A Escultora

O homem coberto por um amplo sobretudo desceu do táxi, pagou a corrida e olhou em volta, arrumando o chapéu em cima da cabeça.

Debaixo do par de óculos escuros, ele viu as mesmas paisagens de sempre. Já estava ficando acostumado àquelas três pequenas árvores à sua esquerda, duas à direita, pontilhando com reticentes traços de verde a imensidão de pedra cinzenta e desbotada do bairro. Acostumava-se mesmo com a gramínea rasteira, a peste bendita que teimava em vicejar no meio das costuras de cimento que uniam os paralelepípedos.

Aquelas plantinhas teimosas, pisoteadas pelos passantes, queimadas pelo sol, incapazes de morrer, faziam com que ele lembrasse de sua própria condição, e dos motivos que o traziam mais uma vez àquele ponto do subúrbio.

Quis remexer os bolsos da calça marrom em um movimento brusco que lhe causou algumas dores nos ombros, fazendo-o suspirar. Franziu a testa e concentrou-se. Havia se adiantado e marcado o encontro alguns dias antes do prazo justamente para evitar as dores. Os médicos sempre tinham lhe advertido sobre a instabilidade da doença, e preveniram-no que as dores poderiam aumentar ou se intensificar sem prévio aviso.

Olhou para o prédio em sua frente e respirou fundo, sentindo o cheiro de ar que aquela atmosfera suburbana ainda conseguia oferecer.

A carteira com algum dinheiro estava no bolso. Bandagens, gazes, fitas, cordões e agulhas cirúrgicas, frascos de antissépticos e tantos outros itens que ele possuia estocados em sua vasta farmácia particular estavam sempre dentro da pequena mochila de nylon que carregava consigo. Era a sua primeira preocupação.

Estava tudo ok.

Perdera a conta de quantas vezes já estivera ali, naquele mesmo endereço, com os mesmos objetivos.

Sentiu como se fosse a primeira vez. O medo reticente. O frio na barriga.

Fazia mais de dois anos que trocava a dor por mais dor.

Trocava a dor por prazer, e oferecia o próprio corpo como forma de salvar a si mesmo e à mulher que o receberia.

A escultora.

O ombro formigava. As cicatrizes começavam a coçar. A implacável moléstia avançava. Não havia mais tempo a perder.

Junto ao portão, ele tocou o interfone e não precisou sequer se apresentar para ouvir o ronco elétrico do portão que se abria.

Já estava sendo esperado.

Era bem provável que ninguém além dele fosse louco a ponto de visitar aquela mulher.

Decidido, subiu a velha escadaria da entrada do prédio e atravessou o corredor rumo ao elevador.

*****

– Não é muito cedo para fazermos isso de novo, amor?

Sentado na cama, vestindo apenas a cueca, o homem doente sorriu, reflexivo.

Olhou para a mulher alta de longos cabelos brancos presos em um coque. Seu corpo atlético contrastava com o rosto inexpressivo de menina. A pele alva salpicada por sardas e marcas de cortes tornava seus olhos cinzentos ainda mais enigmáticos.

A escultora.

Difícil de acreditar que uma mulher tão bela e esguia, dona de uma aparência tão frágil, pudesse ser... o que era.

– Você não me quer por aqui? – pediu ele, puxando o corpo da jovem para si, as distorções da musculatura hipertrofiada de seus braços apertando a pele coberta de cicatrizes das costas dela.

– Você sabe que quero... – disse ela, sem sorrir. – Sempre.

A escultora sempre o queria, e nunca sorria.

Ele beijou a barriga dela enquanto ela tirava o sutiã e revelava os seios ainda belos, mesmo estando cobertos pelos estranhos traços que ela costumava fazer em si mesma.

Desenhos e rabiscos feitos a estilete, alguns apagados e escondidos debaixo de cicatrizes, outros vivos e recentes.

Em meio aos abraços e beijos, ele ajudou-a a tirar a calça de malha e a calcinha. Os traços de lâmina seguiam pela pélvis, formando linhas e espirais cicatrizadas em redor da vagina e partindo dela e deslizando pelas coxas de pele muito branca.

Às vezes ele se questionava, já sabendo a resposta... Como seu destino poderia tê-lo reunido a uma pessoa assim?

Quando os médicos desistiram de tentar identificar o tipo de patologia que ele possuia e o aconselharam a procurar o apoio mais especializado de infectologistas e até mesmo de biólogos e pesquisadores em universidades e institutos científicos, ele soube que sua vida não seria mais a mesma.

Sua doença era especial. Um caso não apenas raro, mas único.

Nenhum tipo de infecção já documentado se parecia com aquilo.

A mulher empurrou-o para trás, deitando-o na cama e jogando-se sobre seu corpo.

Mesmo sem fazerem ideia de com o quê estavam lidando, os estudiosos eram unânimes tanto em seu diagnóstico quanto ao demonstrarem sua perplexidade. Ao contrário do que normalmente acontecia, a moléstia que acometia aquele homem não seguia os padrões, degenerando tecidos, destruindo células, desmanchando órgãos. Em vez disso, o que ocorria era exatamente o oposto...

A regeneração.

Tomado por uma unfinitude de tumores microscópicos, o corpo daquele paciente regenerava sem parar. Este era o resumo das complicadas explicações e relatórios oriundos dos exames, acessos, implantes, biópsias de tecidos e tudo mais que os especialistas tinham feito com ele, tentando entender o que se passava.

Pelo que ele pode entender, suas células eram idiotas e algo em seu código genético as instruía para que se regenerassem, crescessem ou se multiplicassem sem parar, em áreas e de formas totalmente aleatórias. E nenhum dos testes servira para explicar porque isso se dava de tal maneira.

A mulher puxou sua cueca e cavalgou sua ereção. Ambos suavam, gemiam e suspiravam.

Falava-se em mutação ou em um inédito tipo de câncer abrangente e extremamente veloz. Biólogos mais ousados cogitaram mesmo uma espécie de colonização cancerígena, como se seu corpo inteiro se constituísse em uma sociedade celular regenerativa e proativa, algo técnico, abrangente, difícil e fatal demais de se explicar em língua de gente normal.

O fato é que as lesões começaram a ser maiores e a se repetir com mais frequência conforme os anos passavam.

Gozaram, e abraçaram-se ternamente.

Era até divertido poder ver a pele lesionada se fechando sozinha depois de um corte, antes mesmo do sangue pingar, quando ele era mais jovem. Ou ver os hematomas das brigas do tempo de criança desaparecendo da noite para o dia.

A diversão acabou quando suas primeiras costelas se quebraram, espremidas por acúmulos de carne que pareciam dispostos a ocupar o lugar delas, ou quando seus pulmões se viram comprimidos por massas de músculos, ou ainda quando a comida deixou de passar pelas suas tripas, cercadas pelos tecidos super-desenvolvidos do abdome.

A diversão acabou e a dor começou.

Era fisicamente impossível que músculos e pele e cartilagens ocupassem o lugar que fora destinado pela evolução fisiológica e histórica humana a outros músculos e pele e cartilagens, e mesmo a órgãos, sem que houvesse algum tipo de prejuízo orgânico muito sério.

Desfigurações começaram a se evidenciar na fisionomia daquele homem.

Marcas como grandes vergões surgiam na pele.

Às vezes ele não conseguia respirar. Outras vezes, vomitava tudo o que comia.

Exultante, a fêmea saiu de cima do homem e abandonou a cama, dirigindo-se para um ponto específico no quarto obscurecido pela fraca luz dos abajures de cabeceira.

O tempo passou e o pobre homem se isolou do mundo.

Dinheiro havia o suficiente, graças a alguns acertos nos negócios, tanto dele próprio quanto de seus progenitores, já há muito falecidos.

Nem tudo poderia dar errado, e foi isso mesmo que aconteceu.

As coisas deram até certo demais.

A mulher nua aproximou-se de novo da cama.

Seu rosto cheio de marcas impassível, como sempre.

Em sua mão, um reluzente bisturi.

– Está na hora, meu anjo – disse ela, lambendo a ponta da lâmina até a língua sangrar.

Ele fez que sim com a cabeça.

Era a hora de começar a esculpir.

*****

Em um dado momento da vida daquele homem doente, alguém percebeu que trechos de sua pele e pedaços de sua carne deveriam ser sistematicamente removidos, ou partes importantes de sua estrutura física poderiam ser comprometidas de forma definitiva, sufocadas em meio à expansão desenfreada do que estivesse em torno.

Intervenções cirúrgicas se tornaram habituais, a princípio uma vez por ano. Mais tarde este prazo foi sendo reduzido gradativamente, para dez meses, depois para nove, oito, sete...

Ele descobriu também que as incisões e recortes nos pontos de acúmulo de tecido não causavam mais dor do que leves injeções. Ao que parecia, seus nervos não compartilhavam da estranha fome de crescimento dos demais tecidos de seu corpo – atrofiavam-se e recrudesciam ao invés disso, o que não deixava de ser um problema por si só, mas se constituía em uma preocupação menor. A insensibilidade era uma bênção para alguém que precisa ser regularmente espetado e esfaqueado. No mínimo, era uma boa forma de economia – os custos com anestésicos eram reduzidos a zero.

A última coisa que ele descobriu foi a escultora, o derradeiro e mais irônico “golpe de sorte” nesta sua estranha vida.

Deparou-se com ela pela primeira vez no noticiário da televisão.

Uma assassina serial fria como o gelo, responsável por uma dúzia de mortes de homens, que naquela época encontrava-se em cárcere preventivo e prestes a passar por um julgamento.

A psicopata retalhadora de homens que não sabia sorrir.

Às voltas com uma carreira relacionada com medicina e enfermagem, ela havia tido acesso a hospitais e colecionava lâminas cirúrgicas e partes dissecadas dos corpos dos homens que seduzia.

Foram mais de cinco anos de cruéis assassinatos antes que o primeiro corpo fosse encontrado. Foi identificado como pertencendo à quinta vítima, e o corpo já apodrecido pouco revelou a respeito dos métodos do matador, que até então não possuia gênero. Somente mais tarde descobriu-se uma porção de outros corpos, todos enterrados em um mesmo lugar, ou ao menos era o que os jornais diziam.

Ele só ficou sabendo da história como um todo – e descobrindo que estava diante de uma assassina, uma mulher de aparência até bem frágil – depois do julgamento, e após os corpos terem sido liberados pela polícia e revelados pela imprensa.

Gravuras e tatuagens, por assim dizer, com formatos de espirais, linhas e figuras geoméricas eram a rotina no modus operandi da criminosa. Gravuras e tatuagens feitas com lâminas, a pele dos alvos sendo escavada e esculpida, como que por um artista que faz entalhes na madeira ou pedra com um cinzel.

Os advogados alegaram grave psicopatia, o que fez com que o juiz sentenciasse a jovem de cabelo descolorido e olhar taciturno a perambular pelos corredores do manicômio, poupando-a do corredor da morte.

A partir daí, o homem doente a tudo acompanhou, e logo se prontificou a custear o tratamento da mulher, nutrindo uma estranha ideia, que logo se transformou em obsessão.

Muito dinheiro foi gasto. Muitas reuniões foram feitas. O homem teve de convencer muita gente do que tinha em mente. Advogados. Médicos. Psiquiatras. A própria polícia.

– Você é louco – diziam todos.

Quando os dois se encontraram pela primeira vez, anos depois do julgamento, a mulher já com o cabelo bem mais escuro e trajando uma camisa de força, ele foi direto ao assunto. Providenciaria residência e custeio para a jovem, longe do sanatório, de forma permanente, e ainda permitiria que ela se integrasse novamente à sociedade, em troca de algo que ela sabia fazer como ninguém...

Em troca de suas esculturas, no corpo dele próprio.

– Você é louco – disse ela, o olhar sempre inexpressivo. Mas, após uma rápida inspeção pelo corpo esbelto daquele almofadinha... – Onde é que eu assino.

Um mês e meio e uma pilha de assinaturas, liberações e legalidades depois e a mulher se mudava para seu novo apartamento no subúrbio, onde naquela mesma noite teve a chance de estrear sua nova coleção de bisturis e lâminas.

Foi o primeiro dos encontros que eles tiveram. Ele percebeu lágrimas que aparentavam ser de felicidade rolando pelos olhos aparentemente vazios, mas brilhantes, da moça, enquanto ela entalhava e escavava e perfurava com movimentos ágeis e dedicados os locais assinalados, sangue espirrando lá e cá e nacos de carne cancerosa sendo cuidadosamente separados do seu corpo.

Há de se convir que duas pessoas de sexos opostos se encontrarem periodicamente para que uma delas possa fatiar a outra, com o consentimento desta última, não é o melhor dos quebra-gelos para se iniciar um relacionamento. Graças a tamanho empecilho, apenas após o quinto encontro foi que rolou um clima entre os dois. E somente no oitavo foi que eles puderam desfrutar de alguma privacidade, não antes de muitas negociações e a concordância da promotoria de justiça em remover as escutas e as câmeras do apartamento e remanejar os dois gorilas da polícia que faziam a vigilância do prédio.

Desde então o casal vem se encontrando. Uma vez por mês, às vezes duas.

Como um casal comum de amantes, eles se encontram, conversam, assistem filmes, jantam juntos. Ele sorri, ela não. Mais cedo ou mais tarde fazem amor.

E então ela começa a esculpir...