Doença e Cura - Capítulo 1 - Parte 2

(continuação de Doença e Cura - Capítulo 1 - Parte 1)

De tanto ser agitada pelos solavancos, a cadeira acabou virando. O homem metamorfoseado caiu junto, batendo no chão e ganindo como um cão. A palha suja veio ter com a sua boca, junto de um punhado de terra e esterco. Raivoso, ele cuspiu a mistura nojenta e gritou outra vez. Voltou a contorcer-se desesperadamente, afrouxando mais as cordas, gemendo devido à dor profunda que sentia no peito... no estômago... A dor do poder da noite. A dor da sede, da esfaima demoníaca.

Quando deu por si, estava livre. Desenlaçou-se das cordas frouxas, atirando-as para longe. Chutou a cadeira contra uma das paredes, fazendo uma de suas pernas de madeira quebrar-se com o impacto, o que jogou pequenas lascas para todos os lados.

O homem metamorfoseado sentiu dores incríveis lacerando sua barriga e seus músculos. Enxergava tudo vermelho, como se visse sangue jorrando pelas paredes... uma cascata de sangue translúcido, formando uma lagoa que cobria o chão inteiro e transbordava, submergindo-o no caos escarlate e intangível. Parecia que a cabeça ia explodir. A dor da fome e da sede e da fúria. Os vermes que não conhecia galgando suas entranhas, arrancando nacos de sua carne centenária. A maldita dor.

Projetou-se como um animal contra a porta dupla de tábuas, que abriu-se estrondosamente, rebentando a fechadura tosca. Saiu cambaleando a passos imprecisos, sem ver onde pisava, apoiando-se com as mãos. Uma ponta aguda penetrou em sua mente, fazendo-o lançar-se ao chão. Apertou com força as mãos contra o crânio, desejando esfacelá-lo de uma vez por todas, esmagando os vermes que caminhavam por ali e reduziam seu cérebro a pó... eliminando a maldita dor.

Tombou de frente, como um executado que cai morto depois de uma saraivada de tiros, empurrando o rosto contra o chão de barro e capim. Sorveu da terra molhada pelo sereno, sentindo ânsias pela garganta inteira. A maldita dor... maldita... maldita maldita maldita!

Levantou-se, gemendo, agonizando. Não ouvia mais nada há tempos, e agora tampouco podia ver. Urrava de dor e fúria. Sentia a cabeça girar... a consciência se perder...

... até que tudo ficou escuro.

O homem abriu os olhos. Piscou-os algumas vezes. Instintivamente levou a mão à testa. Estava em um lugar aberto...

Capim?

... pelo que podia ver. Girou os olhos para os lados, procurando verificar o que havia pelos arredores. Mato baixo, rasteiro, cercando-o. Centenas, milhares de folhas finas e compridas oscilavam acima e em redor de sua cabeça. Flores pequenas misturavam-se às chibatas verdes de capim, apontando para o alto suas pétalas contraídas.

Devia ser alta madrugada. Era muita sorte que a noite ainda não tivesse terminado, julgou o homem caído na relva, usando de seus sentidos refeitos para observar o movimento pelas vizinhanças e determinar o horário com relativa precisão.

Conseguia ver e ouvir os insetos noturnos dardejando em seus vôos rápidos ou desengonçados. Havia muitas moscas.

Uma das moscas aproximou-se para pousar em seu nariz. Curiosa, procurou infiltrar-se logo de uma vez pelo caminho aberto de uma das narinas.

- BRRRRUFFF! - espirrou o homem, erguendo seu tronco da relva molhada. - Saia daí! Porcaria... ahh! - grunhiu ele, espantando a mosca com a mão.

Sacudiu a cabeça, contrariado, abanando os braços e ocasionando uma pequena revoada de insetos. Coçou o nariz com o pulso, esfregando-o furiosamente.

Sapos coaxavam não muito longe.

Não suportava moscas! Não podia sequer vê-las - criaturas repugnantes. E deixavam a franca impressão de preferirem ele ao invés de outras tantas iguarias que existiam aos montes por aí. E nunca surgiam sozinhas, as desgraçadas. Tratavam de trazer toda a família...

Empurrou para trás o cabelo comprido que caía em seu rosto. Sempre trazia um elástico atrelado na manga de sua camisa para poder amarrá-lo ao cabelo, porém desta vez, esquecera-se de faze-lo, devido às circunstâncias talvez.

Pôs-se a recolher as melenas negras, acomodando-as dentro da gola de sua jaqueta de couro preto, que já tinha estado bem mais limpa do que agora, enquanto usava sua visão mais humana e normal para olhar em redor de onde se encontrava. Viu umas árvores altas, do tipo que espalha para os lados as suas copas de folhas minúsculas, dando a impressão de que a imagem que se vê foi distorcida.

Vacas pastavam e algumas dormiam, encolhidas sobre as quatro patas. Uma rês estava caída de modo diferente, não muito longe. Parecia estar morta, o que era confirmado pela revoada de moscas que a assediavam.

O homem ergueu-se do capim orvalhado, continuando a revistar o local em pé. Adiante, além das vacas e bois, das árvores irreais, e da grande cidade cinzenta, cujos arranha-céus pontudos podiam ser vistos de longe... bem adiante, atrás dos morros longínquos que oscilavam no fim do horizonte, lá vinha ele - o sol. Os traços vermelhos, o gradiente escarlate no tom ebâneo celeste era inconfundível. O homem vestido de preto soube de imediato o perigo que corria.

Virou-se para trás, conferindo com calma o restante da paisagem. Sentia leves dores nos ombros, nos braços e na barriga, coisa...

... vermes caminhando pelo seu estômago...

... de pouca importância. Enquanto esfregava as mãos nos músculos dos antebraços diametralmente opostos, com os braços cruzados, verificou que apenas a alguns metros de onde estava havia uma casinha pequena, feita de madeiras e tijolos crus. Aproximou-se.

A porta encontrava-se aberta - uma porta dupla, bastante sua conhecida, cujo ferrolho estava despregado, inutilizado. Era o pequeno estábulo, sem dúvida. O lugar onde permanecera amarrado boa parte da noite - sua visão super poderosa mostrava os pedaços de corda e a cadeira quebrada caída junto à parede, brilhantes, inconfundíveis, comprovando o que havia ocorrido. Já tinha ouvido falar de estábulos feitos de madeira por inteiro, tão pequenos como este. Por que será que tinham feito aquele ali de madeira e tijolos? Seria aquele um outro sinal dos novos tempos?

A porta foi empurrada por um golpe de vento, e os seus gonzos enferrujados rangeram em resposta aos seus devaneios.

Saiu andando pela lateral da diminuta e inovadora manjedoura, onde a luz não poderia atingi-lo. O sol vinha vindo, escaldante, e ele tinha de se apressar. Olhou com tristeza de volta para a porta dupla. Quebrada do jeito como estava, não poderia ser fechada. Não ofereceria segurança alguma. A primeira brisa que soprasse a abriria, expondo todo o interior da construção aos olhares fogosos do astro-rei, e então ele estaria frito. Além disso, havia muitas frestas entre as tábuas da porta, e mesmo entre as que formavam o teto, ele bem podia lembrar. Algumas telhas faltavam, e ele nem queria imaginar os problemas que iria ter caso despertasse ali no decorrer do dia, cercado por fachos faiscantes de luz solar, rodeando-o por todos os lados, prontos para cortá-lo em pedaços como sabres de laser.

Decepcionado, abandonou o pequeno estábulo, acenando negativamente com a cabeça. Não temia o sol, mas a dor...

... vermes dilacerando seu cérebro...

... não, não podia suportar a dor de uma segunda morte.

Viu adiante uma colina que parecia acabar logo ali, mas que na verdade abria-se em uma inclinação brusca, formando uma ladeira. Lá embaixo, a uns cem metros...

Uma casa!

Ele sorriu, aliviado. Uma casa. Uma casa mesmo, de verdade. Proteção de verdade. Quatro ou mais paredes grossas e um teto de concreto à prova de sol! Paredes duras, sólidas. Janelas com tampas, e nada de frestas nas tampas. Nada de fachos penetrando nas frestas. Portas com fechaduras e chaves, muito fáceis de serem abertas, ou trancafiadas. Talvez até uma ou mais fontes daquele líquido vermelho e saboroso ao qual costumava chamar de comida.

Correu pela ladeira, rumando para o pequeno chalé.

Enquanto corria, o vampiro gargalhava ruidosamente. Em seu trajeto, girava o corpo em graciosos movimentos de dança, fazendo gestos obscenos que eram dirigidos para o leste nocivo onde o sol amaldiçoado já devia estar mostrando sua testa fervente, rasgando as montanhas do oriente e os altos prédios de concreto da cidade grande com suas rajadas de lava luminosa e escaldante. Morria de rir, e rolava pelo capim de tanta felicidade.

Alcançou a casa afinal. As janelas estavam pregadas com tábuas velhas. Muitas camadas de tinta descascavam juntas pelas paredes, caracterizando o esmero com que o chalé fora tratado há muitos anos atrás, e o descuido que se podia ver agora, devido ao seu abandono. Trepadeiras cresciam, envolvendo muitas das paredes da velha casa em redes vegetais que muitas vezes alcançavam as orlas do telhado. Em um determinado ponto, a calha de escoamento de água que fora afixada nas extremidades do telhado, feita de zinco e oxidada, havia desabado, distorcida como uma serpente morta pelo chão calçado que dava volta em torno da casa. Arbustos nasciam por entre as pedras do calçamento, enquanto que uma única grade, completamente coberta pela ferrugem, impedia o acesso para um suposto porão escavado nas fundações do casebre.

(continua em Doença e Cura - Capítulo 1 - Parte 3)