Os terríveis gemidos de Madame Bouchamp

Por dez longos anos me dediquei ao estudo da medicina numa das mais conceituadas escolas desse país. Não foram poucas as noites em que, debruçado sobre os livros e sob uma luz débil, estraguei os olhos na leitura de páginas obscuras, nem foram poucas as horas que passei no incansável estudo do preparo das fórmulas curativas e diagnósticos de enfermidades. Cheguei, ouso dizer, a gozar de certa fama entre os médicos da cidade de *** e atribuo a essa boa fama o fato de ter sido contratado por Madame Bouchamp para ser seu médico de confiança. A velha matriarca era a derradeira sobrevivente de seu clã, sobrevivera aos maridos, aos filhos, aos netos e agora dedicava seu tempo aos gatos, que infestavam a gigantesca mansão solitária onde a rica senhora morava.

De fato, houve uma insistência veemente por parte da velha para que eu me mudasse, com todos os meus pertences, para as dependências de sua lúgubre morada.

- Venha, Doutor, mude-se! Não aceitarei uma recusa! - dizia ela, tomando-me pelo braço - É sua obrigação moral cuidar de uma pobre velha! Queres então deixar-me convalescer junto a um bando de gatos? Sua consciência não permitirá! Uma pobre velha!

Todo mundo sabia, é claro, que Madame Bouchamp era velha, mas não pobre e possuía uma fortuna tão grande quanto sua idade. A casa, por outro lado, embora imensa, não parecia desfrutar dos benefícios que o dinheiro pode trazer; tinha um estilo gótico bem antigo e descuidado, repleto de tábuas soltas e rangentes, telhados despencando e galhos secos. O exterior da causa me causava arrepios, mas a velha, de alguma forma, parecia não se importar com o decaimento da propriedade, afinal, era evidente que ali não haviam cuidados. O interior era tão repugnante quando o exterior. Repleta de cantos escuros, a casa tinha diversas tábuas velhas e soltas no assoalho, sempre estalante. Se houvesse atenção, era possível ouvir os ratos que se aninhavam por entre as tábuas.

Não foi, confesso, a insistência da velha que me comoveu, mas, cair em suas graças era uma oportunidade que eu não poderia recusar. Foi por isso que ignorei toda a estranheza que me causavam os hábitos de Madame Bouchamp e aceitei sua proposta. A velha, afinal, gozava de boa saúde apesar da idade e não deveria depender tanto assim de meus serviços.

Logo após a mudança, entretanto, os termos que a velha me apresentara em contrato causaram-me um desgosto profundo. Não me era permitido deixar a casa e, visto que não haviam criados, eu deveria assumir algumas tarefas que incluíam a limpeza básica, preparar-lhe os alimentos e uma miríade de pequenas tarefas indignas às quais só me sujeitei porque o pagamento, que me recuso a revelar aqui, seria suficiente para demover mesmo o mais orgulhoso dos homens.

Além disso, havia os gatos – os malditos gatos - que se amontoavam às centenas pelos cômodos da casa e eram a paixão da velha. Eu não os suportava, mas a velha os amava de modo repugnante e devotado, pregando-lhes beijos e acariciando-os. Havia um, entretanto, que era seu preferido; até a voz enrouquecida de Madame Bouchamp tomava um ar doce quando ela, abaixando-se agilmente, apanhava no emaranhado de bichos um enorme gato preto e cego de um olho chamado Lúcifer.

Lúcifer era o único que tinha permissão de subir ao colo da velha quando lhe aprouvesse, o único que recebia permissão de subir aos sofás e sentar-se, imponente, enquanto observava o movimento da casa. Se algum dos outros felinos ousasse, como Lúcifer, subir aos sofás, a velha, com potentes bengaladas, os expulsava, ou o próprio Lúcifer, com miados infernais e arrepiando as costas fazia-os fugir em disparada.

Para meu grande infortúnio, apenas algumas semanas depois de minha mudança, a saúde inabalável de Madame Bouchamp sofreu um revés terrível e a velha, como se todos os seus anos de vida subitamente lhe caíssem pesados como chumbo sobre os ombros, degenerou-se de forma inacreditável.

As faces de Madame Bouchamp, outrora rosadas, enrugaram-se; os seus olhos vivos enterraram-se nas órbitas, os dentes de branco perolado - que ainda conservava – amarelaram-se e começaram a cair. A tal ponto chegou a saúde da velha que a convalescença prendeu-a ao leito.

Mesmo acamada e doente, a única preocupação que a velha demonstrava era com seus gatos; mais preci-samente, com seu gato favorito:

- Doutor, por acaso o senhor não viu o meu gatinho? Oh, meu pobre Lúcifer... tão assustado deve estar... meu pobre bichano...

E, partam-me os raios, eu daria tesouros para não ver novamente aquele maldito bicho, mas, de fato, não havia sinal dele em parte alguma. Eu mal notara sua ausência, mas Madame Bouchamp, tomada de um pesar profundo, passava as horas em lamentos:

- Já se fazem três dias, Doutor! Onde terá ido o meu Lúcifer?

Toda esta agitação emocional não fazia bem à velha e eu a respondia, tomando-lhe o fraco pulso:

- Madame Bouchamp, sua saúde! A senhora não deve se exaltar dessa maneira! O gato, de certo, está a vadiar pela vizinhança e logo retorna. Descanse! Descanse! - mas, em vão, com uma voz cada vez mais tênue e debaixo de lágrimas, Madame Bouchamp definhava:

- Ah, meu gato... meu pobre Lúcifer...

Apesar de meus incessantes esforços, mesmo aplicando-lhe as fórmulas mais potentes, Madame Bou-champ piorava a cada dia. Quem sabe o coração triste da velha, magoado pelo desaparecimento de sua mascote favorita, acabara por destruir de vez o seu espírito. De qualquer forma, o fato é que em apenas dois dias a forte Madame Bouchamp reduzira-se a uma carcaça e eu, por minha vez, estava fatigado, des-grenhado e faminto.

Li, incessantemente, nesses dois dias, centenas de páginas do Le Volume Illustré de Médecine, realizei sangrias diversas vezes, mesmo quando já não havia naquelas veias ressequidas sangue a verter; emplastros, infusões, chás, misturas e banhos de nada adiantavam.

Como todos os meus esforços científicos falhavam, comecei a procurar no ambiente uma possível explica-ção à enfermidade da velha. Decidi me livrar, de uma vez por todas, de todos os gatos que infestavam a casa. Quem sabe, alguma moléstia advinda dos animais, de sua respiração ou de seus excrementos era o que precipitara sobre Madame Bouchamp a sua terrível doença.

Ignorei os olhares furiosos que a carcaça de Madame Bouchamp me lançava enquanto eu, juntando nas mãos dezenas de gatos, atirava-os pelas janelas ou botava-os a correr com golpes de porrete.

- Entenda, Madame, é por sua saúde! – dizia eu, enquanto expulsava mais um bando de gatos.

Embora, certamente, a esse ponto, a velha indubitavelmente me odiasse por dar fim a seus bichos, ne-nhum homem na face da terra pode duvidar de minha dedicação. Já passava da meia-noite quando, debruçado sobre a mesa, ainda realizando pesquisas em minhas anotações, ouvi um gemido.

Tratava-se de um gemido longo, agudo, cheio de agonia e que ecoou pelos aposentos da antiga casa como se fosse amplificado pelas paredes.

Precipitei-me pelos corredores em direção ao quarto de Madame Bouchamp onde seu corpo, ainda imóvel e de olhos abertos, fixos no teto, permanecia deitado, iluminado por um candelabro:

- Madame, tudo bem? – perguntei ofegante.

O corpo, é claro, não podia me responder. Tomei-lhe o pulso... ainda estava viva e quente. Aproximei os ouvidos em sua boca e escutei um leve vapor de respiração. Antes de sair do quarto, contudo, outro gemido, dessa vez mais repleto de pesar, fez-se ouvir, causando-me um espasmo de terror.

Levei não mais que um segundo para me recompor e tomei-lhe o pulso novamente:

- Madame? Madame?

Sem resposta...

Permaneci ali mais alguns minutos, mas, como o estado da velha não se alterara, resolvi retornar aos estu-dos. No meio do caminho, entretanto, outro gemido fez-me retornar rapidamente e, sob os umbrais do quarto, observei ainda o corpo imóvel, de lábios semiabertos e pálidos que soltou outro gemido, semelhante a um “ai” de agonia.

Como médico, obviamente já estava familiarizado às mazelas do sofrimento e vira a morte em tantas ma-neiras que seria difícil descrever, mas, não sei explicar bem o motivo, se por falta de sono, por esgotamento, ou pelas sombras dessa velha mansão, cada novo gemido excitava-me o espírito e fazia com que meu coração se acelerasse num pavor irracional.

Foi aí que, de certa forma, também eu tornei-me um miserável. Não havia um só momento da noite ou do dia em que os pavorosos gemidos não ecoassem pela casa. Eram “ais” semelhantes a uivos chorosos que penetravam-me a mente nos momentos em que eu tentava, em vão, concentrar-me nos estudos. O meu corpo, abalado pelo cansaço, já não conseguia o mais breve repouso, pois, nos primeiros segundos de sono, outro gemido me despertava.

Por fim, mesmo que eu tapasse os ouvidos, aquele som pavoroso se havia infiltrado em meu espírito e permanecia, como um eco, a se repetir na minha mente. Fugir? Simplesmente sair da casa? Se eu o fizesse, se simplesmente abandonasse a velha à morte, seria preso e desgraçado pelas amarras do contrato que assinara.

Comecei, então, a sentir que enlouquecia. Permaneci durante horas a fio, de pé à porta de Madame Bou-champ observando seu corpo imóvel e lívido, de boca semiaberta, emitindo gemidos incessantes. Perambulei pela casa, com as mãos nos ouvidos, enquanto cada “ai” me levava mais perto de um colapso.

A um certo ponto, depois de mais dois dias, eu já não tinha forças para procurar qualquer cura que fosse e desejava com fervor que a carcaça de Madame Bouchamp expirasse definitivamente. Tornara-se meu passatempo observar-lhe o peito murcho e torcer para que cada espasmo de respiração fosse o derradeiro, mas a verdade é que as horas e os dias se passavam lentamente e algum tipo de força mantinha aquele semi-cadáver preso à vida.

No terceiro dia, logo que o relógio bateu seis horas da noite e as sombras começaram a cair sobre a man-são, todos os gemidos cessaram. Todos os sons, até mesmo das tábuas rangentes da velha casa, calaram-se. Eu, deitado em minha cama, fiz o sinal da cruz:

- Enfim...

Reuni todas as forças e me dirigi ao quarto de Madame Bouchamp; ela não se mexera, ainda tinha os lábios abertos e fitava o teto. Não pude conter um suspiro, talvez de pena, ou de alívio e tomei um dos lençóis para cobrir o cadáver. Ao me aproximar, entretanto, como que a escarnecer de mim, um novo gemido, dessa vez mais alto, fez com que eu proferisse um grito de pavor. O seu peito velho se comprimia e inflava, denunciando, ainda, uma respiração.

Esse foi, acredito eu, o estopim que me levou a pegar uma das almofadas e, com o coração repleto de ódio e o máximo de força de que dispunha, comprimir o rosto da velha até que se sufocasse. Ela não ofereceu resistência, era como se já tivesse morrido dias atrás.

Ainda tive nervos, mesmo tremente, para tomar-lhe o pulso: estava morta.

Senti como se todo o cansaço de uma vida me abatesse. Agora que a velha morreu e levando-se em conta o estado crítico em que Madame Bouchamp estava, eu poderia, como médico, alegar que sua morte fora natural. Esperaria até de manhã e diria que a velha morrera durante o sono. Sim... um bom plano... tão bom quanto uma mente exausta poderia conceber.

Só me restava esperar o amanhecer e desmaiei pesadamente em meu leito.

Quando despertei, o relógio passava pouco da meia-noite e, imediatamente, comecei a preparar as malas para abandonar de vez aquele lugar maldito quando o sol despontasse no horizonte pela manhã. Trabalhava freneticamente nesta tarefa, empilhando peças de roupas como trouxas disformes, amontoando livros e não me importando com papéis que se perdiam na pressa. Eu estava, ouso dizer, feliz que o pesadelo tenha acabado. Poderia voltar à vida e, nunca mais veria a velha Madame Bouchamp ou seu cadáver novamente.

Foi nessa agitação que, subitamente, mais um gemido, hediondo como os outros, fez-me congelar de pavor. Um calafrio percorreu-me a espinha e o suor gelado, de pronto, escorreu-me pela face. Ainda um outro gemido ecoou pela casa; era um “ai” prolongado, agônico, fantasmagórico. Permaneci paralisado, mas logo a loucura e o desespero me levaram a correr. Corri o mais que pude até o quarto da velha, que permanecia como estava, em sua cama. Era rígida, fria e pálida como o mármore, os lábios ainda entreabertos e roxeados, mostravam uma boca sem dentes.

Apertei a cabeça com as mãos:

- Não pode ser! Não pode! – falei, andando pelo quarto.

Mais um gemido saiu dos lábios da velha e eu, num grito de desespero, segurando a cama pelas armações laterais, virei-a como se virasse um tabuleiro de xadrez. O cadáver caiu pesadamente, rígido como se fosse feito de madeira. Ajoelhei-me chorando e rezava, pedindo perdão a Deus por meus pecados e então, um gemido novamente, ainda como um “ai” repetiu-se pelo quarto. Foi então que vi, erguendo-se de entre as tábuas do assoalho, negro como a noite, com um olho faiscante igual ao do próprio demônio, Lúcifer, que se libertara e, depois de me olhar profundamente nos olhos, emitiu um gemido antes de sair correndo para as trevas.

Henrique de Castro Silva Junior
Enviado por Henrique de Castro Silva Junior em 31/01/2013
Código do texto: T4116504
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