A encruzilhada

Anoitecia quando o padre proferiu as últimas palavras e os dois caixões baixaram, ambos, para o fundo das covas que os aguardavam. Ninguém disse às duas irmãs as palavras finais de adeus, uma vez que ninguém tinha ciência de suas mortes... e ninguém se importava. Era triste enterrar duas pessoas assim, numa sepultura sem nome nem lápide, sinalizada apenas por uma estreita cruz naquele cemitério de indigentes do manicômio.

O padre olhou o céu, deu um profundo suspiro e perguntou:

- Alguém gostaria de dizer umas palavras?...

Mas ninguém respondeu. Apenas o coveiro e um curioso observavam o sepultamento. Eles se entreolharam, cada um esperando uma reação do outro, ambos tristes de ver o abandono daqueles cadáveres sem família... talvez, lembrando-se, cada um, da efemeridade de suas próprias existências e calando-se perante o fardo da morte.

Sem haver mais o que fazer, o padre foi-se, deixando apenas o coveiro, a soterrar os esquifes, e o estranho, que permanecia somente por um sentimento estranho de obrigação... de não querer se retirar antes de tudo ter, realmente, terminado, para dar às mortas apenas o breve consolo de sua consternação.

Terminado o serviço, o coveiro cravou a pá na terra e apoiou-se a ela como se fosse uma bengala, soltando um longo suspiro de cansaço e desconforto. Retirou do bolso um lenço vermelho que usou para limpar o suor e permaneceu calado.

O estranho, constrangido pelo silêncio, dirigiu-se ao coveiro:

- É triste, não?

- O que? - perguntou-lhe o coveiro.

- Terminar assim... sem ser ninguém nem nada... ter vivido abandonado e assim morrer, apenas jogado dentro de um buraco, perdendo seu nome e sendo identificado apenas por uma numeração numa cruz de tábua que ninguém lerá... Isso é triste...

O coveiro fez um semblante de profunda meditação:

- Mas nem sempre foi assim, companheiro... Um dia estas duas irmãs foram individuas tão dignas quanto o senhor. Tiveram nome... Maria Luiza e Carmem...

- O senhor as conheceu?

- Bem pouco... muito do que se sabe é lenda; mas elas eram lindas em seu tempo e em sua fortuna... Depois, sobreveio a loucura, e a desgraça se abateu sobre as duas.

Eram duas irmãs que muito se amavam, onde uma estava, a outra seguia. Foram cúmplices nas travessuras de crianças e nas cabulações de aulas... em suma: eram felizes.

Certo dia, Maria Luiza apaixonou-se por um homem mais velho e que rechaçou seus amores de menina. Com o coração partido, Maria Luiza chorava dia e noite a dor de seu amor jogado ao lixo... dizem que, às vezes, pode mesmo surgir um amor verdadeiro, e, talvez, o amor de Maria Luiza fosse esse amor... fato é que, após a rejeição, seu corpo começou a definhar no mesmo ritmo de sua alma despedaçada.

Vendo o sofrimento da irmã e sofrendo junto a sua dor solidária, Carmem, a princípio, tentou dissuadir a irmã desse amor; mas não adiantava, já que Maria Luiza apenas chorava e parecia pior a cada dia. Não vendo alternativa, Carmem procurou o amado da irmã, revelou-lhe o que sucedera e pediu-lhe que reconsiderasse sua decisão. O homem, na frieza de seu semblante, moveu os lábios de pedra apenas para formar o seu sarcástico sorriso. Carmem implorou então, mas o homem foi-se, sem jamais apresentar esboço de um sentimento que se assemelhasse à compaixão.

Maria Luiza piorava, cada dia mais e mais... A irmã trazia-lhe flores com as quais ornava seus cabelos e afagava-lhe a face para reanimá-la; mas olhando nos seus olhos, um dia, percebeu que já não havia vida, nem vontade e que ela desistira de viver.

Apegou-se a todos os deuses. Orou a todos os santos... Tudo em vão: a irmã morria.

Num ato de completo desespero, quando surgiu uma linda manhã, Carmem sentou-se na cama de Maria Luiza:

- Luisinha... - sussurrou.

Ela não respondeu.

- Acho que encontrei uma última forma de você conseguir ter o seu amado... olha...

Maria Luiza moveu muito a custo os olhos quase mortos. Carmem retirou do bolso um pentagrama esculpido em ébano: a marca do diabo.

- Você acha que vale à pena? - perguntou Carmem.

Maria Luiza sentiu suas esperanças arderem novamente e respondeu com um forte olhar de certeza, que a irmã compreendeu.

Ao cair da noite, as duas se esgueiraram pela janela, Carmem sempre amparando a irmã, e se dirigiram a uma encruzilhada deserta.

Foram às escondidas, já que a cidade era preconceituosa e não era de bom tom que duas donzelas andassem sozinhas à noite. Tudo transcorria perfeitamente, Maria Luiza até podia caminhar com mais avidez e sorria de contentamento por essa nova luz que lhe surgia.

Ao chegarem à encruzilhada, no exato ponto onde as estradas se interceptam, havia um homem, alto, magro e vestido com um fraque negro, que uma cartola completava. Para não serem vistas, as duas esconderam-se atrás de um arbusto, onde decidiram aguardar que o homem fosse embora. O homem, entretanto, não movera um músculo sequer e as moças, que carregavam pequenos objetos para sua bruxaria, aguardavam ainda, impacientes.

O tempo passara e, o homem, de braços cruzados e reto, como uma estátua, permanecia imóvel. Por quanto tempo estavam ali? Era quase meia-noite, mais de três horas se haviam passado...

Finalmente, Carmem ergueu-se, furiosa:

- Vamos lá!

- Mas... e o homem? - perguntou Maria Luiza.

- Não importa!... Vamos!

E seguiram na direção do homem. Aproximaram-se dele, mas ele não as olhou, olhava para o infinito, como que distraído.

- Desculpe-me, senhor... - disse Carmem.

Ele não respondeu, apenas movendo os olhos para baixo.

- Será que o senhor poderia nos dar licença?

Ainda com expressão distraída, o homem falou:

- Podem fazer o que querem fazer... Não se preocupem.

- O senhor não entende...

Ele repetiu:

- Podem deixar o que vieram trazer... eu não me importo.

- Não podemos! Nos dê licença, por favor...

O homem deu um sorriso louco na sua expressão maligna:

- E qual o problema de eu permanecer, se o que vocês trouxeram é para mim?

E o homem gargalhou com uma voz que parecia ecoar do próprio inferno...

Daí em diante, tudo que se sabe é que Carmem perdeu seu juízo... e Maria Luiza, em catatonia profunda, nunca mais falou ou piscou outra vez.... e dizem que o diabo jamais saiu do lado delas pelo resto de suas vidas

Henrique de Castro Silva Junior
Enviado por Henrique de Castro Silva Junior em 06/05/2010
Código do texto: T2240488
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