ELISEU

Todos os útimos parágrafos deste conto, com exceção do capítulo V, são originalmente escritos em itálico.

Essa formatação é perdida no ato de submeter o texto no site, mas é importante destacar este fato para melhor compreensão da história.

I

O despertador soou mais uma vez. Naturalmente. Como deveria soar sempre, até o fim dos tempos. Aguardado durante toda a noite, a expectativa de seu toque parecia manter toda uma enorme engrenagem de vontade invisível composta por átomos, células, órgãos vitais, funcionando perfeitamente por baixo da carcaça externa de pele, gordura e músculos. O som, o tilintar eletrônico, trazendo diariamente a paz aguardada durante a noite de sono, esse intervalo obrigatório entre jornadas de conquistas diárias. Algo que, segundo Eliseu, poderia ser definitivamente abolido em algum futuro, extinguir-se com a evolução da espécie humana provando que continua o passo adiante, na direção da maquina perfeita.

O sono é algo completamente dispensável, ausente de sentido. As seis horas que passa com os olhos cerrados servem apenas para sonhar com as dezoito que estará desperto. Orgulha-se mesmo da quantidade de idéias que espocam durante o sono e incrivelmente, muitas delas, tornam-se realidade. Trata de fazer com que tudo que “pensou” durante a noite tenha alguma valia no trabalho. Já demitiu funcionários, iniciou novos projetos, convocou reuniões, tudo isso embalado por noites de sonhos produtivos. Não acreditava em médicos, tampouco em reportagens, especialmente quando o assunto tangenciava essa história cansativa: dormir e relaxar mais. Acaba-se perdendo tempo precioso, útil. Diretores não dormem “além da conta” ou mais do que os próprios funcionários, essa é a grande verdade. Não configuraria, agindo assim, exemplo a ser seguido – de forma alguma. Ademais, ainda não era momento para despender tempo maior com a família, algo que poderia ser sinônimo de ganhos menores. Conforto. Abundância. Prioridades que sempre manteve e no fundo sabia que era expectativa a ser cumprida. Como explicar à esposa um carro novo no vizinho, maior, mais moderno e luxuoso? E o telefone celular da filha? Não era realmente o último modelo?

A maquininha de fazer barulho na hora certa ainda tocou novamente antes de Eliseu, jogando o braço para o lado instintiva e automaticamente, acalmá-la de uma vez por todas naquela manhã. Cinco horas. A mulher dormia profundamente ao lado e no outro quarto, a filha despertaria somente em duas horas. Estava mesmo crescida ou era apenas impressão? É incrível como a criançada tem o poder de nos surpreender de quando em vez, parecem crescer mais depressa do que o tempo é capaz de escoar. Seis? Às vezes esquecia, mas Lia contava seis anos agora. Lembrava-se de não ter podido comparecer em quatro de seus aniversários, trabalhando duro. Mas recordava-se perfeitamente de todos os presentes que comprara - cada ano algo melhor - surpreendendo toda a gente. Surpreendia até mesmo a filha. Essa era a grande idéia. Foram festas bonitas, não poupou um centavo para que isto acontecesse e pretendia em seu próximo aniversário poder comparecer. Esforçar-se-ia de verdade. Sete de Abril!

Agora, nova batalha. O soldado sorria ao encarar o desafio. A adrenalina de um novo dia na empresa fervia o sangue do guerreiro. Era jovem, haveria de existir tempo para outras coisas no futuro.

Nem percebera, que há três dias atrás, tentando impressioná-lo, a esposa cortara os cabelos, pintando-os de louro.

Deste ponto, em menos de 90 minutos adiante, Eliseu estará morto. E nada do que aconteça poderá alterar seu destino.

II

Eliseu rodopiou o corpo postando-se sentado na cama. Com as pernas para o lado de fora, o cérebro já havia dado o comando para ficar de pé, quando ouviu a esposa - algo raríssimo de acontecer àquela hora. Ou em qualquer outra.

- Tive um sonho estranho – Ela falou sem se voltar. Em tom baixo e deitada de costas para o marido. Agia como se não houvesse outra pessoa no quarto. Eliseu imaginou que ela deveria estar de olhos fechados.

- Um sonho querida?

- Um sonho estranho.

- Pode voltar a dormir.

- Tive um sonho estranho – Repetiu e agora lançou o braço pra trás, tentando, talvez, alcançar o marido. A mão roçou a perna de Eliseu. Incerta, quase trêmula.

- Está tudo bem. Pode acreditar.

- Que dia é hoje?

- Quarta-feira.

- Não é Domingo? Não é Sábado? – Janaína virou o corpo na cama. Mantinha os olhos cerrados. Parecia estar naquele lugar etéreo, naquele estranho mundo habitado por seres que estão entre o sono e a vigília.

- Quarta-feira – Eliseu repetiu. Tornava-se ansioso. Com cuidado, para não despertá-la de vez, passou a coberta por cima do corpo da mulher, num gesto que imitava um toureiro. Olhou o relógio preso ao pulso. Dirigiu-se ao banheiro. Barbeou-se. Após o banho, voltou ao quarto com metade da roupa vestida. Sempre terminava de se arranjar no quarto diante do espelho. Sem barulho para não incomodar Janaína. Atou a gravata impecavelmente, por fim ia saindo do quarto, deixando a mulher sob cobertas, quando escutou:

- Você me dizia que era Sábado. Ou Domingo. Pedia que o abraçasse, pois era Sábado e devíamos ficar abraçados. Disse que devíamos ficar abraçados. Repetiu várias vezes. Eu não conseguia abraçá-lo. Sempre que tentava, você dava um passo atrás. E repetia que deveríamos ficar abraçados. Seu rosto estava diferente. De alguma forma, mudado. Acho que você tinha medo. Eu também fiquei com medo. Sempre dava um passo atrás... – Com olhos cerrados, Janaína falava em sussurros baixinhos e parecia dormitar novamente. A voz foi esmaecendo. Tornou-se uma pequena lufada de brisa, desaparecendo...

Eliseu fitou a esposa sob o lençol mantendo a mão postada no nó da gravata. Algo mudara na aparência dela. Não percebia o quê. Era Quarta-feira e deveria apressar-se. Cinco e trinta da manhã. Saiu do quarto em direção ao corredor. Quando pôs um pé para fora, ouviu a voz da mulher, baixinho, entre sonhos etéreos:

- Não devemos ficar abraçados? Hoje não é Sábado? Fique onde está, por favor. Não há o que temer, amor...

A coisa estalou. Balançou um pouco, depois de dar o primeiro tranco. Olhou assustado à sua volta. Recebeu olhares inquisidores de volta. Uma das pessoas sorriu como que achando graça de sua reação. Mas a coisa havia de fato dado um tranco diferente. E Eliseu teve certeza. Existia um cheiro que aumentava rápido, recendia como incenso. Um estranho incenso.

III

Ainda centrando o nó da gravata, com cuidado, para que nada maculasse sua aparência, atravessou depressa o longo corredor. Dobrou à direita, iniciando a descida da escada de corrimãos largos em madeira escura, um semi-caracol que terminava no centro da sala. Estacou em meia parada, retornou dois passos acima. Algo chamou-lhe a atenção no corredor. Como quando passamos diante de uma casa diariamente ao voltar do trabalho e num belo dia ela foi repintada. Normalmente faria esse pequeno trajeto no interior de casa mecanicamente, mas dessa vez achou até graça da atitude incomum. Alguma coisa estava realmente diferente e decidiu por conferir. Subiu de volta ao andar superior, caminhando direto até a porta do quarto da filha. Lia havia unido duas folhas de papel que arrancara de seu caderno de desenhos com fita adesiva, construindo, assim, um longo painel onde desenhara uma bela bailarina em suas roupas coloridas, esticando o corpo num passo na pontinha dos pés. Atara o singelo resultado contra a madeira envernizada da porta do quarto, usando da mesma fita adesiva. A lápis de cera verde, logo abaixo, escrevera em sua caligrafia arredondada: “Papai, não esqueça minha grande apresentassão hoje de manhã”. Eliseu sorriu. O resultado estava de fato gracioso e a grafia da palavra “apresentação”, especialmente simpática. Lembrou de um comentário da menina sobre o balé no colégio (ou teria sido Janaína a fazê-lo?) onde a turma 51, após o ano de ensaios, faria a grande estréia. Destaque para Lia, como a principal bailarina.

Nunca havia visto a filha dançar. Os horários nunca coincidem, como poderia estar em plena quarta-feira, nove horas da manhã na escola? Lembrou da visita que deveria fazer a um cliente importante, justo hoje. Entreabriu a porta do quarto. Com a calma que só o sono das crianças possui, Lia enroscava-se no edredom estampado, serena como uma tarde à beira mar. Tirou do bolso a caneta e escreveu, em mal traçados rabiscos no papel desenhado e preso na porta por fita adesiva: “Jan, meu bem, não esquece a máquina digital. Tire várias fotos. De qualquer maneira, farei um esforço para estar lá”.

Uma centelha elétrica de alguns milionésimos de segundo, na porção mais profunda da mente, uma sinapse inesperada funcionando contra o fluxo normal da corrente elétrica de seu pensamento cotidiano, tentou convencê-lo de que deveria estar presente, nove horas da manhã de quarta-feira, no colégio “Monte Azul” e ver Lia dançar, como no desenho colado à porta. Mas um pequenino átomo pensando diferente não conseguiu dobrar sua vontade. Encostou a porta deixando a menina num sono sábio e finalmente, dessa vez, desceu as escadas. Ainda lembrou que podia ter dado um beijinho na testa dela. Um beijinho de boa sorte. Mas estava atrasado.

Eliseu percebeu que o movimento era de fato diferente. Os outros não pareciam notar nada de anormal por enquanto. Comentou algo sobre o cheiro, que insistia. Não lhe deram muita atenção. Sentia-se oprimido, o ar faltou-lhe de repente, molhando a testa com suor gelado. O segundo tranco foi mais forte, fazendo seu coração disparar, arrancando sorrisos e comentários ao redor. De seu bolso traseiro, tirou um lenço que usou para secar a testa. Não gostaria de admitir, mas tinha medo.

IV

- Preciso falar com você.

- Mas isso não é hora. Sabe que horas são por acaso?

- Pra falar a verdade, não. Nem sei mesmo que horas são.

- Faltam quinze minutos para as seis horas da manhã. Tenho uma reunião em menos de uma hora. Algo me diz que o dia hoje não começou bem de qualquer maneira. Detesto me atrasar. Não acha meio cedo pra telefonar assim?

- Aconteceu.

- Não me espanta.

- Você me espanta.

- Não acha que aconteceria mesmo? Em breve? Logo? Ou até que demorasse.

- Precisava falar com alguém. Preciso te ver. Conversar.

-Está de brincadeira. Agora?

- Não de brincadeira, apenas sozinho. Ela se mandou, entende isso, caralho?

- Tem que ser agora?

- Não sei o que fazer... A máquina tem que continuar a funcionar, não é isso? Acho que é isso que você diria de qualquer maneira, não é?

- Não... Eu não lhe diria isso, mas de qualquer forma, agora é simplesmente impossível. O que quer que eu faça? Mande tudo pra puta que pariu?

- Não sei o que fazer.

- Passo aí à noite, se conseguir sair antes das dez. O mundo não vai acabar até lá, pode acreditar.

O telefone emudeceu do outro lado da linha. Não manteve Nem mesmo aquele apito característico de quando temos uma linha telefônica interrompida colada ao ouvido. Eliseu enfiou o aparelho celular no bolso, arrancou lá de dentro as chaves do carro, abriu a porta, sentou-se ao volante, girou a ignição e partiu. Olhou para o relógio que anunciava cinco horas e cinqüenta minutos. Tomou direção Norte, hoje não iria ao escritório pela manhã. Havia a visita ao importante cliente. Partido alto. Depois de fechar negócio, almoçariam juntos, selando a parceria. Num primeiro sinal vermelho, freou devagar, deixando o carro escorregar lentamente até parar antes da faixa branca. Desde a hora em que meteu o pé no freio, até o momento em que o automóvel estacou no sinal, pensou no irmão. A voz ao telefone estava mesmo aflita. Não ligaria àquela hora se não estivesse bastante angustiado. Mas era uma separação anunciada, aconteceria de qualquer maneira, em algum tempo. Como a morte do sujeito naquele livro de Garcia Márquez. Depois conversariam, tentaria acalmá-lo. O irmão andava nervoso e depois que perdeu o emprego, as coisas só pioraram. Agora pareciam culminar na maldita separação inevitável. “Os problemas parecem andar em grupo”, lembrou da avó, com o dedo a balançar adiante e atrás, quando ambos, Eliseu e o irmão, foram reprovados nos exames finais num ano qualquer perdido no tempo.

Mas esforçar-se-ia de verdade para ajudar à noite. Após o expediente.

Não lembrou mais do irmão, depois que o sinal abriu.

Um som arranhado incomodou o ouvido, causando arrepios na pele atrás da nuca. A coisa estacou. Parou definitivamente. Desta feita, todos sentiram. Parou com um tranco muito mais forte e ninguém pareceu achar graça desta vez. O cheiro aumentou. Muito. Forte como fogueira no inverno. Forte como fogo. Quente como fogo. A fumaça invadiu o ambiente, não sorrateira, como uma naja que rasteja, mas decidida e inapelavelmente. A confusão no pequeno espaço instalou-se num átimo, sorrisos abandonando lábios. Eliseu, olhando diretamente abaixo, percebeu a fumaça que tomava o que antes era ocupado por ar fresco. Temia uma morte ruim (existem mortes boas?), apavorava-o pequenos espaços. O homem das grandes conquistas apequenava-se diante da situação. Não poderia estar acontecendo. Simplesmente negava-se a crer. Pôde ouvir, ao longe muitos gritos. A coisa emperrara completamente, e ao longe, de algum lugar, gritos de pavor, ordens incompletas, pânico. Ao redor, o quadro não era muito diferente, pelo contrário. Todos deram conta da realidade. A fumaça, impertinente, apoderou-se de todo espaço, roubando para si oxigênio precioso. Amaldiçoou a tudo e a todos, clamando aos berros por socorro. A confusão mental cresceu com a claustrofobia e a falta de ar. A realidade abatera-se sobre Eliseu, sobre os outros. “Acho que você tinha medo. Eu também fiquei com medo”. As palavras da esposa explodiram em sua mente. Nada poderia ser tão assustador, nunca teve pesadelos, jamais imaginou como se parecem...

V

Trânsito ruim, muitas retenções, a coisa não fluía, mesmo àquela hora. Depois de dirigir por 20 minutos, Eliseu dobrou à direita sinalizando e adentrou à rua Magnólia. Sete quarteirões adiante percebeu o estacionamento da A&R Colchões, os próximos grandes parceiros comerciais. Quase os perdeu para a concorrência. Durante um período, que se aproximou de duas semanas, a A&R Colchões esteve praticamente decidida a assinar com os inescrupulosos da Trama Computação. Intervenções certeiras do Diretor Eliseu (e alguns agrados dirigidos às pessoas certas, nos momentos adequados) colocaram novamente o pessoal da empresa de colchões tendentes a assinar, finalmente, o contrato milionário com a turma do Eliseu. Escolheu uma boa vaga onde largou quase displicentemente o automóvel. Registrou-se na portaria anunciando a chegada para um atendente sonolento como o calor do deserto. Pensou que o anúncio de seu nome deve ter feito algo retumbar lá no décimo segundo andar. “Eliseu chegara. Ajeitem-se em seus lugares...”.

Caminhou em passos certeiros até o grande saguão onde postou-se em sentido, após ter pressionado o botão, convocando o elevador que vinha lá do alto. Mais três cavalheiros juntaram-se a ele, iam chegando com seus carros, parqueando, registravam-se na portaria e ficavam por ali, trocando assuntos perdidos, sem interesse. Não lembrava de nenhum deles, não os conhecia, decerto. Esperavam o elevador no grande saguão junto com Eliseu, mas procuravam outro destino.

A campainha acima de suas cabeças tilintou, anunciando a chegada do elevador. Um barulho rouco veio de algum lugar, talvez lá de dentro. A campainha soou novamente e novamente. As portas demoraram a abrir e quando o fizeram, pareciam vacilantes. Um dos cavalheiros entrou, seguido logo pelos outros dois. Eliseu entrou por último, pressionando o botão onde o número 12 aparecia em vermelho. Comentou algo com os cavalheiros sobre um cheiro estranho, talvez fumaça, no interior do elevador, mas nenhum deles pareceu perceber nada diferente. As portas começaram a fechar, vacilantes, um pequeno tranco foi sentido por todos os passageiros. Eliseu olhou para o relógio, obediente em seu pulso: seis e trinta. Em ponto. Apesar de tudo não se atrasara, nunca se atrasava. Orgulhoso, centrou novamente o nó da gravata de seda com a presteza de um mordomo.

As portas finalmente se fecharam. E nunca mais se abriram.

Marcelo Santoro
Enviado por Marcelo Santoro em 05/08/2005
Código do texto: T40530