Mein Haus

Quando, ao anoitecer, o sol se põe silencioso

E se despede do morro e da planície

Quando as alturas ainda resplandecem suavemente,

Em seus últimos raios de despedida;

Então ouço um sininho tocar à distância;

Com seu toque tão familiar, tão puro

Então sinto um peso no coração,

Quero ir para casa – quero ir para casa!

Adolf Kretschmer

O mapa na vertical nas mãos de Lídia não era a única desculpa pela confusão que havia feito ao dar direções ao marido. Parte devia-se aos remédios que lhe davam sono e enjoo. Nos últimos dias passara a usar indiscriminadamente medicamentos potentes, chás milagrosos, comidas e até bebidas para induzir o esquecimento, mesmo que momentâneo. Por vezes ficava muito irritada e acabava quebrando a porcelana da casa, rasgando as próprias roupas e ameaçando cometer suicídio diante dos filhos.

Mudaram-se. Depois de tudo, não tinham alternativa. A esposa já apresentava fortes traços de incoerência mental - possível esquizofrenia? Toda semana escrevia cartas para a polícia, abordava qualquer um na rua ou passava noites e mais noites fitando o quarto pequenino. Antônio, o marido, sabia da fragilidade da situação e optou por uma mudança imediata. O descontentamento de viver na cidade grande tornou-se um fardo para a família, um desgosto. Sendo assim, estariam evitando o remorso futuro. A mágoa da perda. Não um extravio qualquer, mas uma carência pungente.

Quando garoto, Antônio viveu no interior com os avós por muitos anos, mesmo na puberdade passava grande parte das férias lá, gostava do clima, das pessoas sempre atenciosas, das histórias de terror e dos causos. Por lembranças assim, acreditava ser este o ambiente adequado para sua esposa e filhos depois de tudo. Campos verdes, araucárias infinitas, além de um céu azul que podia ser visto de qualquer lugar. Luiz e Ana ainda eram crianças e consentiram sem questionar a decisão, talvez porque sua educação tendia ao rigor que rege as famílias tradicionais.

Para Ana, o tempo na estrada passa de forma esquisita. Devagar quando se está pensando em nada, rápido quando se olha através da janela. “Quantas horas já teriam se passado?”, ponderava ela. Parecia uma eternidade. Viagem tão longa. Determinação tão grave. E graças à bagunça feita por Lídia teriam de lidar com o ônus dessa troca súbita à noitinha. Isto é, pernoitar em colchões duros, andar no breu por aposentos desconhecidos e enfrentar a falta de comida e energia elétrica. Quem sabe se o problema nascente pudesse fazê-los perder a melancólica lembrança. Acrescentavam-se cada vez mais complicadores ao itinerário pelo qual o marido se via guiado de modo inesperado. Olhava para trás e o sol fraquinho descia suas luzes aos cumes dos morros num aceno de que fecharia seus olhos para que as criaturas noturnas dominassem o seu reino em seu ocaso. As estrelas emitiam seus raios, mas não alcançavam o chão, este despido da certeza de luz era escuro, incerto, parecia até mesmo inexistente. Apenas o farol alcançava as imagens do caminho que se fechava novamente ao passar do veículo. Lídia, numa mistura estranha de inquietude e sonolência, respirava ofegante e encorajada pelo afeto que nutria por Antônio fantasiava mais do que nunca com a realização do que deveria ser uma mudança importante, a mais determinante, uma transformação para a felicidade. Tornar-se-iam uma família feliz e seria este o final próspero de tudo. O irreverente Luiz, como que pressentindo as aspirações da mãe, não via nada, senão ocasião para gargalhadas. Ingênuo, queria experimentar ao máximo aquela experiência curiosa. Intrépido, deslizava os dedos no pescoço da irmã fingindo ser uma aranha.

- Pare com essas brincadeiras bobas, Luiz! Cresça e apareça, seu desmiolado!- disse Ana, prudentemente.

- Ahaahhahahaha! Ela tá com medo! Medo, medo!- Gozou o garoto brincalhão.

- Ih! Seu piá de merda! Medo, eu? Era eu quem mijava na cama toda vez que dava temporal? Seu bocó! Por mim bem que podia dar uma tempestade hoje. Daí eu queria ver quem tem medo... Cagão!

-Cagão? ... É mesmo. Vou te mostrar então! Upa...Upa... Hehehehehe – Cutucava a irmã na perna e na barriga com os dedos indicadores.

- Você também né, Ana? Fica quieta aí atrás porque um só já atrapalha e muito... – disse a mãe. Continuaram. -Parem com essa palhaçada! Chega! Nem chegamos ainda e vocês já estão brigando...

Antônio sustentava os olhos fixos na estrada, pressentia o mau tempo que se anunciava sobre as longínquas planícies da serra. Quando a chuva precipitou com incidência sobre o para-brisa viu um grande vulto no fim da estrada e, de repente, deixou de vê-lo. Ele conservou a atenção na estrada, a chuva ficou mais forte, pensou em encostar o carro... “Estrada Westfallen” apontava uma placa improvisada em um pedaço de madeira. Estavam no lugar certo, continuaria. Já era possível ver um portão com barras de ferro que, aos poucos, foi ficando maior. Apesar da má visibilidade podiam ver a semelhança das grades com as fotos que haviam recebido pelo correio. Não havia iluminação alguma. A única luz que incidia sobre a entrada era a dos faróis pouco eficientes do modelo 1303. A família admirou inerte por um momento. Então, Antônio bateu a porta do fusca e foi até a entrada. Chave por chave. Tentou sem sucesso encontrar uma que abrisse o portão. A procura era exaustiva, pois o molho apresentava tantas opções quanto às de um castelo. Desistiu. Nenhuma daquelas era do formato e tamanho adequados.

- Não é nenhuma dessas chaves... – disse o marido, esfregando as mãos no casaco encharcado.

- Tem de ser, Antônio! Tem de ser... Eles te falaram que aí estariam todas as chaves, não é?

- Sim, mas... Deixe-me pensar...

- Pensar?! Tem que tentar Antônio... – A voz de Lídia era fraca e desesperada. O efeito dos comprimidos cada vez mais notável. Por isso a irritabilidade. Se não entrassem logo, dormiria ali, no carro, em meio a tudo aquilo. As crianças aguentavam caladas. Ana assistia atentamente à conversa, processava tudo, cada pausa, cada verbo. O irmão tinha os olhos presos pra lá dos vidros, na escuridão lá fora, nos monstros que sua imaginação criava para entretê-lo. Em sua fantasia um deles observava tudo que acontecia. Tinha uma foice entre as mãos e estava sentado em uma velha carroça de tábuas. Seus olhos eram de um vermelho incomum, mas pior que os olhos eram as rugas. Eram de todos os tamanhos e davam ao vê-lo a sensação mais esquisita jamais vivenciada por Luiz, uma sensação surreal, como se aquilo um dia houvesse sido um homem e que por infortúnio do destino agora encontrava-se preso, amarrado e condenado a ser nada além de uma mutação asquerosa. Um ex-homem, um monstro. Bolhas de pus circundavam a cabeça e as unhas não existiam. Somente carne. Então, vagarosamente, a criatura deu alguns passos e disse: “Ich öffne!“ O garoto não compreendeu. Os sons eram rígidos e pesados, parecia outra língua. Ele não tinha medo, estava enfeitiçado. Anestesiado pela possibilidade de tal monstro fantástico existir. “A foice poderia ter poderes”, pensou ele. “Bem como as varinhas das fadas, só que mais poderosas. Mais cruéis também.” Sua imaginação o levou a fantasiar o seu admirado monstro rompendo o portão com força extraordinária. Era algo belíssimo. Grandioso. A entrada se espedaçando na frente de todos.

- Consegui! Nem acredito, estava aberto. Aberto! Não precisei de nenhuma chave. – exclamava Antônio. Lídia observara atentamente a tudo e, de repente, assustou-se. O portão aberto. O estranho é que aquilo tudo parecia durar uma eternidade para ela... Viu o olhar satisfeito do marido, viu Ana a observar e ainda viu o olhar distante do filho. Então, depois de tudo aquilo ouviu, sim, ouviu um choro, um choro de bebê. Tomou Daniel entre os braços. Acariciou-o. Como era lindo! Os indícios de cabelo, o cheirinho, o olhar inocente, tão pueril. Ela era tão feliz por ter aquele bebê. Ele era o único dos filhos que se parecia mais com a mãe do que com o pai. Tinha os seus olhos azuis, seu cabelo ondulado e até o seu nariz fininho. O carro parou. Desceram em meio à chuva. Antônio foi até a porta principal. Deixou o molho cair, demorou em achar a chave certa. Lídia decidiu ajudar. Foi correndo até a varanda. Pisou em uma ou duas poças d`água. Gritou para que as crianças também viessem. Vieram apressados. Antônio acendeu algumas velas. Lídia conseguiu abrir a porta. O interior era espaçoso, alto e muito antigo. Os detalhes e adornos remetiam claramente à cultura alemã. A foto de uma família sisuda com três filhos pendia numa das paredes. As crianças ficaram impressionadas com o tamanho, com a grandiosidade, mas sentiram um abatimento ao ver os aspectos taciturnos que envolviam a casa. Antônio elogiava com afinco o novo lar. Exaltava suas belezas, seus móveis coloniais, os estranhos detalhes e também o feitio sombrio. Percebendo o temor dos filhos, começou a contar uma história de terror para divertir e assustar a todos. Contava que um velho senhor alemão tinha grande paixão por seu cão e lhe dava apenas as melhores carnes. E que as melhores carnes eram sempre as humanas. Principalmente as dos mais jovens. Quanto mais jovem, melhor a carne. Por isso, esse alemão roubava nenéns, sim, isso mesmo, narrava ele. Bebês! O desprezível alemão cortava com o facão as partes do corpo dos recém-nascidos uma a uma em cima de um cepo, então, dava-as para o seu pastor alemão de dentes pontiagudos. O cão estraçalhava com voracidade a carne. O pior, contava ele, era que o velho monstro cortava os braços e pernas da criança ainda viva e...Não pude ouvir o final, minha atenção foi tomada por um ruído, fui seduzida, hipnotizada por um chocalho, era tão familiar e puro, de repente, da lembrança, veio o susto súbito: Daniel! Precisava vê-lo. Tinha de colocá-lo no quentinho. Meu Deus! “Que mãe eu sou?”, ”Como pude esquecê-lo?”, pensei. Havia o deixado lá fora, naquele frio, sozinho... Que horror! Corri o mais rápido que pude até o carro, a chuva ainda era forte, mas estranhamente a noite era silenciosa. Abri a porta. Nada. Revirei o fusca. Nada de Daniel. “Meu Deus! Onde ele está???” Corri ao redor do carro... Fui até a casa e voltei. Gritei! Gritei! Daniel! Daniel! Daniel! Não o encontrei. Meu filho não estava em lugar algum... No entanto, vi um cachorro. Um pastor alemão. Senti um peso no peito, uma dor no coração. Ele mastigava um pedaço de carne, um pequeno membro e, bem próximo dali, um facão cravado num cepo de lenha. - Daniel... Daniel... – minha voz saiu baixinho. Fui tomada pelo horror, e um pensamento desesperado tomou conta de mim: “Quero ir para casa – quero ir para casa!”.

- Acorde Lídia! Acorde! Vamos entrar! – O marido a cutucava carinhosamente. Achei que estava ansiosa para conhecer seu novo lar. Quero ver alegria nestes rostos! Estamos de mudança. Uma casa cheia de aventuras pra vocês, crianças! Que tal?

- Não sei se é aventura o que quero no momento, papai. – resmungou Ana meio sonolenta.

- Eu quero! Já vi até um monstro que vai te pegar de noite, maninha... HAHAHA! – brincou Luiz mostrando um largo sorriso.

Em meio aos trovões: uma casa típica alemã. Imensa e assustadoramente bela. - Incrível! - exclamou Antônio, ao se aproximar da residência centenária. Era bem melhor do que imaginava. A estrutura estava incólume, e com exceção de alguns descascados na tinta branca do porão semi-enterrado a pintura se conservara em bom estado. As paredes de pedras de barro cortadas pela madeira preta eram algo novo para Lídia que pouco sabia de casas. O marido, por sua vez, surpreendeu-se, pois as paredes mantinham sua coloração alvejada. Sobre elas, repousavam ainda telhas de argila quase como inicialmente, imaginou ele, com exceção de umas poucas que o vento devia ter arrancado. Lídia se enchia de certeza e pensamentos desgostosos ao avaliar a casa com os olhos - “estrutura muito velha, antiga, feia, de mau gosto”. As crianças, já imaginando o interior, limitaram-se a pensar na imensidão rara do novo lar. A construção em enxaimel manteve a residência forte durante bastante tempo. Afinal, reparos não haviam sido feitos desde que os primeiros donos a deixaram. A esposa não sabia o quê, mas algo ali lhe dava tristeza. Talvez a chuva, os trovões ou a arquitetura. Algo. Talvez o simples enxaimel que tanto dava o desejado ar medieval inerente àquele tipo de morada lhe desse asco. Ou quem sabe a verticalidade das avolumadas janelas que contribuía drasticamente ao aspecto imponente da morada, trazendo-lhe frio a espinha... “Quem sabe...”, ponderou Antônio admirando a varanda. Esta se estendia em “L” pela fachada e seria um ótimo lugar pra ele contar suas histórias para as crianças, poucos lugares seriam tão inspiradores... “Quem sabe um balanço.”, concluiu.

Estavam tão atentos à construção que, à primeira vista, nem notaram que logo ao lado da casa havia um galpão. Era um pequeno compartimento, chamava-se Vorbehalthaus, tipicamente alemão. Lá moravam avós depois de terem passado os bens aos filhos, ou parentes solteiros idosos; servia também para oficina de construtores de carroças, ferreiros e semelhantes. Ninguém notou, mas foram notados.

As crianças já conversavam com a mãe, enquanto Antônio ainda impressionado encarava com os olhos petrificados a mansão. “Até que enfim uma boa escolha!”, concluiu mentalmente. Gostava de arquitetura. Admirava artistas e um bom trabalho manual. Sabia que algumas construções se distinguiam da sua função, das pungentes características técnicas dadas a elas. Fuga e expressão. Mesmo sendo mero entusiasta, estava claro que o que tinha a sua frente sobrevivera graças às suas qualidades artísticas.

Lídia viu o olhar satisfeito do marido e adivinhava por inteiro as exaltações mentais de Antônio que se transformaram em expressões faciais alumiadas no breu. Ela o viu como nunca havia visto, viu também Ana atenta a tudo que lhe circundava e ainda viu o olhar curioso do filho perante aquele lugar.

O mato rasteiro dominava quase tudo. Não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelos canteiros e parede, subira pelas janelas, infiltrara-se ávido pelas escadas e pilastras da casa, invadira a varanda e um antigo canteiro de flores, como se quisesse com sua violenta força cobrir para sempre os últimos vestígios de um lar. Foram correndo os dois pelo trilho onde a mata era razoavelmente rasteira. Os passos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som grave das folhas encharcadas pela chuva. As crianças mostravam um misto de hesitação e pavor.

Então, depois de Lídia ver e julgar com as pupilas, ouviu, ouviu um sininho, bem distante. Antônio foi até a porta principal. Deixou o molho cair, demorou em achar a chave certa. Lídia decidiu ajudar. Gritou para que as crianças também viessem. Vieram. Antônio ascendeu velas. Ela abriu a porta. Era uma grande casa. Muito alta. Muito antiga. Uma foto da família logo na entrada. Um pequeno vestíbulo, à direita a sala de convivência, à esquerda quartos. Do vestíbulo, uma íngreme escada que levava ao sótão. As crianças ficaram admiradas, mas também com medo. O marido, por sua vez, elogiava abertamente o novo lar. Exaltava suas belezas, os móveis e, pra deixar todos a vontade, começou a contar uma história de terror. Contava que um velho senhor alemão tinha grande paixão por seu cão e lhe dava apenas as melhores carnes. E que as melhores carnes eram sempre as humanas. Principalmente dos mais jovens. Quanto mais novo, melhor a carne. Por isso, esse alemão roubava nenéns, sim, isso mesmo, narrava ele. Bebês! O desprezível alemão cortava com o facão as partes do corpo dos recém-nascidos uma a uma em cima de um cepo, então, dava-as para o seu pastor alemão de dentes pontiagudos. O cão estraçalhava com voracidade a carne. O pior, contava ele, era que o velho monstro cortava braços e pernas da criança ainda viva. Lídia não pode ouvir o final, sua atenção foi tomada hipnoticamente pelo sininho que continuava a soar, um tilintar distante, um ruído, foi seduzida pelo som familiarmente puro. Desceu as escadas da entrada e em meio à escuridão chuvosa caminhou. Não tinha medo. Era um som maravilhosamente curioso. Pausado e grave. Um grande pássaro rompeu a araucária e soltou um grito. Ela estremeceu. Veio um silêncio demorado. E então as pernas continuaram seu trajeto cego. Bateu em algo. Era madeira. Uma porta talvez. Puxou-a cuidadosamente, sentiu uma corrente. O barulho agora havia ficado mais agudo e presente. Estava próximo, bem próximo. Cada vez mais alto, embora nada visse. Tentava tatear algo para se escorar, tinha medo de cair, sujar-se, mas nada encontrava. O lugar parecia imenso e Lídia imersa. Estar no escuro daquele jeito era uma coisa relativamente nova pra ela. Na cidade sempre havia luz. Nos bairros, ruas ou casas e a qualquer hora da noite. É curioso, pois na luz aparentemente sentimos tudo. Temos a noção de corpo físico - do que é de nosso corpo, de que existem membros, pele e pelos - É impossível racionalizar “este é o meu braço” ou “estas são minhas pernas” no escuro. Tudo inexiste. O corpo inexiste como posse. É apenas estado. Era uma sensação mórbida essa qual ela vivenciava. De repente, sentiu algo raspar seu braço. Desequilibrou-se. Depois a perna. Entrou em pânico. Era aterrorizante. Uma sensação fria que aos poucos ficava ardentemente quente. Perdurava lenta. Suas mãos também rasparam em algo, embora tentasse, dificilmente conseguia sentir o que era. Seus passos longos e em todas as direções não encontravam nada sólido. Nenhuma parede. Nenhum móvel. Nem a porta que havia entrado. Desesperou-se. Estranhamente, agora, mesmo no escuro, sentia as pernas. A intensidade havia aumentado e uma espécie de dor latejante surgiu súbita. Os braços, mãos, pescoço, panturrilhas, lábios e seios. Perdurou por algum tempo e daí então, para o seu alívio, cessou.

- Olhem esses móveis, crianças! Os quadros e... o que temos aqui?! – comentou mexendo em um grande armário cheio de gavetas. Ali, o pai encontrou inúmeros papéis, cartas e uma braçadeira negra. Também um velho rádio. Fotos de senhores sisudos em frente a uma casa e uma carta em um envelope especial. No papel leu “Die Führer”. Foi imediatamente tomado de curiosidade num baque, abriu o envelope às pressas e encontrou uma carta em alemão e uma passagem. Lembrou-se da égide do Estado Novo e do projeto nacionalista de Getúlio, tempo em que a pluralidade cultural foi ignorada e línguas e costumes estrangeiros proibidos. “Era uma política cruelmente autoritária”, constatou Antônio, ainda surpreso, enquanto folheava papeis que se desmanchavam nas mãos. Encontrou até mesmo um jornal da década de 30. Nele o decreto-lei número 406, de 1938 anunciava com letras grandes na capa a situação espinhosa. Jornais de 22 de agosto de 1942 anunciavam que o Brasil havia entrado na Segunda Guerra Mundial. Alguns artigos mais ásperos indicavam que a caça de inimigos deveria começar aqui primeiro. Recortes e nacos indicavam atos públicos de revolta, multidões enfurecidas haviam apedrejado casas e estabelecimentos cujos donos eram alemães... “Quem fala a língua do inimigo será perseguido e assassinado”, leram os olhos do pai que já não se mostrava tão eufórico com as descobertas. Tomou entre as mãos panfletos intitulados e distribuídos pelo Serviço de Prevenção contra a Quinta-coluna, estes mostravam como detectar traidores e que medidas tomar. Agora, Antônio era todo apreensão. Observou a foto da família sisuda. “Que fim teriam tido eles?” Quando garoto foi educado ao preconceito, à xenofobia. Nunca depreendeu tão claramente a razão. Inimigo! Não teria sido simples preconceito, era o inimigo! Ódio genuíno.

Então, algo lhe despertou a atenção. Era como se estivesse sendo observado. Um ressonar leve e rápido. Barulho de pés suaves tocando a madeira do sótão. Subiu ligeiro as escadas. A porta do quarto estava apenas encostada. Empurrou-a. Entrou em meio à completa escuridão. No fundo, uma extensa janela de vidro. Embora a lua alta, o breu prevalecia fabulosamente. Tateando, buscou algo. Estupefato, comtemplava cautelosamente o quarto. Havia ali um odor que não reconhecia. Não era de mofo ou de casa fechada. Disso estava certo. Tropeçou em alguns móveis aleatoriamente espalhados pelo cômodo. Era como se tivesse havido uma luta feroz e alguém, tentando escapar de alguma ameaça iminente, fora derrubando tudo ao seu redor. Ninguém na sala. Nem um som. Foi na direção da porta, sentiu o chão gosmento, viu marcas de sangue. E ossos de vários tamanhos. Como se houvessem sido lavados. Ou, então, descarnados até o último resquício de carne desaparecer. O coração dispara e o pânico assume seu lugar. “Ossos, mald...”, não conseguiu completar o pensamento. Um ruído fez voltar-se e um grito de pavor travou-lhe a garganta. O cão era enorme. Tinha pelagem castanha de capa preta. Um pastor-alemão. Nele, se distinguiam os olhos, claros e frios. O cachorro vigiava como se a Antônio coubesse a iniciativa. E nessa expectativa, cuidaram-se por alguns segundos. O homem então correu e rompeu contra a janela de vidro. Uma queda daquela altura seria naturalmente catastrófica. Ele bateu com as costas, braços e cabeça. Hesitou um bom tempo em levantar. Sentia dores insuportáveis na perna. Talvez quebrada. O corpo dolorido e a confusão de pensamentos o deixaram moroso. Tinha dificuldades em permanecer em pé. Jogou-se ao chão. Urrou! Do meio do matagal viu um homem entrando no porão. O pavor dominou Antônio que assustado e mancando correu para circundar a casa, tinha de proteger seus filhos...

No caminho, um galpão. As portas cerradas abriram-se facilmente. Pelas aberturas um resquício de luz invadiu o armazém. Mas, o que incomodava não era a falta de luz... E, sim, o fedor de podridão que penetrou por suas narinas, por sua boca, por seus poros. Aquilo o embebeu inteiramente. Sentiu náusea. O vômito chegou-lhe à boca. Cambaleou. Ajoelhou-se e baixou a cabeça, encostando-a no chão. Ao se recobrar minimamente, viu sobre a mesa de madeira cheia de ferramentas o resto de um corpo. Um corpo do qual não mais se distinguia o sexo tal a perversidade. Faltavam-lhe pedaços. Grotesco. O sangue, coagulado, espalhava-se pelo chão. Aterrorizado com a descoberta desapareceu dali tomado pela cólera – seus olhos, num lance ágil, contemplaram um anel.

Luiz e Ana perambulavam pela gelada casa. Já haviam descoberto cozinha, sala, dispensa e haviam desembocado em dois quartos grandes. O ar dentro dos aposentos era quente e fedorento. Ana, por instantes, tentava prender a respiração para não sentir aquele cheiro, mas, momentos depois, tinha que respirar e o fazia com força para recuperar novamente o fôlego. Então, sentia o cheiro forte e azedo, gradativamente começou a passar mal. Sentiu-se enjoada. Tinha certeza de que iria vomitar. Jogou-se de joelhos. O vomito saiu amarelo e aguado. Sempre que isso acontecia ficava muito triste. Implorou pela mãe. Sem resposta, gritou por uma ajuda qualquer que não veio. Os pais não apareceram e o irmão havia sumido dali de repente. Limpou-se com a manga da blusa e sentou-se encostada na parede gelada. Ali se deparou com fragmentos velhos do que um dia fora jornal. Em letras grandes, palavras que despertavam o pavor foram lidas em voz alta: “Homens sepultados vivos (16/01); Terrorismo e matança na Iugoslávia (06/02); Cremados vivos (12/03); O vampiro alemão chupa o sangue das crianças polonesas.”.

Ofegante e desesperado Antônio correu. A casa parecia imensamente maior ao tentar contorná-la. “Deus! Oh Deus!”, lamentava, quase sem voz, apenas rouquidão. Felizmente, a dor psicológica superava a física. Seus olhos ficaram pequenos. Pressionou-os em direção ao interior pouco iluminado da casa: não havia ninguém. “Maldito cão! Meus filhos!”, babava as palavras ao pronunciá-las. Desesperado, gritou. Gritou o mais alto que pode. Palavras ininteligíveis. O que queria dizer estava implícito no seu urrar desesperador. Caiu, já sem forças, de joelhos. “Minhas crianças...”, sussurrou melancolicamente na direção do assoalho ruidoso, como se quisesse falar com a casa. “Maldita casa!”, esbravejou ao socar a madeira. Numa oração de misericórdia começou a implorar pela vida dos filhos. Pedia ao assoalho que ouvisse, que atendesse. Tal exigência se findou numa tétrica súplica de beijos. Machucados os lábios, escorreu a língua entre os vãos do assoalho, delirava. De súbito, um grito!

Uma exclamação aguda do sótão. Despontou cambaleando e tropeçando pelas escadas. Ao chegar ao topo, a porta trancada, e gritos desesperados de horror. Jogou-se contra a porta. Deu murros com a testa, braços e pernas. Ficou zonzo. Então gritou! Gritou! E gritou! Experimentou o sangue morno escorrendo pelo seu rosto, e tudo ficou ausente. Durante algum tempo ele ainda ouviu os berros que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais distantes e abafados, como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o sono, lançou um último olhar por debaixo da porta. Um derradeiro grito! Nem um ouvido humano escutou qualquer chamado.

Os nervos enrijecidos de Ana pulsaram. Ouviam-se barulhos alucinantes e uivos caninos perto dali. Mantinha a cabeça entre as pernas. Os olhos suficientemente cerrados, mas não o bastante. Notou a vela se extinguindo e uma luz sob o assoalho. Alguém marchava de um lado para o outro. Vestida pelo horror finalmente regurgitou: “Onde estão todos? Onde?”. Não tolerava o movimento do seu corpo - O medo. Não continha as lágrimas da sua face – Os olhos. Estática. Músculos e nervos enrijecem como que involuntariamente. Ana pressionou forçosamente os olhos fechados. Prometeu para si que só abriria ao ouvir a voz familiar. Lágrimas escorreram, daqueles olhos que não queriam ver, e as mãos cheias de unhas, inúmeras delas, ficaram na pele pálida da menina cega. No escuro, não sentiu nada.

Acordando percebeu que era arrastado pelas pernas. Puxado por alguém. Experimentava agonia sufocante e estava agora encoberto de sangue. Afastando-se da casa, sonolento, - fantasiou ter visto sua querida Ana. Parecia estar em uma roda de carroça ou semelhante... Amarravam suas mãos com pressa. Desesperou-se. “Deixem-nos em paz!”, meio dormente, babou miseravelmente. Então foi vencido por Hipnos.

Em seu universo negro foi ostentada entre os braços. Espernear? Esperneou. Gritar? Gritou. Ver? Não viu. Teve medo. Escolheu ficar no seu mundo escuro a assistir algo. Foi carregada, ouviu a marcha larga e ruidosa. O bafo quente e fedorento. Energicamente, a criatura, colocou-a em cima de algo e começou a amarrá-la. Espremeu com vigor os olhinhos, pois a vontade de abri-los aumentara. Então, totalmente presa, sentiu-se inexplicavelmente confortável. Cômoda o suficiente para abrir os olhos... Temerosa, aos poucos foi abrindo. Permanecia junto da casa. Logo ao lado. Amarrada a uma roda de carroça. Não havia igualmente ninguém ali. O carro à distância e uns trovões no céu, só isso. Dentro de si um vazio enorme por não estar junto do irmão. Não queria saber o que estava acontecendo. Queria simplesmente voltar pra casa. O choro dominou-a de brusco. Tentou desvencilhar-se das cordas. Impossível. Em um dos cantos da casa - um velho com uma foice. Escravizados, os olhos, fecharam-se novamente. Começou a rezar, mas não pode continuar. O temor era tão grande que não podia lembrar-se dos versos. Ela não sabia, contudo o que lhe iria acontecer era comum em um tempo muito antigo, num lugar chamado Europa do qual pouco tinha ouvido falar. Embora parecesse improvável, outras meninas já haviam tido tal experiência. Ela já fora amarrada e agora teria diversos ossos metodicamente quebrados por um enorme martelo. O processo seria repetido diversas vezes, mas sem atingir órgãos vitais. O homem teria o especial cuidado de não desferir golpes mortais. Sua perícia seria avaliada da seguinte forma: se os golpes quebrassem os ossos e não rasgassem a pele ele seria aplaudido pela multidão. Entretanto, não haveria multidão. Não haveria avaliador... O objetivo era que não existissem fraturas expostas nem sangue. Quando os ossos da menina estivessem todos quebrados, os seus membros seriam enrolados nas extremidades da roda. A roda seria então erguida horizontalmente e colocada numa estaca onde a vítima agonizante, esperaria a morte.

Antônio acordou sentindo a cabeça pesada, estava de cabeça pra baixo. Estava novamente naquele lugar malcheiroso e horrendo. Uma serra estava sendo afiada. Não enxergava muito bem. Porém, ouvia o instrumento ganhando fio. O desespero tomou conta de si. Sabia o que esperar. Gritou com o pouco de força que ainda tinha. Nada. Queria ouvir uma razão, um simples por quê. Não teve um gesto sequer como resultado. Sentia a cabeça pesada, o sangue. Dor nas pernas devido ao empuxo e aos fortes nós daquelas cordas. Seus pés estavam afastados. Havia sido colocado nessa posição, pois assim sendo perderia pouco sangue, o cérebro ficaria bastante oxigenado, o que lhe permitiria uma morte demorada e com muito sofrimento. Só desmaiaria quando o serrote estivesse no umbigo, todavia quando acontecesse, seria pra sempre.

“Assim se distinguem as almas – as falsas das verdadeiras... Penetro um ninho de palavras... E distribuo dádivas aos bons e aos justos... E minhas mágicas palavras lhe trazem bênçãos e riquezas...”¹, sussurrava o homem. Fazia nós em uma corda que, aos poucos, tomava a forma oval. Uma forca improvisada. Quem era? Um filho, um silenciado, um solitário em um quadro de família, um sobrevivente, um eremita por obrigação, um inexistente, um nativo à força.

Decreto-Lei nº 4.166, de 11 de Março de 1942

Art. 1º Os bens e direitos dos súditos alemães, japoneses e italianos, pessoas físicas ou jurídicas, respondem pelo prejuízo que, para, os bens e direitos do Estado Brasileiro, e para a vida, os bens e os direitos das pessoas físicas ou jurídicas brasileiras, domiciliadas ou residentes no Brasil, resultaram, ou resultarem, de atos de agressão praticados pela Alemanha, pelo Japão ou pela Itália.

Getúlio Vargas

¹ O versos são de autoria de Aldof Hitler.