Brezalauspurc, 1436.

A Passagem da Aranha

Brezalauspurc, 1436.

Sexto dia do outono Celta.

Faz frio. A lua se encontra alta e imponente no céu...

Eu escrevo este pergaminho sob a clara luz da noite, e é difícil para mim tecer as palavras, uma a uma, e levo mais tempo do que possas conceber. Mas é preciso.

Coloco-o numa maldita garrafa, e espero que por sob as águas ela navegue até o mar e leve minha a mensagem, para que sirva de aviso àqueles que… por ventura, vierem a encontrá-la. Para que tenham o que eu não tive. Uma escolha! E que isso salve a minha alma… pois o meu corpo já tem padecido de males indizíveis…

Pelas cataratas do rio Ister ela há de descer, levando consigo a sua preciosa carga, e que na desembocadura do Volga ela encontre as revoltas águas cujas ondas hão de desvelar ao mundo o pergaminho que carrega o meu sangue e a minha história. Para que ao ser encontrado e lido, esclareça e liberte um povo já tão sofrido, das sombras que os cercam.

Assim se segue:

Nos subterrâneos do istmo de Goldenbridge, na parte oriental do continente, no ano de 1104 do Senhor dos cristãos, fora forjado na terra, um longo, escuro e fétido túnel, de três quilômetros de extensão, que procura facilitar a passagem de valorosos guerreiros e cavaleiros para o outro lado da enorme e gélida cordilheira dos Cárpatos. Onde haveriam de enfrentar a turba de infiéis que desejavam invadir as terras sagradas. Entre estes valorosos homens, cavaleiro de Briphenburgo, eu!

Era o outubro de 1108, e eu deveria encontrar o meu Rei na passagem do rio de Galamont, em novembro, antes da grande nevasca, para receber dele instruções para a grande ofensiva contra os turcos.

Claro, e depois de quatro dias sozinhos na estrada, eu e a minha fiel montaria, encontramos o famigerado túnel outrora descrito, e a cordilheira feito coroa que ele procurava vencer, arrastando-se tal qual verme debaixo do solo. Talvez, se eu estivesse sozinho, poderia por mim mesmo arriscar-me a atravessar a cordilheira por cima, embora isso fosse me custar mais de uma semana. Mas como o meu povo dependia de mim, pois que o tempo não estava do nosso lado, e o meu cavalo não poderia cavalgar semelhante terreno, segui o meu caminho por aquela estranha caverna, apesar de que todos os meus melhores instintos me inspirassem o contrário.

Se encontrá-la, saberá do que estou falando: Um escuro e tortuoso buraco, que de repente surge na estrada, primeiro como um estranho fosso, depois, um túnel. No início, escuro, mas logo depois, estranhas pedras e rochas preciosas e fosforescentes iluminam os seus meandros, que não tarda a se tornar úmido e viscoso. E sobre o cheiro que por lá abunda, eu nada falarei, pois a minha mente ainda não se recuperou de tal agouro, e seria por demais penoso ocupar-me dele novamente.

Naquele momento, tudo o que eu tinha era o estranho brilho em derredor, pouco mais do que um crepúsculo numa escuridão profunda, o que me permitia ver apenas a cabeça alva e firme do meu cavalo à minha frente...

Quando seguia, já confiante com os minutos que se passaram, algo, ou alguém, puxou-nos violentamente contra o teto, lançando-nos numa altura considerável, como se fossemos os dois, bonecos forrados de penas.

Mal me refiz do susto e da queda, quando a cabeça do meu cavalo caiu ao meu lado, ainda ligada à sua coluna vertebral, que se debatia às feitas de uma serpente.

Sim… eu recordo-me disso…

E recordo-me também de um maldito som, que de forma alguma consigo descrever, que inundara a caverna furtivamente, como uma segunda e ameaçadora sombra, ainda mais escura que a de outrora. Um sentimento elétrico subiu-me pela espinha e arrepiou os meus cabelos, sendo que nem na mais terrível das batalhas, onde encontrei a própria morte em pessoa com a sua brilhante foice em mãos, semelhante coisa me acometera.

E havia um fedor nauseante que pareceu pregar os meus pés ao chão, a despeito do meu esforço e de todo o meu pavor…

Mas, sem demora brandi a minha espada, pois sou guerreiro, e em boa hora estivesse para morrer, não iria sozinho, e apresentar iria à sombra demoníaca que se aproximava o amargo gosto de fel da minha lâmina! A mesma, cuja superfície polida e brilhante, fulgurou impávida, dissipando a escuridão ao redor de mim como um farol na noite escura de um mar bravio.

Mas eis que uma voz, doce e profunda, sussurrou para que eu pudesse ouvir, à maneira de uma brisa nas folhas de uma árvore: Venha comigo, nobre e corajoso cavaleiro. Uma voz tão suave e macia, que de tão angelical, afagou os meus preocupados e atentos ouvidos, e deitou de volta os meus cabelos no seu devido lugar, de onde nunca deveriam ter saído.

Era uma criatura feminina e formosa, que de tão graciosa, não me lembro de ter encontrado similar. Nem mesmo na corte do rei Julian, famosa por suas damas e meretrizes, encontrei mais radiante exemplar de mulher!

Ela trazia uma tocha de uma luz azul libertadora, que as sombras e o mau que vinha com ela, pareceram desaparecer perante a sua emanação!

Seguia-a sem pestanejar. Minha musa salvadora, pois sua beleza hipnotizara os olhos e o coração deste calejado guerreiro!

Corremos com especial pressa pelos estranhos túneis à nossa frente. Um após o outro nos sucediam, até que paramos num alto salão encravado na rocha pura.

E eis que ali ela me disse: Aqui, encontrarás a sua redenção!

Fez-se um silêncio desconcertante... Por alguns minutos ela me olhava fixamente, sem dizer nada, e eu, da mesma forma agia, sem o saber porquê…

Seus olhos, entre um azul claro brilhante e um cinza metálico, observavam-me com estranheza… Um maldito sorriso imutável, pregado no seu rosto meio que artificialmente, incomodavam os recônditos mais profundos do meu ser!

A tocha caiu de sua mão… e ela pareceu gemer com uma dor tão lancinante que tive de tapar os meus ouvidos para não enlouquecer com o seu lamento.

E assim, tão logo o seu abdômen pendeu para o chão, como uma bolsa asquerosa e cabeluda, que na mesma proporção de velocidade saltei para trás, sem nem saber onde ia cair. Um pus vermelho escuro vazava daquilo… E das costas, ventre e ombros, surgiram, como que saltados e por encanto, apêndices articulados e sinistros, que não paravam de se mover com sofreguidão! Naquele momento, eu facilmente rastejaria pelo chão como um maldito camundongo, e daria de me entrar em qualquer buraco maior que uma moeda, mas nem isso tinha naquela imunda escuridão.

Desta feita, enquanto a sombra retornava gradualmente à extinção do fogo azul da tocha, a mulher tomava os contornos de um grande ser na forma de uma aranha!

Tanto que, nessa hora, não faltaram santos ao meu já farto repertório, e desconfio eu mesmo ter criado três ou quatro categorias e nomes que jamais existiram. Apelei também para os deuses celtas, os Jinns indianos, os Devas budistas, para os espíritos dos antepassados, e para aquela qualidade de seres que os camponeses juram ver e que se escondem no bosque profundo.

Ao desembainhar a minha espada, e pronto para morrer com honra, a luz de sua lâmina libertadora revelou-me um exército de seres artrópodes pendendo do teto e das paredes por sobre a minha cabeça! Uma chuva de teias fétidas e visguentas me retiveram num muco semelhante a vômito, deixando-me imóvel diante da terrível ameaça que se aproximava.

A entidade, que assumira uma forma quase impossível de descrever, mas que em tudo lembrava uma aranha, aproximou-se de minha pessoa.

E outras também vieram…

A Aranha-mor, arrancou das menores, as suas patas… e enfiou-as em mim, atravessando as minhas costelas, atingindo as minhas entranhas, transformando-me numa grotesca imagem de um homem com patas de inseto, como uma marionete ou espantalho… e fez isso, até que se contassem oito… quatro de cada lado….

Comecei a sentir calafrios, o sangue não abandonava o meu corpo, pelo contrário, se infeccionava cada vez mais com a presença dos corpos estranhos em mim.

Numa reação extrema, aquelas patas se fundiram... as minhas pernas caíram… e me tornei um tronco de homem em forma de aranha…

Agora vago pelos túneis e lugares escuros… e hoje… andando pelos calabouços do castelo de Vanghor, encontrei um cadáver de prisioneiro que escrevia uma carta… provavelmente para jogá-la ao mar numa garrafa… mas a morte o encontrou primeiro… Ele teve sorte...

Então, aproveitando as penas e os papiros que encontrei, procurei escrever esta mensagem, usando apenas a minha boca, pois os meus braços de humano já se foram há muito tempo...

Leve-a em conta, aquele que a ler… E espalhe a mensagem a todos! Queimem os túneis, destruam tudo!

E jamais se deixem levar pelas aparências…

Hoje, como aranha, posso vislumbrar a alma das pessoas… radiando como chama ao redor delas. E são nas melhores, nas pessoas de bom coração, que a alma irradia de forma espetacular e brilhante, muito mais bela e encantadora, que qualquer beleza fugaz, fadada à putrefação, ao barro, e ao túmulo…

Um alguém...