Natal sombrio

A turba reunida no parque central da cidade já mostrava sinais de ansiedade. Era a última convenção do partido, a que definiria o candidato a presidente da república, e o favorito estava uma hora atrasado. Enquanto aumentava o burburinho da massa, Fausto, sobre o palanque, tentava sem sucesso contato por rádio com a comitiva do pré-candidato Lúcio Andrade.

Responsável pela organização do evento, Fausto se surpreendia com a rápida ascensão do político. Em menos de um ano, o interiorano Lúcio saíra do anonimato dos grotões para o panteão dos principais líderes da legenda. Uma trajetória meteórica, catalisada pelo carisma inquestionável do deputado que, aos 33 anos, tinha o menor índice de rejeição entre os eleitores, segundo as pesquisas. O pleito seria apenas em novembro, mas já agora, em março, um homem experimentado como Fausto, com três décadas de partido, podia antever que o destino de Lúcio era, inevitavelmente, o palácio do governo.

Preocupado com a demora e como não tivesse outro meio de comunicação disponível senão o inútil rádio, Fausto desceu do tablado para procurar seu telefone celular, que deixara com um dos assistentes. Súbito, sentiu uma leve fisgada na perna. Olhou para baixo e viu um menino de seus 5 anos, choroso. Carregava consigo um boneco articulado, desses de super-heróis. O braço do boneco tocara a calça de Fausto, que fitava atentamente o brinquedo.

- Tio, não sei onde tão meus pais.

- É? E esse Superman? Diz pro tio, como foi que você conseguiu ele?

- Ganhei no último Natal. Se você me levar pros meus pais, deixo você brincar com ele, tá bom? - disse o garoto, o soluço a engolir as palavras.

Após deixar o pequenino aos cuidados dos seguranças, Fausto mirou novamente o boneco e, em seguida, a cicatriz em forma de cruz na mão esquerda que tinha desde os 7 anos, produto de leve ferimento provocado por um brinquedo parecido com o que acabara de ver. A dor passou em pouco tempo. A marca, porém, acompanhou-o pela vida toda.

Na verdade, Fausto até se esquecera de como era o brinquedo, também presente de Natal. Textura, cor, nome, fabricante... Tudo caíra no buraco negro das recordações dispensáveis. O que realmente ficara plasmado na memória era o sonho da noite anterior, da virada daquele 24 de dezembro.

Registre-se que era eufemismo chamar de sonho aquelas cenas presenciadas pelos olhos infantis de Fausto. "Pesadelo" é palavra mais adequada, ainda mais quando se sabe que o infante se questionou por dias se realmente sonhara, ou se sonhara acordado, ou se o céu e o inferno permitiriam que a realidade fosse tão ignominiosa a ponto de fazer uma criança preferir a morte a enfrentá-la.

Alucinação ou não, o fato é que, pouco depois da meia-noite, o menino Fausto sentira vontade de fazer xixi. O banheiro ficava no fim do corredor, em cujo centro havia a entrada para a sala de estar. A luz ainda estava acesa. Fausto fora vencido pelo sono, mas seus pais com certeza estariam acordados, celebrando mais um Natal.

Na escola, durante uma conversa com os coleguinhas, o garoto ouvira falar que Papai Noel não existia. Tratava-se de invenção dos adultos para entreter as crianças, garantiu um de seus amiguinhos. Outro acrescentou que os presentes eram comprados pelos pais, que, aproveitando-se do sono dos filhos, depositavam-nos, à noite, junto à árvore de natal.

Fausto tinha dúvidas. Desde muito pequeno se acostumara a receber os presentes de Papai Noel. Por outro lado, sentia vergonha de ser o único na sala que continuava a crer no Bom Velhinho. Decidiu, então, tirar a história a limpo. Aproximou-se vagarosamente da sala, sem fazer barulho. Foi encostando a cabeça na moldura da porta, até conseguir ver o que ocorria no recinto.

Então, o horror petrificou sua face, impedindo-o de gritar. Em compensação, as pernas tremiam freneticamente.

O olhar pueril não permitia a Fausto compreender os acontecimentos em sua plenitude. Tal qual estátuas, seu pai e sua mãe estavam parados próximo à árvore. O genitor segurava um embrulho. À sua frente, havia uma moça, caída, apavorada e em trajes mínimos. Segurando seu pescoço com a mão esquerda, Papai Noel - secundado por três duendes - acabava de sorver as últimas gotas de uma garrafa de vinho.

No entanto, não era o Papai Noel dos livros infantis que entrara na casa de Fausto. O hirsuto e barrigudo idoso vestia uma roupa de seda preta. Mesmo de longe, o menino notara que o ancião encarava a jovem com um ar maquiavélico. Repentinamente, os duendes se viraram para tomar do pai de Fausto o pacote, e o garoto pôde perceber que eles eram, na verdade, pequenos demônios.

Desesperada, a adolescente interpelou o sinistro Papai Noel.

- P-por que eu? Não me mate, por favor.

Ouviu-se uma portentosa gargalhada.

- Ho-ho-ho. O que é sua vida perto dos planos do mestre? È cada vez mais raro encontrar virgens na sua idade. E preciso de sangue de virgens.

- Pra quê? Deus, me salve.

- Deus? Ele não virá aqui. Vou tirar um pouco da sua seiva, pra banhar esse presente - disse, apontando para o embrulho, já de posse de um dos duendes infernais.

- Mas, afinal, o que é isso? Quem é você? Quem são essas pessoas? Por favor... - a moça principiou a chorar copiosamente.

- Eu sou Papai Noel, menina. Esse casal é apenas mais um, escolhido para servir aos nossos propósitos. Estão hipnotizados, se é isso que quer saber.

- Mas o que significa isso? Se você é o Papai Noel, aquele em que todas as crianças acreditam, deveria fazer o bem - implorou com voz adocicada a jovem, já debilitada pelas sevícias.

Papai Noel a esbofeteou com força.

- Não fale comigo nesse tom meigo. Você acredita nessas lendas idiotas? Papai Noel foi criado pelo meu senhor como um ícone do Natal, exatamente para corromper a data de nascimento do Nazareno.

- O quê?

- Surpresa? Por quase três séculos venho preparando o terreno para a assunção do filho do cão. É um processo demorado. Não é do dia para a noite que o anticristo pode vir a este mundo. Leva tempo até se criarem as condições propícias. Agora, estamos na fase de arregimentação do exército que vai auxiliá-lo.

- Mas...

- Você deve estar se perguntando como uma mentira pode durar tanto tempo. É como eu disse: um projeto de séculos. As pessoas acreditam em Papai Noel no momento mais puro de suas vidas. Quando crianças, introjetam essa imagem em seus inconscientes. Mal sabem que, no fundo, estão aceitando tacitamente a figura da besta, que em breve emergirá. E que se entregam a um sentimento de posse, a um consumismo, que é exatamente o contrário do pregado pelo Nazareno. Ao mesmo tempo, escolhemos entre essas crianças alguns soldados para nossas hordas. Eles são marcados...

- Você vai me matar? Por favor, não - interrompeu a vítima, no ápice do desconsolo.

- Ora, chega de conversa - determinou o maligno ser, acoplando de novo sua manzorra ao delicado pescoço da virgem. Depois, rompeu a jugular da jovem com os caninos, sugou um pouco de sangue e regurgitou-o sobre o boneco articulado.

A moça desfaleceu, e claro estava que não voltaria a caminhar entre os vivos. Naquele instante, o até então incógnito Fausto esbarrou num jarro de flores, que se quebrou no chão.

Enfurecido, Papai Noel virou-se para a porta da sala, e o menino viu que o velho se metamorfoseara num vampiro.

Além de despertar a atenção do monstro, o estrondo acordou os pais de Fausto do transe hipnótico. Assustados, correram em direção ao filho e abraçaram-no.

Completamente ensandecido, o funesto Papai Noel recolheu o corpo da virgem e soltou um grito estridente e ensurdecedor, cuja onda se propagou tão fortemente que derrubou a família de Fausto. Quando se recobraram do tombo, acorreram até a janela aberta da sala. Ainda viram o Papai Noel e dois de seus duendes acondicionando o cadáver da jovem no trenó, que saiu puxado por robustas e negras mulas-sem-cabeça, cujos relinchos pirotécnicos pareciam vir das profundezas do abismo. De repente, o terceiro duende apareceu do lado de fora, surpreendendo Fausto e seus pais. Ele assoprou uma substância enevoada, que adormeceu a família.

Na manhã seguinte ao estranho pesadelo, os pais de Fausto não tocaram no assunto. Entretanto, as cenas continuariam a atormentar o pequeno por mais alguns meses. O brinquedo estava lá, ao lado da árvore. No início, o menino teve receio de brincar com o boneco. Com o tempo, o medo passou. Certo dia, ao fazer um movimento mais brusco, a ponta de metal da mão do super-herói furou a mão esquerda de Fausto. A ferida cicatrizou em formato de cruz.

*

- Senhor? A comitiva chegou. Senhor? Aconteceu alguma coisa?

- Ah, desculpe. Não, nada. Estava meio aéreo. Somente reminiscências. Eles chegaram, então?

Assessor especial do candidato Lúcio Andrade, Iago Mendes foi-se chegando apressadamente. Cumprimentou Fausto com a mão esquerda.

- Tivemos um imprevisto na estrada. Engarrafamento devido a um acidente. Mas, vamos ao que interessa.

Ao largar a mão do assessor, Fausto sentiu-se estremecer por se dar conta de que, assim como na sua, havia nela uma diminuta cruz avermelhada. Talvez ignorasse que certos pesadelos não terminam quando abrimos os olhos; ao contrário, nesse momento estão só a começar.