MINHA NOVA PELE

Era uma sensação recorrente. Eu sentia as nuanças do relvado em meu ventre, ora a quentura do barro em tardes de primavera, ora o gélido orvalho de manhãs invernais. Mas as carícias dos descaminhos pouco importavam, o que realmente era relevante convertia para o fato de que eu não deveria estar em movimento daquela maneira, mas, ainda assim, eu estava. Contraindo a musculatura abdominal, descrevendo meu percurso de modo sinuoso.

Com desenvoltura, contornei o tronco espesso de uma árvore, chegando rapidamente à copa e, de lá do alto, vislumbrei minha indefesa vítima. Senti o deslocamento de minha mandíbula, um ângulo improvável e letal. E, no instante em que saltei sobre seu corpo, envolvendo-o num abraço sufocante, enquanto prendia-o pela cabeça com minhas presas, simplesmente acordei.

Meu corpo estava banhado por um suor frio e perturbador. Minha esposa dormia tranquilamente, totalmente alheia às minhas preocupações. Os sonhos estavam cada vez mais presentes, mais verdadeiros e intensos. Na noite anterior vislumbrei minha própria existência, na qual eu devorava minha vítima, enquanto a afogava em giros de morte nas águas escuras de um rio.

Cada noite era um pesadelo diferente. Cada episódio com sua própria singularidade, porém todos convergindo para um ponto em comum, algo que inegavelmente corroborava uma velha história que minha tinha contava, antes que ela também se fosse, bem antes de eu ser enviado para os cuidados do Estado.

Meus pais eu nunca conheci. Minha tia cuidou de mim enquanto pôde. Ela atribuía minha origem a algo, na melhor das hipóteses, incomum. A velha senhora me contou numa noite escura, sem luar, que minha mãe gostava de se aventurar em empreitadas desafiadoras, e, numa dessas incursões ao desconhecido, ela e seus amigos se depararam com a entrada de um submundo de dor e perversão incrustrado no meio da floresta.

Dos amigos, nenhum restou. As moças e rapazes, companheiros de outras ocasiões, foram retalhados, mortos e devorados por criaturas que até então habitavam apenas o seu imaginário. Seres que temiam a luz, e que não ousavam se arriscar em nossas paragens justamente por conta disso. No entanto, essa ânsia por se libertar de tais limitações fizeram com que para a minha mãe um destino ainda muito pior do que o dos seus amigos estivesse reservado.

Lembro-me muito bem da expressão de minha tia ao dizer, sem se importar com a minha reduzida idade, de que minha mãe fora violentada pelas criaturas na esperança de que ela gerasse um híbrido capaz de vencer os limites do dia.

Ou seja, eu seria fruto de uma ação nociva contra a minha mãe, eu seria filho daquelas criaturas, seres que já receberam diferentes nomes, em inúmeros lugares e línguas, tema do imaginário coletivo, mas que na verdade seriam muito mais do que lendas.

Segundo o relato, minha mãe foi liberada para seguir seu caminho, e contou que eu nasceria e que no momento do meu amadurecimento teria de escolher meu próprio destino. Mas, ela morreu durante o parto e fui entregue aos cuidados de minha tia, que também veio a falecer sem que nada acontecesse comigo. Cresci numa instituição para menores. Casei e estou assim até hoje, sem qualquer indício de anormalidade, a não ser pelos pesadelos que me assombram nas últimas semanas.

Em um desses devaneios noturnos, eu me transformava num daqueles seres, meio homem, meio réptil, e logo após trocar a minha pele humana por uma escamosa, eu devorava carne humana, tornando-me assim um monstro definitivamente, encerrando um ciclo e selando meu destino.

Nada disso me importava até pouco tempo, mas concomitantemente às perturbações noturnas, tem crescido em mim uma ansiedade, um desconforto. Conversei com minha esposa, expliquei tudo que me acometia, obviamente ela tentou demover-me de tais pensamentos. Porém, quando passei a sentir algo diferente em sua presença, uma sensação que falava diretamente aos meus instintos mais primitivos, resolvi sair de casa sem maiores esclarecimentos. Pois, envergonho-me de dizer, mas senti fome ao toca-lhe a pele.

Andei pelas ruas durante a madrugada. Eu era homem feito. Como poderia estar amadurecendo naquele momento? A não ser que tais criaturas não refletissem o nosso crescimento biológico. Apenas conjecturas, mas o fato era que eu estava me transformando. Uma dor imensa atacava meu estômago. Uma dor indescritível. Meus ossos estalavam, ao passo que placas duras, de tonalidade esverdeada e enegrecida passaram a romper meus poros despejando filetes de sangue no asfalto.

Aquelas escamas cresciam por todo o meu corpo, enquanto nacos de pele morta caíam em toda parte. Um novo sorriso, aguçado e ferino estampava meu rosto. Eu conseguia enxergar com exatidão, a noite não me exigia segredos. Logo, em poucos segundos, a despeito das minhas mãos, eu estava transformado em algo não humano.

Mas, o que mais me perturbava era a fome incomum, avassaladora, incontrolável. Eu tentava me agarrar ao pensamento de que deveria resistir a vontade de provar carne humana. Se eu conseguisse, se fosse bem sucedido até o chegar de um novo dia, uma nova pele me cobriria e eu seria humano de novo, para sempre.

Eu precisava ser forte, mas era difícil. Um instinto assassino parecia tomar conta de mim. Eu andava pelas sombras das ruas, evitando as pessoas. Mas o desespero da fome me apunhalava. Talvez, se eu aplacasse um pouco essa dor seria possível ter mais discernimento para prosseguir. Pobre do cão vadio que cruzou meu caminho.

Enlacei-o com meus braços fortes, tirando-lhe as forças e o ar dos pulmões. Entorpeci seu corpo com o veneno de minha saliva, enquanto mordia-o freneticamente. Esmaguei seus ossos até virarem uma massa gelatinosa. Deixei meu maxilar se soltar ao passo que fazia força para expandir minha capacidade de engolir. E, de uma só vez empurrei o pobre animal pela garganta.

A satisfação pela refeição não aplacou a dor, pelo contrário, instigou ainda mais a vontade de provar a refeição proibida. Eu queira gritar, mas não tinha voz, apenas um sibilar gutural se fazia presente. Foi quando vi na minha frente, num ponto de ônibus, um homem ameaçando uma jovem com uma faca. No horizonte a luminosidade do dia ensaiava sua presença. Faltava pouco, mas o ínfimo de humanidade que ainda resistia em mim não podia deixar que aquela moça fosse ferida.

Corri até eles e, ao me ver, o homem deixou a faca cair, enquanto a jovem chorava, certamente por mais medo de mim do que daquele que a ameaçava há pouco. Não me preocupei com isso e focalizei toda a minha ira, toda a minha frustração no pescoço daquele ser desprezível. Eu queria mordê-lo, mas ao invés disso apenas passei a apertá-lo até que seu rosto ficasse cada vez mais roxo.

Senti dois impactos nas costas e, ao me virar, percebi que dois policiais disparavam em minha direção. Larguei o sujeito e corri pelo beco ao lado do ponto. Os homens da lei me perseguiam, mas não podiam se comparar à nova habilidade que me revestia e, em poucos segundos eu havia escalado as paredes para me esconder no telhado.

Uma nova dor me dominava. O sangue era vertido pelos buracos abertos em minha carapaça. Eu sentia que iria morrer, apesar de todo o esforço. Coloquei as mãos no rosto. Já dava para sentir os filetes luminosos em minha pele, mas eu não sabia se daria tempo...

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Cheguei em casa e minha esposa ainda dormia. Ao tocar-lhe o rosto, ela despertou. Com um sorriso, ela me recebeu. Ela reconhecia os contornos da minha face, o que era bom. Acariciei seus cabelos e ela percebeu os filetes de sangue que escorriam de minhas mãos. Eu gostaria de dizer-lhe que tudo tinha dado certo, que a luz de um novo dia havia devolvido a minha humanidade. Porém, isso seria mentira. Eu teria de contar-lhe que fui egoísta. Que fiquei com muito medo da morte. E que uma vez com as mãos no rosto, senti que ali ainda havia carne humana e sem pensar por um segundo, devorei partes de minhas próprias mãos consumando a escolha do destino.

As balas foras expelidas no meu corpo, pois havia me tornado aquilo para o qual fora criado. E, antes de aceitar minha nova condição, voltei para casa, para minha esposa. Uma nova troca de pele havia ficado pelo caminho, uma pele verde e repulsiva. A nova era humana e mais letal, pois passaria despercebida no novo mundo.

Abracei com força a mulher que amava, até seus ossos quebrarem. Beijei seu rosto e senti o ácido corroer sua pele, expandi mais uma vez minha boca e a devorei.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 21/01/2019
Código do texto: T6556151
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