Capítulo I

           A porta de entrada do bar se abriu violentamente, deixando que uma lufada de ar frio invadisse o salão. Gritos ecoaram por detrás do balcão numa fúria incontrolável.

            — Rápido, fechem essa porta — ordenou o homem calvo, procurando desesperadamente sua pistola.
            A lua desaparecera do céu, encoberta por nuvens carregadas. Gotas imensas batiam no assoalho de madeira, provocando um barulho seco e perturbador.
            Os homens mais velhos, a maioria já passados dos sessenta anos, esbugalharam os olhos impregnados de medo. Eles sabiam o que temiam, afinal para lá de quarenta anos, todas as noites, sentavam-se naqueles bancos de couro desgastados e bebiam em silêncio até que os corpos embriagados não mais se agüentavam de pé. Conheciam as histórias que o pequeno povoado à margem da estrada lutava para esconder. Mas já estavam cansados, seus ossos não eram mais fortes como foram um dia, perderam muito mais do que a força jovial, perderam a dignidade depois de afundarem-se em copos e mais copos de uísque barato e confusões mentais. Havia anos que nada acontecia, que as lendas eram apenas lendas contadas por adolescentes em volta de fogueiras para amedrontar os ainda mais jovens. Mesmo assim lá estavam eles, homens decadentes observando a porta escancarada, completamente imóveis.
            — É só a chuva — bradou o homem baixo, virando o copo de uma só vez.
            Os olhares se encontravam confusos, tentando compreender o que se passava.
            Alguns homens que estavam de passagem não entendiam o que estava acontecendo, não entendiam porque tanto apavoramento entre aqueles senhores que, antes, bebiam mecanicamente como funcionários de uma fábrica que trabalham guiados pela repetição constante de suas ações.
            — Pode não ser — alertou o homem de casaco preto, levantando-se da última mesa. Seus passos decididos o levaram para a entrada. O som dos seus sapatos batendo contra a madeira causava incômodo nos demais, que apenas o fitavam com o canto dos olhos.
            O vento forte balançava seus cabelos compridos, lançando-lhe a água gelada da chuva sobre o rosto. Esforçava-se para fechar a porta. A força contrária o fazia tremer enquanto empurrava as folhas de madeira escura. Era uma verdadeira batalha contra a natureza em fúria. Ninguém o ajudava. Olhavam-no apenas. Torciam para que ele conseguisse selá-los novamente naquela caverna quente e úmida. Sabiam que suas vidas dependeriam da vitória daquela figura alta e sorumbática, mas nada podiam fazer além de observar e rezar por suas vidas, pois era papel dele defendê-los do Mal que os rodeava.
            A porta bateu, fazendo-o arquear-se. Estava cansado.
            — Augus — gritou o calvo, enquanto enchia um copo duplo de uísque sem gelo — tome, este é por conta da casa.
            — Não — respondeu ele, erguendo-se novamente — preciso de minha alma liberta esta noite. E sugiro que todos vocês façam o mesmo ou podem ter os últimos instantes de vida inconscientes. Algo me diz que ele está por aqui, algo me diz que o sangue será jorrado como dizem as histórias da minha infância, como vocês, velhos beberrões, contam quando mal se agüentam de pé.
            Todos se calaram. Ainda com os copos à frente. Encaravam o líquido e pensavam se deviam ou não ingerir o álcool.
            — Isso é besteira — falou o homem barrigudo, sentado ao fim do balcão. — Há quanto tempo ouço essas histórias de vocês, seus loucos? Desde que vim morar aqui, e isso faz mais de 10 anos. Escuto a mesma ladainha sem sentido e até hoje nunca vi nada. Ouviram isso? Nada aconteceu além de uma chuva forte, um vento frio e cachorros uivando. Vocês todos são loucos em acreditar que um demônio virá para matá-los. Há tanta gente mais importante do que um monte de bêbados isolados do mundo para um demônio e ele virá logo aqui? Tenha dó! Vocês são todos uns lunáticos medrosos. Parece que nunca ouviram histórias infantis ou assistiram a um filme de terror.
            — Não fale sobre o que desconhece, Cláudio — censurou o calvo.
            — Provarei para vocês o quanto estão enganados. Aposto cem pratas que fico uma hora lá fora sem que nada me aconteça. E por mais cinqüenta, ainda entro na mata e saio da trilha.
            Eles se entreolharam.
            — Então, quem topa?
            Não houve resposta.
            — Ninguém? — Insistiu, pondo-se de pé. — Vocês todos são uns idiotas, isso sim. Um bando de bebês chorões. Cuidado com o bicho-papão — disse rindo com deboche, enquanto virava de uma só vez seu copo de cerveja.
            — Eu pago.
            Cláudio levou um susto ao ouvir a voz seca atrás de si.
            Virou-se com rapidez. Finalmente alguém aceitara o seu desafio. Iria provar de uma vez por todas de que todo aquele medo não passava de uma simples bobagem. As histórias deviam ter começado por causa de um lobo que matou alguns homens há muito tempo. E a mente ignorante dos homens do interior criara aquelas fantasias de monstro diabólico rondando a vila. Ele já estava farto. Não agüentava mais ouvir entre sussurros que o próprio diabo visitava aquela região afastada do mundo todos os meses para puni-los de um mal que ninguém ousava dizer. Ele não. Não acreditava em nada daquilo. No início, quando veio com a mulher morar na vila depois de se aposentar, achava engraçadas as histórias que aquele povo contava. Já vira de tudo na vida, já enfrentara várias vezes o perigo, quando carregava o distintivo na carteira e a arma no coldre nos bons tempos em que era policial. Certa vez ganhara uma medalha por bravura, quando matou um lunático que havia seqüestrado uma família inteira. Chegara a ser notícia no jornal, sentia-se como um herói, portanto não seria uma estúpida crendice que o deixaria amedrontado num balcão de bar. Era corajoso o suficiente para sair no temporal e provar que eles eram tolos por acreditar em demônios ou o que quer que fosse.
            — Ponha o dinheiro sobre o balcão — ordenou rindo.
            O desafiador olhou em seus olhos. Puxou do bolso quatro notas de cinqüenta e pousou-as sobre a madeira arranhada do balcão.
            — Eu dobro a aposta.
            Ótimo, pensou Cláudio, colocando as mãos sobre o dinheiro. Nunca foi tão fácil ganhar um trocado.
            Antes que pudesse guardar as notas, levou um violento tapa nas costas da mão.
            — Largue isso!
            — Mas o combinado era...
            — Você só terá o dinheiro quando voltar, isto é, se você voltar.
            Cláudio riu com o canto dos lábios, mostrando os dentes amarelos, satisfeito por alguém ter aceitado seu desafio. É claro que eu voltarei, seu estúpido; disse em sua mente, enquanto ajeitava as calças na cintura.
            — Não vá me roubar, Lúcio — disse para o homem que o desafiara.
            — Não será preciso.
           
            Augus lançou-lhe um olhar reprovativo. Achou melhor impedi-lo de sair do bar, antes que uma desgraça acontecesse, porém desistiu. Não seria babá de um velho incrédulo. Se ele realmente queria sair, pois que saísse, afinal todos os moradores da vila sabiam do perigo que existia naquelas noites frias de inverno. Já estava cansado de brigar em vão contra os idiotas que não ouviam seus conselhos. Se Cláudio queria ir, que fosse. Seria até bom que tomasse um susto ao ver a demônio espreitá-lo, pois somente assim acreditaria nas forças ocultas que dominavam aquele povoado. Seu testemunho apavorado certamente o ajudaria a manter seguros da besta os descrentes. Desde que sobrevivesse para contar a história.
             Apesar de não impedi-lo, Augus caminhou até o balcão sem olhar para os lados. Seus olhos penetrantes apontavam para Lúcio como se quisesse perfurá-lo com sua ira.
            A porta se escancarou novamente e o ar gelado invadiu o recinto, fazendo respingar a água da chuva no piso de madeira envelhecida. O som do vento era uma sinfonia macabra preenchendo o lugar de medo.
            — Você acabou de condenar um homem à morte — disse, pousando a mão esquerda nos ombros de Lúcio. — Espero que se arrependa disso.
            Lúcio estremeceu ao sentir as mãos frias de Augus sobre seu casaco. Era impossível acreditar que mesmo com a grande espessura do couro que lhe cobria a pele pudesse sentir a temperatura daquela figura sombria e enigmática. Tinha medo dele como a maioria das pessoas da vila. Jamais o provocaria, pois sabia que Augus era um homem vingativo. Tentou se explicar.
            — Eu só dei a ele o que pediu — disse com a voz entrecortada pelo medo.
            — Você sabe o que acontecerá com ele lá fora — disse, olhando-o nos olhos. — Não devia ter feito isso.
            — E por que você não o impediu de ir? — indagou o homem calvo.
            — Porque não posso agir contra a vontade das pessoas, Hermam. Minha missão não é essa. Sou um caçador apenas. Eu os aconselho, mas não posso mandar em suas vidas. Espero que alguém dê a notícia para a esposa dele.
            — Do que vocês estão falando afinal? — Interrompeu um homem que estava sentado próximo a eles. — Estou curioso.
            — E quem é você? — Perguntou Augus, de costas para ele, sem olhar para trás.
            — Eu me chamo Rafael Melo, ao seu dispor.
            — Este é um assunto que não lhe interessa senhor Melo. Apenas beba e espere amanhecer para ir embora daqui.
            — Por que eu esperaria amanhecer? Não posso ir agora, se eu quiser?
            — Você pode ir na hora que quiser, mas a tempestade o mataria em poucos minutos — respondeu Augus, indiferente. — Dê-lhe um quarto, Isidoro. É por minha conta.
            — Tudo bem — assentiu Isidoro, balançando a cabeça, contrariado. Sabia que aquilo não acabaria bem. Não era a primeira vez que um forasteiro passava a noite ali, e não seria a última, mas em todas as vezes que vinham a sua pensão nas noites sombrias, passava dois ou três dias esfregando as manchas de sangue do chão e das paredes antes que o cheiro da morte impregnasse o quarto.
            Não queria ter que fazer a limpeza pela manhã.
            — Posso pagar uma bebida para você. Desculpe-me, mas ainda não sei seu nome.
            — Eles me chamam de Augus.
            — Augus? É um nome latino?
            Augus abaixou a cabeça. Estava irritado com aquele homem tentando puxar conversa. Não gostava de estranhos, principalmente daqueles que o incomodavam com perguntas demais. Não era dado a conversas. Gostava do silêncio. Falava apenas o necessário. Nada que o desviasse de seu foco de atenção.
            — Sim, é um nome latino — respondeu de lado.
            — Então, Augus,  posso pagar uma bebida?
            — Não — respondeu imediatamente. — E acho melhor o senhor também parar de beber por hoje — aconselhou-o sem mudar o tom de voz.
            — Eu sou acostumado a beber — disse sorrindo, enquanto sentava-se ao lado de Augus, sem pedir licença. — é preciso muito mais do que uns copos deste uísque ruim para me derrubar — falou olhando para Isidoro, zombando da qualidade de suas garrafas.
 
            Lúcio caminhou até as janelas da frente e olhou para fora procurando por Cláudio na escuridão. Não via nada além da chuva forte batendo contra a janela. Estava arrependido por tê-lo feito sair. Sabia que o mandara diretamente para a morte, por isso suava como se estivesse numa praia tropical num dia quente de verão. Não podia desfazer a besteira que fez, agora só lhe restava rezar para que a morte de Cláudio fosse rápida e sem dor.
            Quando fizera a aposta com o policial aposentado não pensou que realmente a besta estivesse pelos arredores do bar, mas a certeza na voz de Augus fizera-lhe perceber que estava enganado. Se algo acontecesse, e aconteceria em breve, com Cláudio, como diria à viúva que ele era o culpado por ela ter que enterrar o que sobrou do marido, depois de uma aposta estúpida como a que fizeram? Augus deveria fazer valer sua fama. Deveria sair atrás do velho e salvar sua vida, mas ao contrário disso, estava lá sentado no lugar antes usado por ele, olhando fixamente para a televisão desligada como se assistisse ao que acontecia em um lugar próximo dali, o lugar em que Cláudio morreria.
            Haveria de conviver com o remorso, não detinha poder sobre o tempo. Percebera tarde demais que ao erro que cometera não tinha volta, não podia mudar o que fez, movido pelo impulso de provar a verdade a qualquer custo aos que não acreditavam naquela criatura infernal que levara seu irmão para as profundezas apocalípticas das trevas há vinte anos. O demônio existia, nunca duvidara disso, e sabia que já deveria estar à espreita da nova vítima. Era isso o que fazia seu pensamento corroer-lhe as entranhas. Se também duvidasse da existência de tal criatura, podia inocentar-se da culpa, mas não havia dúvidas nele, somente a certeza de que Cláudio em breve morreria. Não de frio, mas destroçado por uma fúria incompreensível.
As lembranças do dia em que sua sorte topou com a besta se formavam nítidas na mente de Lúcio. Exatos vinte anos que saíra para caçar com Júlio, seu irmão inseparável, na noite mais terrível de sua vida. Embora fosse aconselhado por Augus, que em nada mudara desde aquele dia, para que deixasse a noite morrer para saírem, não quis ouvir o que lhe dizia aquele forasteiro arrogante, batendo no peito sua valentia e expondo a quem quisesse ver a aparência incólume de sua espingarda de caça, rumaram para o momento em que a sorte lhes abandonou, assim com os deuses todos.
A tempestade era tão forte quanto a que os prendia naquele bar imundo. O vento zunia em seu ouvido como abelhas enfurecidas. Irritou-se com o irmão, por ele insistir em voltar, obedecendo a um homem que nunca os dirigira a palavra desde que, sem indicar de onde viera, simplesmente apareceu na rua principal da vila. A figura sorumbática de Augus os intimidava. Ele era tão medonho que nem mesmo crianças ficavam na rua quando ouviam o barulho seco de suas botas em contato com o chão. Os adultos se incomodavam com sua presença enigmática na vila. Uns pensaram que seria um bandido procurando refúgio, outros não se apressavam em dizer que era o diabo encarnado naquele corpo alto. Seu casaco preto metia medo em qualquer homem por mais forte que fosse. Algo ruim dominava Augus, certamente vinha do seu olhar inexpressivo e melancólico, sem nenhum brilho, como se estivesse morto.
Quando ele e o irmão preparavam-se para entrar na floresta, Augus surgiu de lugar nenhum, dizendo-lhes com a voz grave:
— Não conseguirão nada nesta caçada. Voltem para suas casas.
Lúcio e Júlio se entreolharam.
— E quem é você — perguntou Júlio, engatilhando sua arma e apontando-a para o desconhecido, como se estivesse testando a mira, mas sabia que era uma forma de amedrontá-lo.
— Não aponte essa arma para mim, rapaz — respondeu sem demonstrar nenhum tipo de emoção. — Você pode se machucar.
— Quem é você, senhor — Perguntou novamente, tremendo um pouco a mira — para me dizer o que devo ou não fazer? Saia da frente agora!
Lúcio assistia ao irmão enfrentar o estranho sem dizer uma palavra. Queria sacar também a sua arma de caça e apontar para o alvo de Júlio, mas estava imóvel. Uma força além do seu conhecimento petrificava seus músculos, impedindo-o de mover-se. Não compreendia o que se passava consigo, apenas sentia seu sangue gelar nas veias. Não podia continuar parado daquela forma. Sabia que o temperamento autoritário de Júlio os colocaria em uma situação difícil. Perdera a conta das vezes que voltara para casa com o olho roxo por se meter em brigas arranjadas pelo irmão. Mais dos que ninguém sabia que se o estranho não saísse da frente deles, Júlio o enfrentaria. E o oponente tinha uma constituição física magra, parecia ser mais fraco do que qualquer um deles, isso já bastava para que Júlio quisesse sobrepujá-lo. Tinha pena do estranho, pois sabia que seu irmão o machucaria somente com as mãos, não seria preciso continuar ameaçando-o com a espingarda.
Mas Lúcio não conseguia se mover.
— Há uma fera terrível solta nesta região, senhores — disse Augus —  e ela é extremamente perigosa.
— Já sabemos disso.
            — Então voltem para suas casas — ordenou, caminhando friamente na direção dos dois irmãos, sem se importar com o cano frio apontado para o seu peito.
            — Pela última vez, quem é você, rapaz?
            Num piscar de olhos, Augus retirou de seu longo casaco de couro preto duas pistolas prateadas e as apontou para a cabeça dos irmãos e bradou:
            — Largue a arma, senhor.
            Lúcio estava perplexo. Mesmo olhando fixamente para o estranho, não conseguira ver de onde ele sacara aquelas pistolas de brilho intenso. Pareciam ter surgido como mágica nas mãos daquela figura. Temeu que o irmão insistisse em brigar com aquele homem.
            — E se eu não abaixar — rebateu Júlio, agora tremendo muito mais do que antes.
            — Serei obrigado a matá-lo.
            Os olhos de Júlio quase saltaram para fora das órbitas. Ninguém jamais ousara falar com ele daquela foram. Por bem menos, já partira para a briga, mas com o estranho, sentia-se atordoado, temeroso como uma criança solitária num quarto escuro. Não entendia como podia estar tão apavorado diante de um homem nitidamente mais fraco do que ele. Era só apertar o gatilho e toda empáfia do seu algoz desapareceria. Mas estranhamente não consegui apertar o gatilho, não porque o mecanismo estava emperrado, mas porque seus dedos estavam.
            Augus passou por Júlio como se ele fosse um ser invisível, uma criatura insignificante que se mata com os pés. O som de suas botas no chão de cascalho ecoava em seus ouvidos como um som infernal, deixando-os em pânico. Mas não conseguiam se mover, estavam paralisados como estátuas.
            Parou cinco centímetros de frente para Lúcio. Inclinou-se ainda mais em sua direção como se lhe fosse roubar um beijo. O hálito amargo não tinha calor, era frio como uma lufada de ar ártico. Quando seus olhos encararam os de Lúcio, pode perceber o desconforto que causava, mas estava acostumado a ver as pessoas temerem seu olhar baço.
            — Volte para casa e tranque as portas — disse para Lúcio. — Salve sua vida.
            Antes que o respondesse, continuou caminhando pela rua vazia, deixando-os atordoados. O vento balançava seus cabelos castanhos na altura do ombro e fazia seu casaco se abrir como asas de um anjo negro.
Desapareceu de suas vistas antes que pudessem lhe perguntar novamente quem era.
           
            Seus olhos percorriam a escuridão à procura do velho policial aposentado. Forçava os ouvidos temendo escutar qualquer som fora do normal. Mas somente o barulho da chuva estalando nas folhas mortas e o vento arqueando as árvores eram ouvidos. Fazia cinco minutos que Cláudio saíra do bar, faltava ainda muito tempo para que regressasse à precária segurança daquelas paredes úmidas. Não devia tê-lo desafiado; pensava arrependido; não devia tê-lo mandado para a morte, assim como deixou que o irmão fosse. Cometera duas vezes o mesmo erro. Quando fosse cobrado por seus pecados, sabia que a sua vez seria a mais dolorosa.
            Seus pensamentos o levaram novamente para a noite em que vira Augus pela primeira vez. Depois de vê-lo desaparecer como um fantasma, urinou nas próprias calças. Envergonhado, correu em disparada para casa, deixando Júlio sozinho para a caçada. O irmão tentou questioná-lo, mas em vão conseguiu fazê-lo sair do quarto. Lúcio, como uma criança com medo do assustador monstro do armário, cobria a cabeça com o cobertor, como se somente isso pudesse protegê-lo de qualquer mal que lhe atormentasse. Foi a última vez que ouviu a voz de Júlio, pois ele nunca mais voltou da caça em que não foi o caçador.
            Na manhã seguinte, encontraram Júlio entre as árvores da floresta. Seu aspecto era o pior possível. Grandes cortes em seu tronco laceraram sua carne, fazendo saltar seus órgãos para fora do corpo. Membros mutilados, olhos esbugalhados como se tivesse deparado com um demônio cruel e impiedoso. Era difícil olhar para o que sobrou daquele homem forte e destemido. A simples presença próxima do cadáver ensacado causava repulsa, num misto de nervosismo e angústia. A barbaridade do crime chocou a todos no vilarejo. Não o se sabia o que ou quem causara a morte de Júlio, mas uma coisa nisso era certa, fosse o que fosse, não era humano. Cogitaram que, pela brutalidade dos ferimentos, seria um urso o culpado, mas nunca registraram um ataque de urso naquela região. Um lobo talvez fosse o responsável, mas nunca se viu um lobo causar tanto estrago em um corpo. Formou-se um conselho para tratar das investigações a fim de descobrirem quem teria feito ato tão bárbaro e brutal como o que havia acontecido na noite anterior, enquanto a tempestade tingia o céu de um negro sombrio.
            Hipóteses surgiam. Possibilidades e variantes eram discutidas com fervor. Pessoas alvoroçadas gritavam suas conclusões fundadas no que ouviram daqueles que encontraram o corpo destroçado. Até que entrou na sala em que o conselho se reunia o velho Jonas, arrastando suas pernas com dificuldade.
            — Estamos perdidos — declarou Jonas, num tom resignado. — Ele voltou para nos assombrar.
            Rogério Damasso levantou-se da cadeira em que estava sentado ouvindo tudo pacientemente. Lançou os olhos frios sobre o velho, a fim de fazê-lo se calar. Mas não teve sucesso. Jonas não se intimidou.
            — Estamos perdidos — declarou. — Preparem seus caixões.
            — Cale a boca, seu velho medroso.
            — Medroso! Eu não sou medroso, meu rapaz — respondeu com raiva. —           Sei bem o que estou falando. Ele, o monstro, está de volta. Eu posso senti-lo por perto. Minhas pernas doem muito mais do que o normal quando o sinto. E agora elas estão doendo como nunca. Parece até que estão novamente sendo dilaceradas por aqueles dentes infernais como aconteceu há exatamente vinte anos. Ele está de volta, eu sei que é ele.
            — Nós já cansamos de suas histórias, Jonas. Ninguém mais acredita nos seus delírios de monstros e demônios que aparecem de vinte em vinte anos para derramar o sangue de inocentes. Cresça, velho, porque o tempo de crendices acabou — Rogério disse, virando-se para os demais, buscando encontrar o apoio que precisava. — Temos que caçar esse animal — bradou, insuflando o peito. — Não podemos deixar que um animal como esse ponha em risco nossa pequena comunidade. Façamos um grupo com os melhores atiradores e matamos esse bicho, seja lá qual for, antes de anoitecer.
            — Vão todos morrer — respondeu Jonas, levando as mãos à cabeça. — Não façam isso.
            As pessoas se entreolhavam. A maioria temia pelas histórias antigas, mas Rogério dizia tão convicto da vitória que os convencia da vitória certa. Estava convicto de que um grupo feito com os melhores caçadores da vila poderia facilmente dar conta da fera que dilacerara Júlio como se fosse feito de papel.
            — Iremos eu — bateu forte no peito — Adolfo, João, Flávio, Herman e quem mais tiver coragem de ir.
            Ao ouvirem as palavras de Rogério, os mais novos do grupo exaltado começaram a se levantar e, um a um, ofereciam-se para participar da caçada. Estavam fartos de ouvir as mesmas histórias contadas de seus avós para seus pais. O tempo de credulidade em mitos já passara. Provariam de uma vez por todas que lhes contavam sobre as mortes brutais ocorridas nos arredores da vila apenas para assustarem as crianças. Aquilo já fora longe demais. Eles ajudariam a pôr fim naquela ladainha sem fim.
            — Votaremos então — gritou Jonas, temendo perder a batalha verbal.
            — Isso é desnecessário, Jonas, mas se você tanto quer ver o quanto está errado em temer por algo que não existe, o problema é seu. Você é um homem louco.
            — Eu sei o que eu digo.
            — Levante a mão quem achar que devemos ficar aqui, enquanto um animal estúpido mata nossa gente — ordenou Rogério, que agora controlava as pessoas reunidas no conselho.
            Jonas observava atordoado apenas Lemos e Walter, os homens da mesma idade dele, levantarem as mãos com receio. A derrota era clara. Todos perderam a cabeça ali. Sabia que por meio do voto aberto as decisões eram imutáveis. Dos quinze homens ali reunidos, apenas três iam contra a proposta de Rogério. Muito sangue será derramado, pensou Jonas, enquanto buscava mais um argumento para sustentar sua opinião. Mas nada do que dissesse poderia mudar a idéia fixa daquele grupo que defendia os interesses da vila. Tudo estava perdido.
            — Partiremos agora mesmo — decretou João. — Peguem suas melhores armas, porque a caçada vai começar.
            Jonas num ato impensado se pôs de frente aos exaltados caçadores, abrindo os braços como o Cristo na cruz. Acreditava que suas rugas impunham respeito, que sua coluna arquejada comoveria os mais jovens, mas todos o olhavam com desdém. Sua figura envelhecida como um carvalho outonal não os amedrontava, pelo contrário, provava apenas que o tempo transformava a coragem em covardia. Ele nada poderia fazer além de tentar deter a fúria mordaz do povo. Com o olhar coberto de lágrimas, convidava os dois companheiros contrários a decisão do grupo a manifestarem-se, mas não obteve sucesso. Num esbarrão de Rogério, seu corpo fragilizado foi lançado para trás. Perdeu o equilíbrio, caindo no chão.
            — Seus idiotas — bradou — não percebem que estão indo em direção ao inferno? Vocês precisam me ouvir! Ele não terá pena de ninguém.
            — Cale a boca, velho medroso — gritou Lourenço Esteves, um simples dono de padaria, que empunhando a espingarda, sentia-se um soldado sanguinário. — Hoje é o dia em que as lendas se tornarão apenas mais um mito sem sentido. Vamos provar que essas estúpidas histórias não passam de um delírio coletivo criado por dementes da sua geração.
            — Dementes? — questionou-o. — Saiba, seu infeliz, que muitos da minha geração fizeram a mesma tolice que vocês vão fazer agora. E como podem ver, eles não estão mais aqui para testemunhar o que aconteceu na minha distante juventude.
            — Se isso é verdade, Jonas, por que só você sobreviveu ao massacre do inferno? — perguntou Lourenço em meio a gargalhadas zombeteiras.
            — Eu só não morri também, porque fui salvo pelo anjo negro.
            — Você não se cansa dessa maluquice — lamentou Rogério, parado de costas para a saída da assembléia. — Eu não agüento mais a mesma ladainha. Ponha na sua cabeça, de uma vez por todas, que isso não passa de um delírio de vocês, que tomados pelo medo e de crendices sem nenhum fundamento, criaram esse monstro diabólico e um caçador de bestas com asas negras — impacientou-se. — Sinto muito, Jonas, mas essa história louca tem que parar agora.
            — Eu o vi — gritou asperamente.
            — Você foi atacado por um lobo, velho. E se esse homem realmente existiu, não deve passar de um caçador viajante que topou em seu caminho.
            — Não tenho tanta certeza — suspirou, sorrindo maquiavelicamente.
           
            O vento entrava na sala onde estavam reunidos os homens mais influentes da vila, passando como um fantasma nervoso, pela porta de madeira aberta. A lufada de ar trazia a chuva para dentro como se a tempestade caísse sem impedimentos no chão encerado. Fazia tempo que não se via por aquelas terras uma chuva tão forte. Parecia que os céus anunciavam uma terrível desgraça próxima. Jonas sabia disso como ninguém, afinal ele fora o único sobrevivente do sangrento encontro com a criatura mais temida de seus piores pesadelos. E do encontro guardara marcas eternas não só nos músculos da coxa partidos como um pedaço simples de carne, as piores marcas, as cicatrizes mais profundas estavam em suas lembranças, no horror que sentiu diante de seus olhos numa noite como aquela, na noite em que teve a vida salva pelo estranho que se engalfinhara com o diabo numa batalha mortal, dando-lhe tempo para fugir, arrastando-se como um animal ferido no meio da floresta. Podia sentir novamente o gosto da terra enlameada na boca, podia sentir o cheiro das folhas molhadas penetrando em seu nariz, podia sentir novamente a dor que o dilacerara há cerca de vinte anos doer como se o ferimento fosse recente.
            Na verdade, Jonas não olhava para Rogério. Seus olhos iam além do líder do grupo. Fitavam a escuridão, não por medo de um ataque da criatura de seus pesadelos, mas por saber que não estavam mais sozinhos. Podia senti-lo, mesmo que ainda não estivesse de fato ali. Algo em sua cabeça lhe dizia que um outro ser os vigiava. Podia sentir no ar gélido a presença de alguém de fora da comunidade, de fora de sua realidade. O cheiro da morte estava no ar, impregnando-o da mesma forma que sentira quando estava acuado esperando pelo golpe derradeiro do demônio encarnado.
            Rogério se virou para a saída, quando seu corpo chocou-se contra a figura corpulenta e imóvel como uma estátua sob o umbral da porta. O impacto o fez voltar um passo como se batesse contra um muro de pedras secular. Antes que pudesse dizer qualquer impropério, foi surpreendido pela voz seca do vulto a sua frente.
            — Devia ouvi-lo, senhor.
            — Quem é você? — Perguntou, tentando inutilmente apontar a arma na direção do homem escondido sob a escuridão.
            Um raio caiu próximo. O brilho incandescente revelou um rosto inexpressivo, mas de olhar aterrorizante sobre eles.
            — Não importa quem eu sou — ecoou a voz pelo salão como uma pancada brutal desferida com força sobre uma superfície oca — mas a que vim. Eu não sou ninguém.
            Rogério olhava para o estranho com uma mistura de medo e desagrado. Quem aquele homem pensava que era para chegar daquela maneira e dar-lhe uma opinião que não pedira. Ele jamais aceitaria que um forasteiro desse as cartas em sua comunidade. Sua, pois como representante eleito pelos donos das propriedades próximas, julgava-se sobre as leis jurídicas e morais. Fazia mais de dez anos que respondia pelo bem-estar de todos os moradores, dedicara-se a lhes dar segurança e meios de se auto-sustentarem muito mais do que um prefeito, sentia-se, na verdade, o senhor de todas as terras, dono de todos os homens que viviam sob o seu jubilo.
            — Não me interessa o que você veio fazer aqui, forasteiro — respondeu-o, empunhando a espingarda de caça. — Não temos tempo a perder com bobagens. Então é melhor que você volte o seu caminho e desapareça destas terras.
            — E eu irei, senhor — deu um passo a frente, trazendo consigo a chuva forte. As botas de couro enlameadas deixavam marcadas suas pegadas pelo chão, mas ele não se importava com a sujeira, havia algo muito mais grave do que lama para tratar. — Mas só depois do que vim fazer.
            O clique seco do gatilho quebrou o silêncio de Rogério. Apontava sua espingarda para o forasteiro, já não mais querendo intimidá-lo a partir.
            — Abra caminho, rapaz. Não quero aumentar a sujeira que você está fazendo, derramando seu sangue no chão. Saia da frente ou farei um buraco em seu peito.
            Um sorriso se desenhou na face do forasteiro, deixando à mostra seus dentes brancos e perfeitos. Seu olhar não demonstrava medo, receio ou qualquer outro sentimento de covardia. Era o mesmo olhar penetrante e frio que lançara naqueles homens fortemente armados com revólveres e espingardas de caça. Estava completamente impassível diante da ameaça.
            — Não falarei outra vez, rapaz.
            — Senhor, não faça nada que vá se arrepender imediatamente. Meu assunto aqui não é com você.
            — É ele — Jonas gritou para Rogério. — Foi ele quem me salvou do demônio há... há vinte anos. — A surpresa mudou seu rosto. Não era alívio por ter novamente diante de si o seu salvador, era medo. Passados vinte anos depois do encontro que marcara sua vida, o estranho era o mesmo, em nada mudara. Tinha ainda os mesmos traços joviais de um homem de não mais de trinta anos, vestido com a mesma roupa de coro negro sob um sobretudo pesado e gasto pelo tempo. Não mudara em nada, não envelhecera um dia desde que o vira engalfinhar-se com a criatura. Embora não o tivesse fitado por um longo período, percebera que os anos não passaram para aquele homem misterioso que se punha de pé diante deles, sem temer o cano apontado para seu peito, sem temer a morte ou coisa parecida.
            Jonas se encolheu como um feto, mas não sem antes fazer o sinal da cruz por três vezes.
            — Você só pode estar maluco, velho — zombou o líder da comunidade — se realmente fosse este homem, você foi salvo por uma criança.
            — Ele diz a verdade — emendou o estranho. — Não só sobre mim, como também sobre o demônio que circula por estas terras com sede de sangue. Eu vim de longe para matá-lo e desta vez não deixarei que ele me escape como me escapou em nosso último confronto.
            — Se é o seu desejo participar da caçada, forasteiro, pode vir conosco, mas não me responsabilizo pela sua vida.
            — O senhor entendeu errado. Eu vou caçá-lo de qualquer maneira. Não preciso de sua permissão — disse arrogante. — Somente vim até aqui para impedi-los de buscar a morte. Se atravessarem esta porta para enfrentar o demônio, como o chamam, estarão desde já condenados a uma morte cruel como a do amigo de vocês que teimou em não me ouvir.
            — Quem é você? — Rogério perguntou, tremendo as mãos, deixando a arma vacilar no ar como se pesasse mais do que ele poderia suportar.
            — Meu nome é Augus Demetrius Daemon.
 
            Lúcio ainda olhava pela janela, esperando pela volta de Cláudio. Enquanto a escuridão se estendia ao longe, lembrava da última vez que Augus aparecera na vila. Não presenciara sua discussão com os antigos moradores, mas sabia de tudo o que fora falado naqueles poucos minutos antes do massacre. O velho Jonas havia lhe contado tudo, portanto não precisava estar lá para saber que a empáfia de Rogério Damassio levara os homens mais valorosos da vila numa marcha em direção ao inferno. Agora ele próprio sentia-se um Rogério, levando aqueles que acreditavam em suas palavras para as chamas eternas. Se o antigo líder comunitário ignorou os avisos que ele mesmo recebera no dia em que seu irmão mais velho morrera, agora ele também ignorara, mandando o pobre policial para a morte.
            A espera já o fazia perder as esperanças de que Cláudio retornasse ao bar. Tinha vontade de sair para procurá-lo, ou o que sobrou dele, mas o mesmo medo que o trancara no quarto no passado, aprisionava-o dentro do bar. Jamais sairia dali. Não queria morrer ainda, embora soubesse que o demônio um dia iria lhe cobrar a alma. Era inevitável.