Vinte e quatro meses

Despertei porque o calor no quarto era sufocante. Havia faltado energia elétrica. Abrir a janela o suficiente para que o vento entrasse. Que alívio. Suada e também irritada devido a falta de luz decidi tomar uma ducha. O bairro estava num completo breu, se ouvia apenas os latidos dos cachorros.

Abri as gavetas em busca das pilhas, porém lembrei-me que havia esquecido de comprá-las. Achei alguns pedaços de velas. Usei meu isqueiro para acendê-las. Legal, luz, finalmente.

Passei no quarto de Camila e a mesma dorme e ronca. Como consegue dormir num calor desse? Adolescentes. Vou descendo as escadas devagar com um baita medo de cair. Chego na cozinha segurando a vela e na penumbra alguém sentado na copa. Pisco várias vezes e lá está aquela figura sentada de pernas cruzadas me olhando.

- Quando voltou? - pergunto.

- Agora a pouco, ainda cheguei a te olhar dormindo.

- Deixaram você voltar de lá?

- Sabe como é, se vivo eu era indigesto, imagina agora morto.

Olho para Ismael e ele me olha. De repente seu rosto se tornou triste quase a beira do pranto.

- Eu tinha planos.

- Eu sei, eu também tinha planos quando me casei com você.

- Porque fez isso comigo, porque não me chamou para conversar?

- Chamei várias vezes, mas você estava ocupado esmurrando minha cara.

Ele olha para baixo e depois em minha direção.

- Não havia outra forma de acabar comigo, tinha que ser assim, doloroso?

Prendo a vontade de ri.

- Tinha que ver sua cara enquanto eu lhe enfiava a faca e a rodava.

- A polícia em breve vai descobrir tudo.

Não resisto e solto a gargalhada.

- Devo lembrar que sua carne ficou ótima com cebola, pimentão e tomate, sua filha até repetiu, sabia?

- E o que fez com os ossos?

- Deu trabalho, mas consegui triturar e espalhar nas areias da praia.

Ismael volta a estampar aquele olhar soturno.

- Sempre que eu puder voltarei para lhe perturbar, sua maldita.

Explodi em gargalhadas. Debocho daquela pobre alma penada na minha copa. Ismael continua a me olhar e eu sorrindo.

- Duas coisas meu querido marido, sabe porque você nunca mais vai voltar para me perturbar? Dê uma olhadinha para trás.

Ele olha. Perto da porta uma outra figura vestida de vermelho vivo está de pé olhando para os dois.

- Ele é o ser responsável por conduzir as almas ao inferno e outra, eu não acredito em alma penada que volta para perturbar. Agora com licença, vou tomar um banho.

Ismael anda na direção do ser que abre a porta da cozinha para ele. Um vento quente, ruidoso com som de vozes que clamam vem de lá. Ismael desaparece ao passar pela porta. O ser de vermelho a fecha e antes de sair ele anda até o banheiro de onde vem o som de água caindo. Ela deixa com que a água gelada escorra por suas costas. Ao abrir os olhos ela olha para o ser que diz.

- Vinte e quatro meses, apenas. - sai do banheiro. FIM

Júlio Finegan
Enviado por Júlio Finegan em 17/11/2018
Código do texto: T6505030
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.