Parte II
 
O dia estava quente demais para o início da primavera. Pela janela ela podia ver as árvores que floresciam e enchiam o ar com seu perfume levemente adocicado e invadiam a casa através das janelas abertas.

Os cheiros e aromas sempre chamaram sua atenção. Gostava de senti-los nos alimentos antes de prová-los. Adorava o cheiro da canela, do coentro e do açafrão, uma de suas especiarias favoritas.

Em sua lembrança mais antiga ela ainda muito pequena caminhava de mãos dadas com a babá pela fazenda do pai, o céu completamente azul e a luz do sol refletindo seus raios nos cabelos dourados dos irmãos que corriam à sua frente.

“Veja Nina, aquela é uma árvore de canela!” disse a mulher e então apanhou uma folha verde da pequena árvore e a esmagou nas mãos, o perfume suave encheu o ar e ficou gravado em sua memória.


Agora, o perfume de centenas de flores e plantas que tomavam conta da casa enchia o seu coração de paz tornando seu mundo perfeito ainda mais bonito.

Seu devaneio foi interrompido pela ponta da agulha afiada da modista que fazia os últimos ajustes no vestido que ela usaria naquela noite cutucando sua pele. A casa, que vinha sendo preparada há meses para aquela que seria a maior e mais comentada festa do ano, estava cheia de criados, floristas e cozinheiros, todos trabalhando no que parecia um caos ordenado.

Nina sabia que estaria deslumbrante naquela noite, porém começava a se sentir cansada com todo aquele barulho e agitação e assim que conseguiu se libertar do excesso de pessoas que orbitavam a sua volta, procurou refugio na biblioteca.

Não havia canto na casa que estivesse em silêncio, contudo ali poderia pelo menos sentar-se sozinha. Há algumas dezenas de metros, os músicos contratados pelo pai a peso de ouro afinavam seus instrumentos no grande palco armado no jardim.

Na enorme mansão de paredes brancas e janelas amplas, com salas repletas dos móveis mais delicados e caros, a biblioteca com seu pé-direito alto e suas paredes abarrotadas de livros sempre fora seu lugar favorito e toda vez que entrava ali o ritual se repetia.

Fechava-se naquele universo, acariciava as lombadas daqueles livros que nas bibliotecas das mansões da maioria das ricas famílias eram apenas objetos de decoração, mas que ali em sua casa faziam parte da sua vida desde muito cedo.

Aspirava o cheiro do papel, da tinta e do couro e só então se jogava em uma das confortáveis poltronas forradas de couro marrom escuro que combinava perfeitamente com os móveis de madeira de lei que enriqueciam o ambiente.

Naquele final de manhã, cumpriu seu ritual e após acomodar-se em sua poltrona preferida, descalçou os sapatos e pegou seu exemplar de Ulisses.

Sentiu os músculos de suas pernas relaxar após horas em pé em frente ao espelho e entregou-se à leitura daquele livro que, censurado em vários países, havia sido presente do irmão mais novo que acabara de voltar de uma temporada em Paris.

Aquele presente a tinha deixado extremamente satisfeita, pois seria uma das primeiras a ler aquele livro que havia causado tanto frisson e poderia opinar em primeira mão a seu respeito. Mais uma vez estaria um passo à frente.

Embalada pelas aventuras de Leopold Bloom e pelo som distante dos trombones e do piano, não se deu conta do passar das horas até que a pouca luz do fim do dia tornou difícil a leitura.

Achou estranho que já estivesse anoitecendo lá fora e ninguém tivesse vindo chamá-la para se preparar para a festa. Só então percebeu que a casa estava em completo silêncio.

Levantou-se devagar, abriu as portas e chamou por uma das criadas. Não houve resposta, então caminhou para fora da biblioteca e seguiu até a sala de jantar pisando num chão que parecia de gelo e que a fez estremecer.

A mesa estava posta, mas uma escuridão lúgubre e densa rasgada apenas por alguns poucos fachos de luz dominava o lugar.

 “Mamãe? “Papai?” - chamou sem resposta.

Sem entender o que estava acontecendo começou a sentir uma pequena pontada de medo e desejou sair dali, como se aquela escuridão estivesse tomando conta do seu corpo e de sua alma.

Assim que chegou ao jardim, que até poucas horas estava repleto de pessoas trabalhando como em um formigueiro e que agora estava completamente deserto, percebeu que a grama sempre bem cuidada estava seca, como se não fosse molhada há muito tempo o que a fez ter certeza de que havia algo errado.

Sob a cúpula negra sem lua ou estrelas, Nina caminhou entre as mesas arrumadas para a festa.

Nos pratos de porcelana fina com o anagrama das famílias que se uniam desenhado em filetes dourados a refeição já estava servida mas descansava intocada.

O silêncio denso foi invadido pelo farfalhar de asas. Então Nina percebeu que sobre o espaldar da cadeira colocada no lugar de honra reservado aos noivos uma pomba havia pousado.

A presença da pequena ave branca pareceu dissolver aquele cenário obscuro e sem sentido e enquanto Nina se aproximava a pomba desceu em direção à mesa.

Quando Nina estendeu sua mão para tocar a pequena cabeça branca percebeu que a ave bicava algo que parecia ser um pedaço de carne crua e ensanguentada sobre a mesa, manchando a toalha alva.

A ave antes imaculadamente branca agora estava tingida de escarlate enquanto gotas vermelhas pingavam de seu bico fino.

Ao compreender aquela cena, Nina recuou enojada, levou as mãos até a boca sentindo a nausea a dominar e naquele instante percebeu que suas mãos estavam cheias daquele líquido vermelho e viscoso.

Sentiu uma pontada de dor e só então notou o grande corte aberto em seu peito, de onde o sangue jorrava em abundância.

O grito de desespero foi sufocado pelo toque delicado e suave dos dedos gelados de sua mãe em seu rosto. “Vamos Nina, está na hora”, ouviu a voz distante enquanto ainda se sentia presa entre a consciência e o pânico causado por aquele sonho agourento.

(...)


 
Fefa Rodrigues
Enviado por Fefa Rodrigues em 20/03/2018
Reeditado em 31/01/2019
Código do texto: T6285303
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