BURACO NEGRO - I

Buraco Negro

I

— Não devíamos estar tão nervosos... ele é só uma criança. Não tem como um garoto cometer essa brutalidade.

— É, o que você acha que vai acontecer? Ninguém vai dar falta dela! Vão apenas esquecer e seguir a vida. Acredita mesmo nisso querida.

— Você quer que eu acredite no que então? Que nosso filho... Nosso Lucas matou aquela mulher. Você se lembra de quanto sangue havia, de como ela estava. Pelo amor de deus Marcos, a mão dela estava deformada, tenho até medo de imaginar como um braço pode ficar tão esfolado daquela forma.

— Escute querida! Nós somos tão culpados agora como ele, afinal nós trouxemos o corpo, ela está no nosso porta-malas agora, nem deus conseguiria tirar a quantidade de DNA que a PORRA da perícia vai encontrar.

— É só queimar... — Sugeriu Daniele, num tom quase inaudível.

— O que você disse? Está ficando louca, se fizermos isso estaremos sendo cumplices em um crime e você sabe quando custa um SUV daquele.

— Você não tem seguro?

— Tenho... mas...

— Mas o que Marcos, queima a droga do carro numa viela por ai e finge que foi roubado.

— Tá, mais e o corpo.

— O corpo, o corpo. Vamos escondê-lo por enquanto. Até pensarmos no que vamos fazer.

— Sabe que isso vai destruir nossa família.

— Já destruiu... no momento que encontramos nosso filho do lado daquele corpo.

Marcos a entreolhara com veemência, sem acreditar no rumo que a discussão havia tomado, seria agora cumplice de homicídio, não que isso significasse muita coisa no Brasil já que um assassino não fica muito tempo na cadeia, mas toda sua carreira de medico cirurgião, seus status, sua reputação, tudo entraria em queda livre para dentro de um buraco negro. Daniele parecera devastada e durante a conversa mostrou uma faceta que nunca vira nos últimos dezessete anos de casamento. Ele passou as mãos no rosto com força, deixando pequenas marcas avermelhado-rosas nas bochechas e na testa que esculpiam o formato de seus dedos. Dani pode ver de longe as veias em seu pescoço saltarem simultaneamente, e pelo que conhecera de Marcos, significava que estava realmente nervoso.

Como um marido obediente, Marcos pegou duas luvas de látex e seguiu para a garagem. Seus olhos brilhavam no escuro como duas lanternas, seguindo o extenso corredor do quintal até a escadaria. — Se-já-fe-liz — explodiu uma voz em seu sapato. Marcos parou. Era um dos brinquedos antigos de Lucas, um dinossauro que havia comprado em 2013 em seu aniversário de oito anos. Agora não passava de uma lembrança deturpada pelo fato de seu filho ter matado uma mulher brutalmente. Não era fácil para ele fazer essa conexão, mas o pior era não poder nem ao menos pensar em seu filho sem que a imagem daquela mulher lhe surgisse aos olhos.

— Seria melhor se tivéssemos a deixado lá....

— Sabe muito bem o que aconteceria depois. Agora ajude-me.

Marcos e Daniele se aproximaram do porta-malas. Havia uma marca de sangue sob a fechadura, e alguns respingos envolta da lataria. Sorte para eles que a cor do carro era escura.

O som metálico da chave tilintando umas nas outras era tão grave e infortúnio. Marcos havia arregaçado as mangas e Daniele pode ver muito bem os pelos de seu braço se arrepiarem.

O cheiro do sangue nunca lhe pareceu tão forte como naquele momento. Ele se apoiou na lataria do carro, colocou a chave e puxou a porta para cima. — Eva... — Chamou Marcos com os olhos, tendo esperanças que ainda estivesse viva. Mas a realidade nunca é o que pensamos. O corpo de Eva Garcia estava inclinado numa posição diagonal, parecia até um boneco de cera, a maquiagem do seu rosto se desmanchava junto ao sangue. Seu braço esquerdo estava sobre sua cabeça, duro como uma pedra, com a mão fechada e uma das unhas quebradas, como se tivesse tentado se defender. Seus olhos ainda abertos fitavam o vazio. — Puta merda. — Gritou Marcos, colocando a mão direita na boca. O braço direito de Eva estava estraçalhado, era possível ver pedaços de pele e ossos onde deveria haver uma mão e dedos, e toda a parte superior do seu braço havia sido rasgado por uma espécie de faca.

— Jesus Cristo! Acha mesmo que nosso filho faria isso?

— Achamos ele ao lado do corpo, ao lado de uma faca, cheio de sangue nas mãos e na boca. Na boca. Não sei o que pensar.

— Eu sei... eu sei. Mas sabe quantos anos ele tem. Como um garoto de catorze anos, catorze, conseguiria fazer isso. Ele é praticamente uma criança.

— Me ajude a tira-la do porta-malas.

Marcos a segurou pelo braço bom, levantando-a com calma para fora. Ele a apoiou no peito e a puxou pelos ombros com ajuda de Daniele que gritou ao tocar sem querer nos pedaços de pele que estavam presos no vestido dela. Marcos se assustou com o grito e acabou soltando-a no chão. O som estalante do crânio no piso foi terrível. E agora o chão estava todo sujo de sangue.

Ambos a fitaram no chão, como se pudesse sair gritando de dor. Após trinta segundos sem ar. Daniele tomou folego. — Vamos, os vizinhos podem ter ouvido.

Marcos puxou-a pelas costas e virou-a. Um corte perpendicular surgiu em sua testa, mas não sagrou, não mesmo e Daniele se surpreendeu... A testa de Eva achatara cerca de dois centímetros para dentro e ao entorno da ferida uma cor esbranquiçada-roxa se formara, como se sua pele tivesse atingido uma textura próxima a de manteiga.

Não era fácil carregar um cadáver, sentir a pele áspera e gelada fizera o arrepiar, um arrepio agônico que descia do alto da sua cabeça até a espinha. Suas mãos a abraçavam, tentando suspende-la, mas, carregar um cadáver tinha seu peso emocional, visto que aquilo mudaria eles para o resto da vida.

— Ai meu deus Marcos, viu o que você fez!

— Como assim o que eu fiz. Foi você que me assustou...

— Cala a boca e vamos tira-la logo daqui.

Enquanto conversavam distraídos, Raul o vizinho passou pelo portão em silencio. Eram oito e meia, Raul costumara passear pelo condomínio com seu São Bernardo. E a luz da garagem estava apagado, mas não difícil ver a sombra do casal Alves próximos do porta-malas.

— Marcos... É você aí. — Chamou Raul, aproximando-se do portão.

— Puta merda é o Raul. Segura ela.

— Marcos... — Repetiu Raul bruscamente, aproximando-se mais do portão.

— Mar...

A luz se acendeu.

— Oi Raul, como vai. Estava procurando algumas coisas no porta-malas. — Respondeu Marcos abrupto.

— Você está bem cara?

— Estou sim, acabamos de voltar do casamento da senhora Martins do 115.

— É... — Respondeu Raul, com uma expressão desconfiada.

— Desculpe perguntar, mas como ia achar alguma coisa no escuro.

Daniele se esforçara para segurar Eva agachada atrás da roda traseira esquerda. Enquanto isso Marcos ficara sem resposta, engasgado, enquanto Raul o observara atenciosamente do lado de fora.

— Eu...

— Quer saber, deixa pra lá, estar tudo bem é o que importa não é mesmo. — Falou Raul apertando a coleira entre os dedos.

Raul notara algo de errado mais nada que pudesse atiçar sua curiosidade para mais além do que aquela conversa faceira. — Até. E boa noite. De um abraço na sua esposa por mim e diga a ela que se quiser pode ir ao clube do livro amanhã.

— Até. — Acenou Marcos, com um sorriso tão falso como uma nota de trinta reais.

Eva pesava cerca de sessenta e cinco, o que pesava era sua bunda. Marcos não parava de pensar em como tinha sido fode-la a dois anos atrás antes de conhecer Daniele, um sentimento nostálgico que começara a ser redesenhado pelo fato de estar carregando seu corpo para dentro de sua casa. Ambos a seguraram pelos ombros e a levaram até a área de serviço. Enquanto a arrastavam pelo corredor, seu sapato vermelho brilhante escorregou de seu pé e caiu atrás de um vaso de espada de Espada-de-são-jorge.

— Vamos fazer o que agora?

— Eu não sei.

— É, e vamos fazer o que com esse cadáver.

— Droga já disse que eu não sei. — Gritou Daniele, chorando.

— É claro que você não sabe de nada. Você nunca sabe de nada. E eu sou um idiota que ainda acredita em você. Me lembra porque estamos casados mesmo. — Esgoelou Marcos, num tom mais alto e rouco.

— Está sendo injusto sabia. Quem é que se mata o dia inteiro naquela merda daquela firma de advocacia. Quem é que tenta criar um relacionamento estável no condomínio. Você que não é... mal passa os finais de semana em casa. É sempre, “querida não posso estou no maldito consultório organizando tudo para uma cirurgia’.

Daniele estava com a orbita dos olhos avermelhada, parte de seu rímel estava solto e suas lagrimas borravam toda a maquiagem.

Enquanto o homem errante crescia dentro de Marcos, Daniele pensara num futuro aonde não teria mais que uma cadeira num palco em frente a um auditório vazio. Não importa se a polícia descobrisse ou não, ela sabia o que estava fazendo, sabia tão bem quanto desfiava, e isso a destruía por dentro. — Vamos ficar parados ao lado disso.

— Disso. Ela tem nome. Sabe disso não é.

— Não se faça de idiota, não temos tempo para isso.

Ela se ajoelhou a frente do corpo, apalpando o vestido até encontrar o celular de Eva que estava descarregado. — antes vamos nos livrar disso.

Marcos segurou-a pelo braço bom e a arrastou até um frízer que havia sob um amotado de caixas velhas.

— Quer deixa-la aqui.

— E onde mais.

— Podemos ao menos leva-la para dentro. Deve haver um lugar melhor.

— Quer mesmo que a casa comece a feder. Porque logo ela vai começar a apodrecer e não vai ser nenhum um pouco bonito.

Daniele permaneceu calada, e foi assim o resto da noite.

Continua...

Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 17/07/2018
Reeditado em 18/07/2018
Código do texto: T6392957
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