou-se de ser sua babá e terminou o relacionamento. Queria saber se a partir de agora poderiam morar juntos. Alice estava temerosa. Ouviu os argumentos de Benjamin e ficou em dúvida. Como aceitar um homem violento dentro de casa, já estava pensando em terminar o relacionamento com ele, mas tinha medo de uma reação. Ele já ameaçou-a de violência algumas vezes, mas nunca havia chegado aos fatos. Mas agredia Júlia mesmo sem saber de Samuel e traía sem ser traído. Mas, mas, mas... Estava confusa.

Pegou sua bolsa e saiu de casa correndo. Luiz a seguiu e depois de dez minutos de correria e gritos no meio da rua, percebeu que ela estava indo à casa de Samuel, o advogado. Sua raiva o transfigurou. Correu o máximo que pôde e jogou Alice no chão.

- O que é? Vai me dizer que está tendo um caso com aquele advogadozinho também?

- Me solta! Do que você está falando?

- Aquele Samuel!

- Não conheço nenhum Samuel, Luiz!

Luiz soltou Alice e olhou para ela espantado e sério.

- O que você disse?

- Não conheço nenhum Samuel! – Disse Alice, enquanto se levantava.

- Não! – E empurrou-a para o chão novamente. – Você me chamou de Luiz! Meu nome é Benjamin! Ben-ja-min!

- Eu sei que seu nome é Luiz! E que você matou a Júlia!

- Júlia? O que você sabe?

- Eu sei tudo! A sua namorada era minha colega de trabalho, o Samuel e eu encontramos o corpo, cheio de hematomas, você a matou! E matou o filho que ela estava esperando também!

- Eu não matei ninguém! – O grito de Luiz chamou a atenção daqueles que moravam próximo ao lugar que eles estavam, a Praça do Embaixador, entre eles, Samuel.

Onze horas da noite, e tudo era silencioso, menos a praça onde se encontravam Alice e Luiz, que se defendia de todas as maneiras. Alice estava desesperada. Tinha medo de ser assassinada. Sabia que Luiz tinha uma arma, mas não sabia se ele estava com ela.

- Por que você não acredita em mim? – Gritou Luiz muito irritado.

- Porque você mente! É um mentiroso! Como pôde viver dois anos com dois relacionamentos e mantê-los em segredo?

Luiz riu e riu longamente. Uma risada histérica, enlouquecida. Tirou a arma de baixo da blusa, apontou para Alice e mudando seu semblante completamente disse:

- Sim! Dois anos. E agora vai acabar tudo! As duas vão morrer e eu vou me livrar de duas idiotas que não conseguem ser amiga nem da colega do trabalho! Você não sabe como eu fico feliz em saber que Júlia nunca soube de você. Era uma bobinha apaixonada. Como você! Agora que sabe que são duas tontas, serão duas mortas.

Alice fechou os olhos. Em uma fração de segundo a vida passou por sua cabeça. Desde a infância, a morte dos pais, a vida sozinha, o trabalho, o amor de Luiz, as revelações. Colocou a mão na cabeça e gritou.

- Não!

Samuel chegou silenciosa e rapidamente pelas costas de Luiz, segurando seu pescoço e fazendo-o soltar a arma, que deslizou pela grama até aproximar-se de Alice.

- O que é isso? Ah! É você Sa-mu-el! Só me faltava isso agora. Minhas duas mulheres e traindo com o mesmo homem! Me larga!

- Alice não te traiu. E se Júlia te traiu foi porque sentiu falta de alguma coisa que você não tem pra dar, talvez fosse amor, ou respeito, talvez até a fidelidade e a confiança que se espera de um bom romance.

- Romance! Mais um tolo! Me solta! Você vai descobrir que isso é tudo bobagem, que isso não existe. É uma ilusão, coisa que inventaram pra sofrer. Por isso fiquei tanto tempo com Júlia e Alice. As duas me faziam bem, as duas gostavam de mim. Se uma se irritava com a minha “falta de amor” eu tinha a outra, e logo tudo se resolvia. É muito mais fácil! Agora ficaria só com Alice e no primeiro dia acontece tudo isso. Se você não me atrapalhasse tanto, ela já estaria morta! Sai!

Luiz conseguiu se soltar dos braços de Samuel e correu em direção a Alice para pegar a arma e matá-la. Mas Alice foi mais rápida. Pegou a arma e apontou para Luiz.

- Você não vai fazer isso Alice!

- Como você sabe? Eu sou tonta demais? Não mereço fidelidade, respeito, romance! Você me fez sofrer muito, Luiz. Como posso amar um assassino?

- Eu não matei Júlia! Quantas vezes vou precisar dizer?

- Um milhão! Ninguém vai acreditar em você. Quer me matar? Quer morte? Então morra!

Alice disparou a arma em direção ao peito de Luiz. Cinco tiros. O quinto no pescoço. Luiz caiu. Alice soltou a arma com ar de quem pensa “o que eu fiz?”. Samuel chamou a polícia. Alice saiu correndo e desapareceu.

*

O resultado da autópsia revelou que Júlia havia cometido suicídio. Ninguém (a família e Samuel) entendeu. Ela bebeu um tipo de combinação de ervas para abortar o bebê, mas comprou e usou uma quantidade a mais do que a recomendada pela curandeira. Ela sabia das conseqüências. Estava muito machucada, depois teve hemorragia interna, caiu no corredor frio, matou seu filho e morreu.

Samuel se perguntava por qual razão Júlia tinha tomado aquelas atitudes. Ela poderia deixar Luiz e abrir o jogo para ele, mas não havia feito isso. Enquanto olhava a fotografia, pensava: “para onde fora Alice?” Acreditava que sua ira matara Luiz e não seus tiros. Seria encontrada pela polícia mais cedo ou mais tarde. A família de Júlia tinha ido embora e a casa estava vazia. As sextas-feiras estavam vazias. Alguém bate a porta.

- Me deixe entrar, por favor!

- Alice? Onde você estava? O que está fazendo?

- Você deu meu endereço para a polícia? – Perguntou Alice trancando a porta atrás de si.

- Não, mas a essa altura eles já devem saber. Onde você estava?

- Em um hotel. Passei em casa, peguei umas coisas e estou indo embora.

- Embora? Mas para onde? Você não pode, se você se entregar a polícia e explicar seus motivos podem reduzir sua pena...

- Não, eu estou decidida. Mas não posso lhe dizer para onde irei, será melhor assim, só vim aqui porque preciso lhe entregar uma coisa.

- O quê?

- Enquanto encaixotávamos as coisas de Júlia, encontrei a foto dela com Luiz e a sua ao lado, em cima de uma carta. Não sei como ela achava que você leria, já que a primeira pessoa a entrar na casa seria Luiz, mas acho que é uma daquelas cartas que são escritas e não são enviadas, mas essa chegou.

Alice abraçou Samuel, que calado pegou a carta e olhou Alice sair e recomendar o trancamento da porta e o sigilo de sua visita. Sentou-se na cama e leu:

“Samuel, me desculpe pelo o que vou fazer, mas não vejo outra solução. Você não sabe, mas sou praticamente casada com um homem, muito rude e violento por sinal. Mas acreditava que ele me amava e que as coisas mudariam se soubesse que estou esperando um filho dele. Porém ele descobriu você e não acredita que seja o pai dessa criança. Sei que você não pode ter filhos e depois de saber que não me chamo Paula, mas Júlia, sou casada e estou grávida de meu marido, querer que você ainda goste de mim seria muita ousadia minha.

Trair Luiz era me vingar de todas as agressões, mas se tornou um momento de felicidade que eu não considerava uma traição e sim liberdade, pois com você tudo era diferente e Luiz não estava por perto para me censurar. Quando te conheci comecei a viver algo que não acreditava que ainda existisse. Você me trouxe alegria, companhia, paixão e muitas coisas que recebemos e não percebemos, não damos valor. Você foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida nos últimos tempos. Mas tenho medo que Luiz o mate, assim como ameaçou fazer. Saiba que o que vou fazer é para te proteger, me proteger e proteger essa criança de um homem violento. Se assim acontecer, Luiz não terá certeza de nosso romance.

Romance. A palavra que você tirou de dentro de um baú e me mostrou todas as possibilidades de uso. Tive medo de me envolver e depois descobrir que eu não queria um romance, te magoar. Acho que te magoarei de qualquer jeito. Vou matar essa criança e me matar. Por mais forte que isso possa parecer, é a solução mais simples que vejo. Nada pode doer mais do que os tapas e a indiferença de Luiz e o seu olhar doce me pedindo para ficar mais um pouco.

Vou comer, como me indicaram, e beber uma xícara de chá com mais ervas do que o necessário para o aborto, assim vou ficar tonta, desmaiar e não sei o que acontecerá depois. Se eu não morrer, usarei a arma de Luiz. Eu não soube deixar você me amar e vou ter a covardia de fugir do problema em vez de correr em direção a ele para resolvê-lo. Já é tarde para me arrepender e você não poderá fazer nada para me impedir.

Meus sentimentos são confusos, não sei se poderia continuar feliz com você e deixar a ira de Luiz. Não ligue para estas lágrimas que estão molhando o papel, serão as últimas.

‘Eu quis dizer, você não quis escutar, agora não peça, não me faça promessas. Eu não quero te ver, nem quero acreditar, que vai ser diferente, que tudo mudou. Você diz não saber o que houve de errado e o meu erro foi crer que estar ao seu lado bastaria. Ah! Meu Deus era tudo o que eu queria, eu dizia o seu nome não me abandone... jamais’ ”.

Emanuelle Querino

Imbituba, 19 de janeiro de 2008.