Carne de Porco
Ela fumava enquanto observava pela janela de seu apartamento o farfalhar das árvores lá embaixo. Não seria uma má ideia pular dali de cima – vide a quantidade de fatos terríveis que esteve a enfrentar até aquele momento. Pensava em como se colocaria de volta à rotina laboral, em como faria para pagar suas contas e retomar hábitos, tais como ler e assistir a peças de teatro.
No som, tocava um jazz bem antigo, à Fred Astaire e Ginger Rogers. A sensação de nostalgia lhe pesava, pois os domingos para si lhe eram bastante desagradáveis. Terminado o cigarro, lançou a ponta em direção à rua e voltou para dentro. O apartamento estava uma bagunça. Não tivera ânimo em quase um mês para arrumá-lo.
Sentou-se ao sofá e tomou um livro de Balzac que estava sobre a mesa de centro. Acendeu outro cigarro enquanto encontrava a página em que parara. Recordava-se que Raphäel havia sido invitado a uma festa logo após ter feito um pedido à pele de onagro. Quando finalmente empolgou-se à leitura, recebeu uma mensagem em seu telefone. Franziu o cenho ao ver de quem era. Havia um mês que Alberto não lhe dava sinais de vida. O que queria consigo?
TE ESPERO PARA JANTAR ÀS DEZENOVE HORAS.
Estranhou a mensagem, pois Alberto não bem respeitava a sintaxe tampouco a letra r ao final dos verbos infinitivos quando escrevia. Só não pôde perceber o emprego correto do acento grave sobre a letra a.
Ao que foi dar por si, já havia terminado aquele cigarro. Havia corrido pouco menos de dois parágrafos. Estava dúbia, pois Alberto lhe dissera que aquela vez no parque seria a última e que tinha filhos e um casamento de trinta anos para zelar.
Valquíria não entendeu muito bem aquela mensagem. Quando Alberto a chamava em casa, era sinal que Silvia – sua esposa – estava viajando. Fazia-o bastante, pois era CEO de uma empresa de cosméticos que estava expandindo seus atributos a outros estados brasileiros e demais países da América Latina.
O fato de Alberto flertar consigo lhe punha muitas dúvidas, pois ela era uma mera professora universitária cuja crença na dialética hegeliana estava a ponto de ruir. Valquíria encontrava-se muito reflexiva, principalmente depois de reler as obras de Nietzsche e Schopenhauer.
Contudo, um ímpeto de ânimo se lhe acometeu. Ela entrou ao banho a cantarolar um samba de Zé Keti e a fazer seu ritual de arrumação antes do encontro com o amante.
Algumas horas depois, via-se ela prostrada em frente à porta do apartamento de Alberto. Respirou fundo, pois pensava em como iria abraçá-lo, beijá-lo, dizer-lhe quantas saudades sentia depois de mais de um mês sem vê-lo. Querendo ou não, Valquíria tinha certos impulsos românticos à Marguerite Gautier. Amava os franceses – tais como Flaubert, Maupassant e Dumas filho.
Tocou novamente a campainha. Ajeitou a camisa branca que punha e mexeu os cabelos. Os vários fios brancos que compunham sua cabeleira eram pormenorizados vide a beleza encantadora que ela transmitia mesmo a completar quase meio século de vida.
Súbito, a porta se abriu. Em seguida, a consternação. De sobrolhos arqueados e com expressão de surpresa, ela fitava a figura de Silvia.
Também maquiada e altiva, a esposa de Alberto estava ali, ereta, com uma postura quase faraônica, a vislumbrá-la de cima a baixo.
- Você deve ser Valquíria, correto?
Valquíria meneou positivamente a cabeça. Não sabia o que dizer nem se tinha algo a dizer. Nada lhe veio ao juízo naquele momento. Estava em um misto de remorso e medo daquela figura ali parada.
- Eu sou Silvia – disse a outra, muito educada. Tomou-lha as mãos. – Vamos, entre. Fique à vontade.
- E-eu nem sei o que dizer – Valquíria tentou tecer algumas palavras.
- Não precisa dizer nada. Vamos, sente-se. Faça deste lar o teu lar – redarguiu Silva, a apontar-lhe uma poltrona.
Em seguida, trouxe uma garrafa de vinho e duas taças e repousou-os sobre a mesa de centro. Valquíria ainda estava silente. Mil coisas se lhe passavam pela cabeça. A figura misteriosa de Silvia não lhe trazia uma sensação de paz.
- Então quer dizer que é muito amiga de meu marido? – perguntou Silvia, enquanto enchia as duas taças.
- Sim, somos... digo, éramos bastante próximos – disse ela.
- E por que não são mais?
Valquíria percebeu um tom mais irônico na voz de Silvia. Então, fingiu naturalidade:
- Você sabe, não é? Excesso de trabalho. Eu tenho muitas aulas semanais; ele, o escritório.
- Muito me parece interessante que duas pessoas de meia idade se conheçam... na saída do teatro? – perguntou, meio inquisitiva.
- Sim, no teatro.
- Então, reformulando: muito me estranha que duas pessoas que tenham se conhecido no teatro, de meia idade – importante reiterar isso –, tenham mantido contato com tanto ardor nos últimos meses...
- É que você estava em uma viagem a trabalho e ele estava sozinho. Fomos a uma apresentação de uma peça de Shaw e...
- Pigmalião.
- Sim, Pigmalião. E, ao fim, ficamos a discutir sobre a narrativa. Foi um assunto interessante, pois...
Silvia, de repente, bebericou de uma vez e repousou violentamente a taça sobre a mesa de centro. Vislumbrou-a com um olhar de fúria, porém disse melifluamente:
- Você fuma? – a ofertar-lhe uma cartela de cigarros.
Valquíria fitou a cartela e, então, olhou nos olhos de Silvia. Hesitante, pegou um assim mesmo.
- E Alberto? – encorajou-se a perguntar Valquíria.
- O que tem?
- Não está em casa?
- Saiu há pouco. Não vai demorar para aparecer.
De repente, ouviu-se um chiado oriundo da cozinha. Silvia levantou-se às pressas e, acompanhada dela, sob um enorme temor, estava Valquíria.
- Esqueci a água do chá no forno – disse Silvia, a girar o botão do fogão. – É para depois do nosso jantar.
- E o que teremos para jantar?
- Carne de porco – comentou Silvia. – Aliás, você pode me ajudar com os pratos nesse ínterim que Alberto não chega?
Valquíria relaxou um pouco. Começou a arrumar a mesa. Conhecia bem a casa de Silvia, mas para disfarçar, perguntava-lhe de vez em quando onde estava tal talher, tal xícara, tal prato.
Com a mesa posta, as duas se entreolhavam distantes uma da outra. Fazia-se um silêncio dúbio de ambas as partes.
- Antes de jantarmos, já que meu estimado marido não está presente no momento, proponho-nos uma oração. O que acha?
Valquíria arqueou um sobrolho. Não se fiava muito a crenças. Porém, assentiu.
Silvia fez orações em voz alta, a recitar o Padre Nosso e a Ave Maria. Por fim, seguida de Valquíria, fez o sinal da cruz.
- Boa janta – exclamou a anfitriã.
Enquanto comiam, se esbaldavam no vinho, na salada e na carne de porco. Silvia reiterava a cada instante que Valquíria trazia um predicado novo à comida:
- Foi feito com muito esmero!
Chegaram até a esquecer a ausência de Alberto ali. Por fim, Silvia inquiriu a convidada sobre a qualidade de sua refeição.
- Uma maravilha! Perfeição! Nem a mais alta gastronomia de Paris ou Roma decifraria os ingredientes aqui contigo.
Súbito, Silvia – a parecer voltar do torpor da embriaguez – encarou profundamente Valquíria.
- Os ingredientes? – redarguiu ela, com uma voz sombria, quase rouca.
- Sim, o que usou? – perguntou Valquíria, curiosa e inocentemente.
Silvia arqueou levemente o lábio antes de sorrir.
- Restos de um marido adúltero – exclamou.
Horrorizada, Valquíria olhou para os pedaços de carne que ainda restavam em seu prato. Uma sensação de nojo e horror fê-la vomitar sobre a mesa. Silvia, sardônica, ria teatralmente ao fundo, com um cigarro aceso em riste. Valquíria passara tanto mal que nem a vira acender.
- A melhor parte está por vir, querida – disse Silvia, que havia puxado uma Máuser de debaixo da mesa, a apontar-lhe o revólver. – Acompanhe-me!
Ela levantou-se decidida. Nauseabunda, Valquíria viu-se a andar forçadamente pelo corredor escuro que levava aos dormitórios do apartamento.
Pararam diante de uma porta. Silvia colocou-lhe o revólver sobre a cabeça e deu-lhe o comando:
- Abra a porta... devagar!
Valquíria obedeceu. Entrou no quarto que por várias vezes lhe servira como efeméride libidinal junto ao marido da outra.
- Acenda a luz – ordenou Silvia.
Ao acender, Valquíria quase desmaiou. O corpo de Alberto repousava sobre a cama, quase sem órgãos, e manchas de sangue cobriam o quarto. Até a lâmpada do abajur transmitia uma luz avermelhada.
Valquíria caiu aos prantos. Não tinha mais o que vomitar. O cheiro pútrido do lugar só lhe causava horror.
- Só mais uma coisa – disse Silvia, que de supetão adentrou o quarto, fuçou uma gaveta de uma cômoda e lançou-lhe um estilete.
- Está vendo isso aí?
Valquíria meneou a cabeça, a chorar copiosamente.
- Quero que arranque o coração de meu marido e o coma cru!
***
Ainda mareada de tanto vinho, Valquíria deixou o apartamento – com o aval de Silvia – com a boca escarlate. Sua roupa estava salpicada de sangue. Não conseguia parar de chorar. Comera um coração humano cru. Não bastavam os demais órgãos que havia comido. Comera um coração cru. Em seu íntimo, sentira certo prazer. Não guardara remorso de Silvia.
A outra, por sua vez, com a vingança consumada, sentou-se confortavelmente à sua poltrona e pensou em como iria limpar o quarto e livrar-se do corpo do marido adúltero.