MINHA CULPA - CLTS 05

O vilarejo surgiu depois que a estrada foi feita. Alguns dizem que ela remete ao tempo do Império e que foi feita por escravos para ser um caminho para a cidade de Fortaleza; outros, que ela foi construída para viabilizar o transporte de mercadorias.

Não há asfalto, nem calçamento, somente a terra batida e pedregulhos nos acostamentos. Parte do vilarejo fica à sua direita e o outro lado, à sua esquerda. No sentido litoral, ela dá acesso à capela e ao cemitério; já no sentido sertão, às serras, brejos, plantações e criações de gado.

A iluminação elétrica nunca chegou, então a via nas noites conta apenas com a luz da lua para facilitar o trânsito pouco movimentado que em sua grande maioria é de pequenos comerciantes em suas carroças e romeiros, pagadores de promessas. Alguns dizem que muitos morreram nesse caminho; outros, que veem coisas. O fato é que é uma estrada antiga e repleta de histórias, muitas delas, tristes e sombrias.

Numa certa noite, em tempos de seca em que com a pouca luz da lua se via os crânios de bois nas cercas de arrames e o vulto branco das corujas, um homem vinha cainhando pela estrada, voltando da roça onde trabalhava. No ombro, portava sua enxada e na cabeça, um balde com água que pegara do poço do patrão.

Naqueles tempos, água era algo pouco, que mal dava para os bichos e para as plantas. Era sagrada. André, depois de um dia inteiro de serviço pesado, levava o pouco de água que podia para sua família. Lá a água era dividida para beber e fazer a comida. Andando sozinho rumo ao vilarejo, ele vê um senhor de idade escorado em um pequeno memorial fúnebre ao pé da estrada. O velho está vestido com uma calça velha, pés descalço e usando uma velha blusa de botões. Sobre a cruz do pequeno memorial, construído com tijolos, está o seu chapéu de palha. Ao se aproximar do idoso, André o cumprimenta e logo é respondido:

- Boa noite, meu filho.

Apensar de estranhar o fato do velho estar no meio da estrada à noite, André não faz perguntas e segue pela via. Quando passa pelo idoso, ouve sua voz rouca:

- Me dê um pouco da sua água pra eu aguar essa planta.

André, faz ouvido de mercador, ignora o velho e segue andando. Porém, logo ouve novamente o rouco velho dizendo:

- Me dê um pouco da sua água pra eu aguar essa planta.

Um pouco irritado, ele se vira sem tirar a enxada ou o balde do lugar e diz:

- O senhor tá de provocação?

O velho sem olhar para ele, responde com uma voz serena, porém rouca:

- É só um pouco de água pra aguar essa planta que cresceu aqui do lado dessa lembrança pra esse finado que morreu ao pé-da-estrada.

A planta estava secando devido ao calor, era fato, mas nunca André iria gastar numa planta o pouco de água que portava:

- Meu senhor, se o senhor tivesse pedindo água para beber, eu nunca iria negar, mas gastar nessa planta o pouco de água que tenho, eu não vou. Me perdoe!

- Mas é só um pouquinho.

Com uma cara fechada e de modo ríspido, André pergunta:

- O senhor tem algum problema pra andar ou só tá bêbado?

- Nenhum dos dois.

- Pois vá pra sua casa dormir e deixe eu seguir meu rumo.

André, sem mais querer perder tempo conversando com o velho, volta para seu caminho e segue em direção à sua casa. Na trilha, somente o som das aves e os chocalhos das cobras traiçoeiras que se espreitam embaixo das pedras que racham à noite, dilatando-se com o choque de temperatura.

Ao chegar em casa, molha os pés e o rosto, depois despeja a água do balde no pote da cozinha. Ríspido, mal fala com a mulher que logo coloca sua janta. Ao sair da mesa, um cigarro no alpendre e um copo de cachaça entretendo a vista olhando para os morcegos que pegam os poucos insetos que resistem à estiagem.

Um cuspe no chão para tirar o cheiro do cigarro da boca. Duas ou três palavras com a mulher e então vai dormir de rede enquanto ela, na cama. Noite pesada. Pesadelos não deixam seu espírito em paz. Em sonho, seu corpo está dilacerado ao pé da estrada, seu sangue e corpo quentes, queimando em pleno meio-dia enquanto os urubus profanam sua carne. Pior do que as aves é o calor. Sua garganta seca parece rachar como o chão do sertão e sua língua parece pegar fogo, tornara-se parte do próprio Inferno em terra. Dia pesado, noite pesada, corpo e alma cansados.

No outro dia, bem cedo, acorda, toma o café feito pela esposa e segue a estrada para o serviço. No caminho, encontra alguns colegas que trabalham nas roças da região. Junto deles está o Seu Toinho, o mais velho de toda a região que com cabeça baixa e uma postura triste fala para André:

- O patrão dispensou todo mundo. Não vai ter serviço por esses dias.

- Valha-me Deus! Por que ele fez isso com a gente?

- O poço secou de ontem pra hoje e ele não tem dinheiro agora pra cavar outro.

- Mas como pode isso ter acontecido tão rápido?

Saindo da estrada e indo se escorar no pequeno memorial onde coincidentemente André encontrou o idoso que pediu água, Seu Toinho diz:

- Aquele poço é bem antigo. Olha aqui quem o cavou.

- Quem? – pergunta André olhando em direção ao velho.

- Esse memorial foi eu quem fiz em lembrança do meu velho amigo Amaro que foi assassinado bem aqui. Dizem que quem o matou foi gente da família do patrão, talvez o avô dele. Uns falam que ele foi morto numa noite logo depois de ter cavado o poço e ter cobrado ao patrão.

Ouvindo isso, André se aproxima do memorial e vê espantado a foto do defunto:

- Meu Deus! Não pode ser! É o velho que vi ontem!

Seu Toinho, com uma expressão de espanto, olha para os outros homens que estão com ele e em seguida pergunta para André:

- Mas, André, você tem certeza disso? Esse homem morreu há muito, muito tempo. É ele mesmo?

- É ele! Eu vi ele ontem! - responde com uma expressão assombrada.

- E o que aconteceu? – pergunta um outro velho boquiaberto.

- Ele me pediu água!

- O quê? – pergunta outro homem, amigo de Seu Toinho.

- Eu tava passando ontem por aqui e esse velho me pediu água.

Seu Toinho, olhando no fundo dos olhos de André, pergunta:

- E você deu água a ele, né?

André hesitou em responder a pergunta por vergonha, sabendo do erro que cometera. “Meu Deus, foi culpa minha a falta de água. Foi uma maldição. O poço secou por minha culpa”. Percebendo que ele ficara calado, outro senhor o questiona:

- Você negou água a alguém?

Vendo que não tinha como escapar da pergunta, André revela o que fez:

- Eu pensei que era um bêbado! Eu só tinha um balde d’água! Mal deu pra hoje! Eu não sabia quem era o velho! Ele pediu água pra aguar uma planta! Não era pra ele!

Nessa hora os homens se benzem. Seu Toinho se aproxima do memorial, ergue a vela que estava derrubada, tira uma caixa de fósforo do bolso e diz:

- Não se faz isso, meu rapaz. Água é sagrada. Você sabe disso. Não se nega água a ninguém...

- Mas, eu não sabia que...

Ele silencia ao ver Seu Toinho tirar o chapéu, assim como os outros que estão com ele. Em seguida, a vela é acesa pelo velho que logo se benze. Inquieto com a situação, André pergunta:

- Por que acender uma vela para o velho uma hora dessas?

Virando-se para André, Seu Toinho com uma expressão firme, levantando-se diz:

- Essa vela não é pra ele, meu filho.

Então ele percebe que todos os outros sacaram suas foices de trabalho, e com os olhos cheios d’água suplica:

- Pelo amor de Deus! Eu não sabi...

Palavra e vida ceifadas. Foi preciso. Para certas coisas não há perdão. A água é mais valiosa que qualquer vida humana. O erro justifica o castigo. O melhor remédio para o pecado é o sacrifício. E assim foi feito.

O pesadelo da véspera era um mal presságio. A alma do velho Amaro presenciou aquele corpo ser esfaqueado, tendo partes dilaceradas e esfoladas ainda quando o corpo do pobre André respirava. Depois dos homens com seus facões que gotejavam se afastaram, foi a vez das aves carniceiras continuarem o sacro serviço que só foi concluído com o escaldante sol que espiou o pecado do homem sugando seu sangue para baixo da terra.

No mesmo dia, uma outra vela foi posta e um novo retrato foram colocados no memorial. Assim surgiu mais uma alma sedenta e pedinte para aquela estrada assombrada pelas corujas e cobras agourentas. Até hoje, alguns homens que passam por ela, nas noites de lua, no período das secas, ouvem os sussurros frios da alma incandescente do pobre André dizendo “minha culpa”.

TEMA: ESTRADA

HENRIQUE SANTOS CE
Enviado por HENRIQUE SANTOS CE em 13/11/2018
Reeditado em 20/11/2018
Código do texto: T6501981
Classificação de conteúdo: seguro