Condenados
 
Fica registrado meu agradecimento
a colega Eliane Verica
      
“Este homem mente!” – gritava a turba.
“Ele merece morrer!” – exaltavam enlouquecidos.
Amarrado no tronco apenas ouvia. Já não tinha mais forças para protestar. Mas do que adiantaria? Eles não escutariam mesmo. Nunca escutaram, eram ignorantes demais para isso.
Uma nova cuspida no rosto. Outro soco no estômago. Sangue jorra de minha boca, lágrimas saem de meus olhos. A dor e a humilhação são tremendas. Oh Deus, porque sofrer tanto? Por que ser vitima daqueles brutos? Deus não parecia me ouvir, olhava para o céu e via apenas um bando de pássaros negros se formando.
Não adiantavam lamentos. A multidão a minha volta, aqueles que me xingavam e torturavam, agiam movidos pelo ódio e vingança. Viram sangue demais ser derramado e agora eles próprios precisavam derramar algum para lavar sua ira. Só assim ficariam satisfeitos.
E para dar vazão a este desejo precisavam de um culpado. Precisavam saber quem era o monstro que assombrava suas vidas. E localizaram este monstro na figura do coxo, ou seja, eu.
Pois logo que cheguei aquela pequena cidade esquecida por Deus fui olhado com indiferença e desdém, um estranho manco, um forasteiro defeituoso. Aquela sociedade fechada e atrasada era cheia de preconceito. Mas que levassem este preconceito para o inferno, nunca esperei ficar mais do que uma noite ali, estava apenas de passagem e procurava um lugar para repousar. Infelizmente algo ali se aproveitou de minha estada, outra presença maligna também alcançava aquelas bandas.
Logo que cheguei estranhas aves negras gralhavam pousadas sobre o pórtico de boas vindas da cidade, boas vindas, aliás, que eu nunca encontraria. Procurei por uma pousada e a achei, e tudo correu bem naquela primeira e única noite passada ali, ela fluiu longa e silenciosa, sonhei com minha casa e minha família. Porém um pesadelo chegou junto com o amanhecer, pois foi quando eles vieram. Sem aviso arrombaram a porta, fui retirado da cama vestido apenas com as roupas de baixo, indiferentes aos meus protestos eles me espancaram e xingavam. Fui levado para fora, despiram-me do pouco de roupas que tinha, me açoitaram, me chutaram, me arrastaram pelas ruas sob os olhares ao mesmo tempo raivosos e satisfeitos dos cidadãos que aproveitaram para me jogar paus, pedras e toda sorte de objetos e imundícies. Pelo caminho os mesmos pássaros negros acompanhavam tudo, ora pousados nos fios e postes pela rua, ora voando e grasnando nos céus.
Minha via crucis terminou quando cheguei a praça, mas o tormento mal havia começado. Ali me amarraram ao tronco. Desesperado, vi quando toras de madeira foram postas a meus pés e gasolina era derramada sobre meu corpo.
Agora esperava pelo que parecia ser minha condenação. Pois neste momento três homens aproximavam-se de mim, um vestia um uniforme militar, outro terno e gravata e o terceiro trajava-se como um juiz. E foi este último quem falou:
“Aqui estamos, o prefeito, o capitão de polícia e eu, o juiz desta cidade, para condenar este forasteiro maldito como manda nossa lei local.”
Querendo entender tudo aquilo tentei murmurar algumas palavras:
“Condenar pelo quê?”
Um soco no rosto dado pelo capitão calou minhas palavras:
“O réu não tem direito a falar!” – bradou ele.
O juiz riu satisfeito e continuou sua ladainha:
“Que todos saibam. Noite passada esta cidade testemunhou violência jamais vivenciada por nossa sociedade. Seis cidadãos foram encontrados mortos e seus corpos exibiam as marcas de uma terrível violência, algo que poderia ser praticado somente por um anormal. E o único anormal nesta cidade é este projeto de homem que chegou aqui justamente ontem, na véspera da chacina.”
O povo gritava blasfêmias e palavras de ordem. Ainda não conformado tentei mais uma vez protestar:
“Não há provas!” – gritei.
“Silêncio!” – berrou o capitão socando-me novamente.
“Quer uma prova?” – perguntou o prefeito – “Quer prova melhor do que sua figura? Você é uma manco, um aleijado anormal. Pessoas assim não tem e nunca tiveram espaço em nossa sociedade. Somos puros e fazemos o possível para continuarmos assim. Anormais, nascidos aqui ou vindos de fora, não merecem viver entre nós. Ainda mais monstros abomináveis como você.”
O juiz mais uma vez sorriu e completou:
“Por isto te condeno. Te condeno pela morte de seis pessoas e te condeno por ser um deformado. E a pena é a morte na fogueira!”
Enquanto todos gritavam e festejavam eu levantei a cabeça querendo rogar a Deus por minha salvação, via apenas bandos de pássaros, aquelas mesmas aves escuras, a cruzar o céu. Tomates e ovos podres caiam sobre mim. Mulheres gritavam injúrias, crianças faziam sinais obscenos com os dedos e os homens cuspiam em minha face machucada. Amaldiçoei a hora em que entrei naquela cidade miserável e aceitei o meu fim.
E o fim se aproximou na forma de uma tocha acessa nas mãos do capitão. Minhas lágrimas caiam e se misturavam ao combustível derramado sobre meu corpo.
“Agora vai morrer condenado.” – disse o capitão.
Mas antes disso, antes de minha pele arder e minha carne queimar, eles vieram.
Estiveram ali o tempo todo, esperando. Vigiavam do alto dos telhados, dos galhos das árvores e dos fios dos postes. Suas asas negras bateram, suas gargantas roucas gralharam e seus bicos afiados se abriram. Desceram como uma chuva de morte.
Como lanças eles alvejaram o povo na rua. Os pássaros negros traziam a dor, vinham do céu, mas pareciam enviados do inferno. Com satisfação vi o terror nas faces daqueles cidadãos preconceituosos, vi suas gargantas serem rasgadas por garras afiadas e seus olhos serem furados por bicos esfomeados. Não poupavam ninguém, jovens ou velhos, homens ou mulheres, todos aqueles que derramaram meu sangue agora sofriam.
Entendi logo que foram aquelas criaturas as responsáveis pela carnificina atribuída a mim. Mas não lamentei por aqueles a quem elas atacavam, estavam tendo o que mereciam. Julgavam-se superiores e agora não passavam de simples alimento para os terrores alados.
Eu ria, amarrado no tronco ria da dor alheia. A minha volta tudo era negro e vermelho, os pássaros ciscavam as ruas como galinhas. O sangue dos mortos brilhava e escorria em enxurradas. Mas enfim tudo acabou. Só restava um homem de pé, e este homem era eu, amarrado no tronco eu esperava.
Então todos os olhares negros se voltaram para mim. Aquelas criaturas eram carrascos, buscavam o mal e seus praticantes, por isso atacaram os habitantes daquela cidade, pois todos já estavam condenados pelas perversidades praticadas contra os forasteiros e diferentes.
Mas havia um último condenado e os pássaros sabiam disso. Ao contrário do juiz eles sabiam que eu não era culpado por aquelas seis mortes, entretanto dois daqueles crimes sujavam minhas, como sempre fazia ao passar por cada cidade naquela não foi diferente e fiz mais duas vítimas. Infelizmente eles estavam lá também e não toleravam concorrência no negócio da morte.
Por isso eles vieram todos de uma vez, uma nuvem escura me cobriu. Minha pele já machucada não resistiu, meu destino estava traçado.
Não queimei na fogueira, mas as chamas do inferno me esperavam.
Luciano Silva Vieira
Enviado por Luciano Silva Vieira em 15/08/2013
Reeditado em 15/08/2013
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