Era noite. A chuva e os ventos solapavam o exterior. Ela se mantinha deitada na cama, entre lençóis e ideias. Pensava no marido que, com apenas trinta anos de idade, partira do mundo por meio do que a terminologia médica denomina infarto. Um mal súbito de difícil digestão no peito da jovem viúva.

Cansada de lutar contra a insônia, mais uma vez rendida, jogou os lençóis ao alto tomou assento no colchão calçou os chinelos acionou a lâmpada do abajur e partiu ao guarda-roupa onde, num fundo falso, guardava o objeto que lhe fora doado por um primo distante, alguns meses antes da súbita viuvez. Seu donatário lhe garantira que o amuleto, uma pata de animal raro, detinha poderes mágicos desconhecidos e imprevisíveis. Segundo ele, alguns por ela foram curados e abençoados enquanto outros alcançaram a desgraça e a morte. Não soube designar com precisão a causa dos diferentes efeitos da magia do objeto, mas impressionara muito a atual viúva e a seu ex-marido, na época entre os viventes. Ela se recordou incomodada. Seu amor pedira algo à pata, alguns dias antes de se sufocar no próprio ar. A viúva jurara (a si mesma) que utilizaria o amuleto apenas em ocasião urgente.

Relutou alguns minutos até ser vencida pelo peso da saudade, uma ânsia como de morte que a impulsionava ao mistério da superstição entre os dedos. Apertou o objeto peludo e, de olhos fechados, realizou um pedido. Aguardou. Compreendeu que milagres não existem e retornou ao leito. No meio de um sono intranquilo, escutou baques vindos da porta frontal da casa. A princípio os ignorou devido aos alaridos, provocados pela força da ventania nas folhas das árvores do jardim no exterior, que se misturaram ao som dos toques duros, como de nós de dedos, à madeira fofa. Mas a repetição das pancadas magnetizou a viúva que pulou da cama passou a andar de um lado ao outro do quarto, em plena escuridão, e se entregou à pergunta muda: “Será?!”...

Como se a reprise das batidas dessem confiança à dona da casa, ela se decidiu num assalto de imaginação. Não no sentido de razão ilógica ou fantasiosa, mas no de fé. A viúva saiu correndo do quarto e destrancou a porta, meio suando frio meio adentrando um sonho infantil e arriscado. Ao arreganhar a porta, não acreditou. Ficou rente ao pedido mais improvável da existência (dela e de todos os humanos). Ainda hoje, quem se recorda, assevera que a viúva trazia nas feições uma completude indescritível. Parecia mais viva do que quem por ela chorava. A pata nunca mais foi vista.
John Grafia
Enviado por John Grafia em 25/05/2018
Reeditado em 25/05/2018
Código do texto: T6346624
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