A Ceia do Lobo
"Quero te matar!" — era o pensamento que rugia em minha cabeça naquele instante, após 23 chamadas não atendidas em uma única tarde. Como aquela mulher havia me transfigurado! Eu, pacífico, lunático até, tornara-me uma besta em fúria, respirando ódio.
Não me julguem, leitores. Trago em mim a mesma culpa dos que sucumbem ao impulso mais obscuro. A devoção que ela me oferecia sem freio algum fez de mim algoz e senhor absoluto de sua existência.
Nunca fora assim. Tive sempre um temperamento sereno. Minha paciência colheu frutos doces, como os que aguardam a volta do Messias. Por submissão de alma ou por timidez, sempre tratei as mulheres com gentileza — mesmo quando o desejo gritava o contrário. Mas com ela, algo se rompeu.
Seu nome me repugna agora: Mielly. Nome de coisa pegajosa, nome de isca. Não era prostituta. Era só frágil. Extremamente frágil. Quando a conheci, comprava um livro sobre David Lynch. Atendi-a sem reparar muito. Na segunda visita, ela olhou-me nos olhos — e algo se acendeu.
À meia-noite, meu celular tocou.
— Oi... você não me conhece, mas te achei bonito — disse uma voz desconhecida.
— Quem é?
— A moça da livraria... consegui seu número pelo cadastro.
— Pois diga...
— Tomei coragem. Queria sair com você.
Aceitei.
Notem: ela é quem veio atrás de mim. A fera estava contida — e ela foi quem abriu a jaula.
Fomos ao cinema. Depois, sexo. Não foi memorável. Ela era contida demais, carinhosa demais. Se é para abrir as pernas na primeira noite, que seja com fúria, pensei. Mas não. Ela se comportava como uma cadelinha órfã. E havia algo no seu rosto que me incomodava — uma gengiva longa, dentes curtos, um som estranho ao beijar.
Pela manhã, ligou. Não atendi. Ligou outra, e outra vez. Na décima quinta chamada, atendi.
— Que porra você quer? Uma trepada só e já se acha no direito de me infernizar?
Do outro lado, a voz trêmula:
— Desculpa... eu só queria dizer que comprei “O Iluminado” pra você, achei que fosse gostar...
Arrependido, suavizei:
— Olha... tudo bem. Mas pega leve, tá? Quando eu quiser, te procuro.
E assim foi. Algumas semanas sem mensagens. Sem encheção. Sem melodrama. Esqueci que ela existia. A fera, novamente trancada. O lobo, calmo, uivando ao longe.
Até que um dia, chegou a mensagem:
"Por que penso tanto em você? Sinto vontade de te ver, saber de você... queria me doar por inteiro. Sou sua. Te quero. Bjos."
Naquele instante, algo despertou. Não era mais eu. Era o lobo. O predador. O dono da caça. Peguei o telefone e liguei.
— Mielly... que bom ouvir sua voz.
Ela, eufórica:
— Quero te ver o quanto antes!
Não lembro quanto tempo depois nos encontramos. Só sei que tive tempo para planejar. Eu era o Deus dela. Tinha o poder de vida e morte. E isso me dava prazer.
Fomos à serra. Árvores, vento, silêncio. Transamos no carro, no mato, onde quer que fosse. Enrabei-a como se fosse a última vez. Ela gemia, tremia, dizia entre beijos:
— Sou sua. Minha alma é sua. És meu dono...
Eu a massageava com dedos firmes. Encaixei as mãos em seu pescoço e pressionei. Ela se contorcia, mas não resistia. Entregava-se. Aceitava. Era minha oferenda. Meu sacrifício. Meus dedos eram orações, e ela, a hóstia.
Ajoelhei-me diante de meu ódio e ejaculei — pleno, sagrado, absoluto.
Hoje, visito livrarias em silêncio. Passo os dedos pelas lombadas dos livros como quem acaricia peles antigas. Leio contracapas, fujo do mundo. Meu lobo uiva, solitário, numa estepe gelada onde homens não pisam — e tampouco, atendentes.