O ANO DA REDENÇÃO

O Ano da Redenção

Cardoso I

No primeiro dia de janeiro, aos pés de uma figueira antiga, Santiago enterrou um caderno de capa preta. A caligrafia trêmula das páginas contava trinta e sete anos de mágoas, erros e silêncios. Era sua própria biografia, escrita entre fracassos e palavras não ditas, com a tinta amarga do arrependimento.

A vila onde vivia, chamada Esperança do Norte, era feita de telhados de barro e promessas esquecidas. Todos o conheciam como “o homem que não sorri”. Não por maldade, mas porque desaprendera. Diziam que perdera a mulher num verão quente e o filho num inverno mais frio que o coração dos homens. Desde então, seu olhar era como o de um cachorro velho que já não espera carinho.

Mas naquele janeiro, algo mudou. Talvez fosse o caderno enterrado, talvez o cheiro da chuva que lavava as pedras da praça ou o menino que passou correndo com um papagaio nas mãos e gritou: “Feliz ano novo, senhor!”

Santiago não respondeu. Mas naquela noite, pela primeira vez em anos, acendeu a luz da varanda.

Ao longo dos meses, começou a sair. Primeiro à mercearia, depois ao mercado. Plantou flores no quintal. Passou a visitar o túmulo da esposa sem carregar culpa. A cada gesto pequeno, sentia o peso diminuir. Era como se, pouco a pouco, a terra absorvesse a dor daquele caderno enterrado.

Em julho, começou a escrever cartas. Não sabia para quem, mas escrevia. Palavras bonitas, de quem aprendeu que o perdão começa quando deixamos de esperar que ele venha do outro. Guardava as cartas em uma caixa azul, como se preparasse um legado.

Em setembro, apareceu na quermesse da vila. Dançou uma música com Dona Margarida, que era viúva como ele, e quando tropeçou no próprio pé, riu. Riu como quem quebra um feitiço antigo.

Em dezembro, plantou uma nova figueira, ao lado da antiga. E ali, sob o mesmo solo onde enterrara o passado, ele sussurrou: “Este foi o ano da minha redenção.”

Não pediu desculpas ao mundo. Mas se reconciliou com a vida. E para um homem como Santiago, isso já era milagre suficiente.

Ivonoel cardoso
Enviado por Ivonoel cardoso em 23/05/2025
Código do texto: T8339857
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