Falsas lembranças

Dizem que ninguém tem o direito de passar a vida sem um bom drama. Com ele não foi diferente. Para Dante, seis dias foi o preço cobrado pela jornada entre inferno e paraíso. Ironicamente, a mesma cota paga por Lucas pelo caminho inverso. Por dois meses tentou mascarar suas constantes dores de cabeça com doses cavalares de analgésicos, mas a cada dia as pontadas se intensificavam. No entanto, não fosse um desmaio em pleno expediente na empresa, provavelmente nunca teria recorrido ao hospital.

O médico realizou o exame clínico e uma anamnese minuciosa, seguido pelo não bem vindo silêncio sepulcral. Em um receituário, solicitou com urgência uma tomografia computadorizada e exames bioquímicos a fins de estabelecer a diagnose diferencial. O peso que algo urgente sugeria já foi o suficiente para alarmar Lucas. Cinco dias depois, com os resultados em mãos, o doutor soltou um suspiro pesado e, tal qual a moira corta o fio da vida, deu seu diagnóstico:

-Filho. Você está com câncer.

O mundo se fez oco. Lucas não sentiu os braços de sua esposa trançando-se ao redor de seu pescoço, tampouco as lágrimas e a saliva chorosa molhando o seu ombro. Não sentiu chão, sons, cores ou cheiros. Por um bom tempo, não sentiu.

Em tom fúnebre, o médico indicou na tomografia a área radiopaca onde se fazia presente o tumor.

-Lobo parietal direito,- disse enquanto circulava com uma caneta - do tamanho de uma azeitona.

Logo solicitou a internação do homem para uma cirurgia imediata. Após, seguiriam com quimioterapia e radioterapia associadas.

-Quais as chances do meu marido, doutor? -perguntou Bianca controlando o choro.

A resposta só veio quando Lucas deixou a sala.

A cirurgia foi realizada com relativo sucesso, porém durante o processo houve a lesão de áreas nobres do cérebro, o que levou o paciente a um quadro de paralisia. Agora, não bastasse estar preso em um quarto branco sobre uma cama articulada, também era prisioneiro de seu corpo. Compartilhava todos os dias o sofrimento de sua esposa em seu pranto contido ao lado de sua cama. Ao menos ele acreditava que ela chorava, já que sua visão se limitava pela posição em que sua cabeça se acomodava no travesseiro, garantindo-lhe um panorama escasso, envolvendo a área entre a base de sua cama e um velho relógio de parede mantido sobre a porta para o corredor. Bianca passava as tardes ao lado do marido, deixando-o apenas no começo da noite para cuidar do filho. Nessas horas de solidão, sua única distração era observar o movimento do corredor com seus olhos vítreos. E foi em uma dessas noites que ela apareceu.

Calin de Malto. Era esse o exótico nome bordado no bolso daquela enfermeira. "-Francês, talvez?&#8221". Lucas não tinha certeza. O relógio cravava dez da noite quando ela passou em frente à sua porta. No meio do caminho, como se sentisse o olhar pesado do homem, parou e virou-se em sua direção. Seus lábios carnudos se entreabriram em um leve sorriso, e este foi seu único cartão de visita antes de entrar no quarto. Ao passar, fechou a porta e seguiu com um caminhar suave, deslizando ao redor da cama, até fugir do debilitado campo de visão de Lucas. Aguçando sua audição, pode ouvir o tilintar de metal no criado mudo ao seu lado. Em pouco tempo a enfermeira estava de volta, agora com uma seringa fincada em uma ampola de algum medicamento qualquer, concentrada em ver os níveis que atingia o êmbolo. A seguir, injetou o medicamento na bolsa do soro fisiológico suspensa no suporte na lateral da cama. O material era de um escarlate vivo e viscoso, e pouco a pouco foi se diluindo ao serpentear pelo líquido. Lentamente, desceu pelo cateter em direção à veia de Lucas, que pode sentir, então, o fármaco incendiar seus vasos a medida que se dispersava por seu sistema circulatório. Neste momento percebeu o olhar fascinado que Calin remetia-o, e isto lhe dava calafrios. Mais uma vez, ela saiu de sua vista.

Ao retornar, Lucas notou um reflexo metálico vindo de sua mão. Erguendo de leve sua saia, a enfermeira então subiu em sua cama, e, mantendo-o entre suas pernas, sentou-se sobre o seu abdômen. O coração dele disparou em um misto de medo frente a sua vulnerabilidade e excitação com a situação. Lentamente, a mulher curvou o corpo em direção ao seu rosto, até que seu hálito doce esquentou o nariz deste. Compenetrada na feição do homem, Calin estendeu sua mão direita e acariciou seu rosto. Seguiu deslizando o indicador por seus traços, até chegar à sua testa. Aproximando-se de seu ouvido disse em um sussurro aveludado:

-Aqui está seu problema. - dizia enquanto dava leves batidas com o indicador na fronte de Lucas.

E recuando seu rosto, encarou o olhar do paciente. Acomodou suas coxas um pouco mais acima do seu corpo e revelou o objeto que segurava. Em sua outra mão mantinha firme um bisturi. Com cuidado, removeu o curativo colocado na lateral da cabeça de Lucas, expondo a grande sutura deixada pela cirurgia. Eriçou seu corpo e aproximou-se da ferida, mantendo seu decote na altura dos olhos do rapaz. Calin, então, incisou o bisturi sobre a linha do corte já existente, até que pode sentir o toque rígido da calota craniana. Os fios de seda foram se rompendo enquanto a lâmina percorria por entre as bordas cruentas. Se pudesse, ele gritaria. Precisou tentar sufocar a dor com o seu silêncio forçado. "-Ó Deus, me ajude! Alguém me ajude!". Podia sentir o sangue quente escorrer-lhe pela cabeça e pescoço. Escorregando o bisturi entre o tecido e o osso, a enfermeira começou a descolar o couro cabeludo da superfície óssea. Logo, o temporal e o parietal já se mostravam expostos. No entanto, ele notou que estranhamente já não sentia dor, apenas as pressões e tensões oriundas da manipulação de seus tecidos. "Por causa daquela coisa vermelha, será?".

Pegando uma longa agulha, a enfermeira passou a costurar a pele frouxa nas margens ainda aderidas ao crânio, mantendo aberto o campo operatório. Usando uma chave de fenda, começou a tirar os parafusos que, por meio de uma placa de níquel-titânio, mantinham a estrutura óssea recortada durante a cirurgia unida ao restante do crânio. Conforme removia os parafuso, levava-os à boca, mantendo-os firmes entre os lábios. Tendo removido todos, posicionou a extremidade da ferramenta na linha do corte e forçou para separar o bloco, que logo saltou em sua mão. Pegou então aquele recorte ósseo retangular e colocou-o sobre o peito de Lucas, reposicionando os parafusos nos encaixes das placas metálicas. Vendo aquele fragmento de seu crânio a sua frente, não conseguiu segurar as lágrimas, que teimosamente fugiam aos solavancos enfrentando a paralisia.

"Por favor...por favor..."

-Isso irá ajudá-lo. - disse Calin estendendo a mão fechada .

Lucas forçava os olhos molhados para tentar ver o que havia em sua mão, mas não surtiu efeito. Conseguiu apenas notar que algo havia sido despejado no interior da cavidade recém aberta.

"Mas o que... São várias peças. Não, não. O que está acontecendo! Espere. Espere! Está se mexendo! ESTÁ SE MEXENDO!"

E caindo pouco a sua frente, um pequeno verme se retorceu febrilmente sobre o lençol, deixando um rastro fino de sangue. Calin recolheu gentilmente a criatura e a colocou novamente no interior de seu crânio para, em seguida, tapá-lo com o fragmento ósseo, parafusando-o cuidadosamente em seu local.

-Não! Sua vagabunda! Eu acabo com tua vida! Você vai ver, ainda vou te ferrar! Ah, se eu me levantasse!

Com o bisturi ela cortou a linha dos pontos nas extremidades e, juntando as bordas, refez a sutura. Por fim, limpou com uma toalha a cabeça do homem e fez um novo curativo no lugar. Após fazer um afago em seus cabelos, desceu da cama e abandonou o quarto.

"NÃO! Não...não... Volte aqui! Não!";. Desmaiou com o cansaço em seguida.

No dia seguinte sua esposa chegou para sua rotineira visita, no entanto, para a surpresa de Lucas, em contraste com a surreal noite que havia vivido, esta manhã em nada havia saído do habitual.

"Amor, olhe pra mim. Olhe pra mim! Pelo amor de Deus, não fique ai parada! Não é possível que não dê pra perceber que estouraram minha cabeça ontem! E os verme?! OS VERMES! Não paro de senti-los revirando em meus miolos! Faça alguma coisa, faça alguma coisa...por favor...faça...só...faça...."

Mas nada. Apenas a conversa furada e o papo motivacional corriqueiro.

Então, mais uma vez, a noite chegou sorrateira. Em sua cama, Lucas tentava segurar os ponteiros dos minutos. Temia com o que poderia ocorrer às dez horas. Nunca mais dez horas. Mas nesse dia ele aprendeu que o tempo é um adversário formidável para qualquer embate mental, e sua debilidade não era unicamente física. No momento em que o ponteiro maior atingiu seu zênite, o jaleco bordado com Calin de Malto surgiu no corredor. Entrou imponente no quarto e fechou a porta em seguida. Aproximou-se próxima aos pés de Lucas e, subindo na cama, engatinhou em sua direção.

-Saudades? Não, não me olhe dessa maneira, só quero o seu bem. Prometo que hoje irá gostar.

Lucas mal conseguia organizar seus pensamentos de tanto pavor, quando ela abriu um batom vermelho escuro e desenhou um pequeno alvo na testa do paciente.

-Prontos para começar. -sussurrou.

E levando uma máscara metálica ao rosto do homem, prendeu-a por meio de duas grandes fivelas. Não demorou para que ele percebeu que não haviam aberturas para o nariz ou a boca, sendo um artefato completamente vedado, com exceção dos olhos.

"Ar. Ar.Preciso respirar.Seu diabo! Demônio! Socorro. Ar! Alguém!"

E em meio a essa claustrofóbica experiência ele reparou nos olhos da enfermeira. Estavam estranhamente verdes, percorrendo o seu rosto. Não era de fato um verde muito claro ou um deveras escuro. "Parecem...brilhar?" E após essa última observação, desmaiou devido a hipóxia.

Surpreso por não estar morto, despertou no dia seguinte com uma festa dos novos inquilinos de seu crânio. Seus olhos imploravam a ajuda da esposa, mas novamente, em vão. E o inevitável pesava-o o âmago: sabia que teria um novo encontro às dez da noite.

E mais uma vez, lá estava ela. Esbanjando seu deslumbre mórbido, sentou-se na cama ao lado de Lucas.

-Teremos a noite toda- disse em seu ouvido. E colocando um comprimido entre seus lábios macios, forçou-os contra os dele, fazendo com que o engolisse. Em um instante ele começou a sentir uma vertigem e um fortíssimo enjôo. Juntamente, um cansaço tremendo invadiu-o.

"Se é isso que essa vaca quer, que eu morra logo!"

Mas ao contrário de sua prece, Lucas somente adormeceu. E assim seguiu sua vida por um período de meses. Durante o dia contava com a companhia da esposa. Durante a noite, a de Calin. Por todos os instantes, os parasitas. No entanto, certo dia, ao acordar, notou que conseguia erguer os braços.

-Lucas. Lucas! Doutor, doutor, ele acordou!- comemorou Bianca ao ver a reação do marido, correndo em direção a porta para fazer o anúncio.

-Mas o que? Bianca? Mas como? O que... -reagiu Lucas confuso.

-Você passou por uma quinta cirurgia semana passada. Você tem dormido por um bocado de tempo. O doutor tinha grandes esperanças no sucesso dessa cirurgia. Digo, em relação a paralisia. Mas deixemos isso de lado! Oh, por Deus! Vou ligar pro Carlinhos agora, ele estava sentindo muito sua falta. Sabe, achei melhor não trazer ele aqui pro hospital, você sabe como criança sofre e...

-Como você fez isso comigo, Bianca. COMO?- interrompeu-a . - Todos esses dias eu era cortado, sufocado, drogado, e você nunca percebeu nada? E os vermes! Céus, os vermes!

-Mas Lucas, era esse o tratamento, só fizemos o que foi melhor para você.- respondeu-lhe a esposa desconcertada- Mas, vermes? Que vermes? Do que está falando?

-Ora. Vermes! Que vermes? Os que aquela enfermeira louca enfiou na minha cabeça! Esses, eu digo. Há! Esses!

-Lucas, você está bem? Está me assustando. -disse a mulher recuando contra a parede e com a voz morrendo gradativamente.

-Vejam só, finalmente você acordou! Fico feliz em ver sua disposição amigo, mas é melhor relaxar.- disse o médico enquanto entrava no quarto.

-Doutor, doutor, que bom que chegou. Quero saber dos vermes. Na cirurgia, você os viu? Tirou eles, não é? Todinhos, não é?-perguntava aflito Lucas enquanto apertava o braço do médico.

-Mas de que diabos você está falando?

Bianca se recolhia no canto do quarto com os olhos marejados quando Lucas perdeu o controle:

-Você está com ela, não está? Todos juntos, aliás. Há! Devia imaginar. Vocês são doentes! DOENTES! Agora onde está a vagabunda da Calin?

-Desculpe... Quem? Por favor, rapaz, mantenha-se calmo.

-Como quem? Calin de Malto, a enfermeira que vinha ao meu quarto toda dez horas!

-Senhor, te asseguro que nenhuma Calin entrou nesse quarto. Se pergunta pela enfermeira que cuidou de você, é aquela.- respondeu o médico enquanto indicava uma mulher que se distanciava pelo corredor.

"Agora te peguei"- pensou Lucas enquanto corria vacilante em sua direção com suas pernas atrofiadas. Chegando próximo a mulher, segurou-a pelo ombro e virou-a, encarando o seu rosto. "Olhos castanhos? Não, não pode ser. Não era você. Não era. Não estou louco. Não estou!" E em desespero começou a esmurrar a parede enquanto praguejava contra sua possível loucura. Foi então que, como em um lampejo, viu uma notificação presa ao mural:

"É com extremo pesar que a Diretoria da Santa Casa comunica o falecimento da enfermeira chefe Calin de Malto, no último dia 15 de março.

A Srta. Calin foi encontrada morta às 10h da noite no necrotério do hospital. Sentimos imensamente que as denúncias por maus tratos a pacientes levantadas pela direção tenham levado a este desfecho.

Mostramo-nos solidários e condolentes aos amigos e familiares."

Lá estava ela. Os grandes olhos verdes encarando os seus. Não estava louco, afinal. Olhando para o lado, notou seu médico e Bianca aproximando-se.

-Disse que não era invenção minha, não disse? Olhe o senhor mesmo a danada ai. Por sorte está morta já! Há! Olha só, veja, bem como falei! Essa assombração ficou por aqui ainda.! Háháhá! Te achei agora, sua vadia!- dizia Lucas em meio a gargalhadas enquanto indicava o folheto na parede aos dois. Bianca, perplexa, recuava boquiaberta com a cena.

-Doutor, mas o que é isso?

-Como eu havia dito, o caso dele é muito sério. Houve metástase para muitas áreas do cérebro. Precisamos seguir com o tratamento. Você precisa ser forte.

-Eu sei doutor, eu sei. Mas tem horas que são tão difíceis. – respondeu Bianca, enquanto chorava vendo o marido gargalhar da parede lisa.

-Michele, Michele, por favor. – chamou o médico pela enfermeira que havia sido abordada por Lucas.

-Sim, doutor.

-Leve o Sr. Lucas para o quarto. Não podemos parar o tratamento de forma alguma. Acalme-o e volte para a rotina.

-Sim, senhor. Iremos manter o LINAC e o Temodal?

-Ah, sim, sim. Não podemos parar a radio nem a quimioterapia tão cedo. E antes que eu me esqueça, mande alguém consertar o relógio do seu quarto. Aquele ponteiro travado nas dez horas o está perturbando de alguma forma.

E assim, seguindo para o quarto com a enfermeira, Lucas planejava de que forma receberia sua pontual visita das dez horas.