Holocausto Escarlate

Noites são mistérios, uns novos e outros repatriados; e em apenas uma noite, há muitas e variadas noites. Nessa noite, estando ela na noite velha, quando tudo aparentava que nada mais aconteceria, a lua deu a cara. Circundada por anéis de brilhantes, aparecera amarelada com nuances de ouro. Já calmas e serenas, nem parecendo que passara por horas de desgaste e furor, as águas do rio recompunha-se do tempo dispendido à limpeza e depuração, mirando-a detidamente. Para compensá-lo de tamanha solicitude, a lua agradece-o, esparramando sobre sua superfície uma camada de sútil gentileza. Através do improvável, a lua e o rio enamoravam-se sorrateiramente. Porém, nada, nenhum escritor de livros de Auto-ajuda convencia-me que isso sejam bons presságios; aliás, a despeito dos mimos exacerbados, digo honestamente, que receio de tudo que entendo como excesso. Em tempo, dentro das vistosas, exuberantes e caixas de charutos tecidas com laços de fitas dourados, encontram-se os maiores enganos e farsas dos tabacos. Às vezes, o licor derivado da essência é o veneno letal em forma de líquido botânico da longevidade. Contrário da humanidade, prefiro coletar espinhos, a apanhar rosas; afinal, as andanças por quais trilhei fez-me um cascudo niilista sem ciência...

As garças aproveitavam o silêncio para se ajeitarem nos galhos. Uma voava para a ponta, outras saiam da ponta e aconchegavam-se no meio da fiada. E de pulo em pulo, iam trocando de lugar até sossegar....; não por muito tempo. Esses bichos sonham muito com um lambarizinho bailarino fisgado pelo bico em águas plácidas e morosas, por isso, são inquietos. Talvez pelo sonho repentino e o sonambulismo advindo dos famintos fora de época, uma delas deu um mergulho rasante em busca de um algo que pudesse lhe saciar o apetite. Quando deu por si, já havia enterrado o bico até altura do pescoço n`água. Devido o barulho despropositado, o ingazeiro que dormia de olho aberto despertou assustado. Estremecido. Ao notar o desapontamento da pena branca, todas as co-irmãs bateram asas e abriram espaço para ela se aconchegar ao lado da família.

Devido a trabalheira a qual se submeteram na boca da noite e o cansaço inevitável, os ingazeiros voltaram a repousar serenos, dobrados sob o paradeiro das águas. Folhagens e galhos bailavam a melodia lenta, quase imóvel, das águas que também dormiam esquecidas nas margens. Em se tratando de ingazeiros, quem não mergulha fundo nas águas, não sabe a intensidade de força imposta pelas correntezas do rio. O mesmo aplica-se aos que reclamam do frio, sem dormir ao relento em noites invernais. Pois, somente quem presenciou a batalha insana travada nesse ponto, pode testemunhar com palavras assertivas e precisas o rebuliço inebriado que acontecera horas antes.

Felizmente, as águas não param para lamuriar as ocorrências; ao contrário, berram o abrem alas e seguem em frente; sempre em frente! Contrário dos ingazeiros, margens, beiras que são estacionários e onde nascem, morrem; águas e ventos passadas não movem as pás dos moinhos. Homens sim, mas águas e ventos não sofrem com o passado; analogamente, as grandes coisas nem tanto, mas as pequenas e simples obras cotidianas, exigem dedicação, continuidade, esforço e perseverança, sempre.

O sono começava importunar meus olhos. Vez por outra, a sobrancelha de cima caia desmantelada sobre a de baixo. E ambas se juntavam numa madorna instantânea que parecia eternidade. Dava uma sacudida nos miolos, que chegava alertar a consciência dos vacilos e perigos que podiam estar vigiando-me de perto; porém, devido a teimosia da noite, perdia-me no sono novamente, levando consigo minha consciência. Não havia mais jeito, definitivamente, chegara a hora de procurar uma toca para estirar o corpo e deixar as sobrancelhas se juntarem, uma dentro da outra, feito macho e fêmea amando loucamente sem pudor em praça pública. Nenhuma bebida alcoólica bebe o cérebro, como o sono bebe a memória da pessoa. Não há fortaleza que não tombe, quando o dinamite explode sua base estrutural; o mesmo aplica-se ao sono: chegou para ficar, a resistência e o machismo do fulano tombam por terra. Não há botas de gigante que o mantenha em pé.

Cambaleante sob um turbilhão de pensamentos medrosos, fui seguindo os passos lerdos da lua pálida. À essa altura, estava opaca por fora, mas irradiante por dentro; como interior é continente mágico impossível de se navegar, era o máximo que podia imaginar sobre ela. Embora condene os sonhos que resultam em nada, às vezes os sonhos tornam-se realidade e no ínterim de venerar os sonhos profícuos, lembrei-me que já havia estado naquelas paragens em outros tempos.

O medo aterroriza e faz as coisas pequenas tornarem-se gigantes, assustando o corajoso. Miragem ou realidade, a luminosidade ofuscada da lua espraiava-se sobre algo nebuloso e irrepreensível. Nada tirava de minha visão que aquilo não era mal agouro. Uma imensa e volumosa cabeleira negra cobria um ser estranho, dando a nítida impressão que aquilo era um monstro de boca arreganhada e olhos fundos, parecendo enormes panelas agourentas. Pontiagudos, os dentes eram como aguilhões. Uma gosma asquerosa descia-lhe pelos caninos. A figura ficou em pé sobre as patas traseiras. O corpo esticava e encurtava em retorcidos alarmantes. Seguir ou para; atacar ou fugir?

Repentinamente, a sombra de duas mãos devoradoras precipitaram sobre mim. Vinham agressivas; se jogavam bravias; se lançavam raivosas. Por pouco não fui laçado. Minhas pernas bambearam e o coração tremulava intensamente feito bandeira tocada por vento abundante. Ouvia claramente um grunhido estrangulando-me a garganta. "Não ficará tijolo sobre tijolo".

Pedras de grande diâmetros rolavam sobre meus precipícios imaginários. Uma após outra, ribombavam em meu cérebro. Por fim um estalo, seguido de uma rajada de fogo rompeu os ares. Uma enorme fenda abriu-se em minha frente. Pensando na garça que mergulhara em busca de alimento, definitivamente a loucura não demarca território.

Caminhei para o fim...; e ao despertar para o novo dia, vociferei para quem quisesse ouvir, que nunca havia presenciando uma decapitação tão sádica e cruel, como foi a morte da humanidade. Terminei de dizer a sentença derradeira, a lâmina afiada do bumerangue curvo de fogo rodopiou ao meu redor e após circular mais de três vezes, foi direto na minha jugular. Minha cabeça separou-se do corpo e como um pêndulo dançando o vai e vem frenético, entre cair ou não, desmantelou no chão. Me vi sem ela pela primeira vez. Não demorou muito, foi a vez do corpo. Corpo e mente uniram-se novamente, é verdade, tentei recompor-me; porém, nada mais adiantava: era mais um apenas, em meio à manada de humanos decapitados.

Volto-me à honestidade para dizer que, ao ver o esparrame de cabeças coloridas pelo rosa escarlate no chão, perdi o receio de não acreditar nos excessos. Trêmulo, pensava: "Será que um Holocausto lunar escolhe uma semente, para em tempos vindouros, adubar a pesquisa científica da eugenia?"

E segundo as palavras de uma voz vinda do além, ordinários como são, nenhum humano merece a vida que possui. Muito menos remendos, funilarias e costuras entre a cabeça e o corpo. Pelo zunido, era o bumerangue de fogo e falou comigo, óbvio. Ratificou: "Não possuem sangue na cara, são desequilibrados, mesquinhos e valem menos que uma guimba de cigarro já no filtro".

Antes que chegasse ao tamanho de uma bituca; aliás, nem deu tempo d´eu pensar qual marca de cigarro pertencia, funestamente ouvi um "Zuuuum" seco. Me vi sem cabeça pela segunda e última vez...; a única coisa que consegui fazer foi escrever no chão com o líquido rosa escarlate: "aqui agoniza uma cabeça que escapou da primeira decapitação, mas da segunda, não".

Está marcado no calendário da história da humanidade, que no dia do Holocausto escarlate me vi (não), definitivamente fiquei sem ela. Hoje sou um corpo descerebrado vagando pelo mundo.

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 30/11/2017
Reeditado em 30/11/2017
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