Perseguindo o Inimigo - DTRL32

Sobre o solo, caminho, no vale vermelho. Termino meu cigarro, cai o sono, continuo meio sonâmbulo à beira do abismo. Tenho fome, sede. Sou um pesadelo enclausurado em uma cápsula perdida, uma parte mesquinha de um átomo, um espirro indesejado de alguém que tem uma relação, uma reação.

Sou a gota fresca que cai da chuva ácida que queima, a lama densa que empurra vidas, sou a imperfeição quase tão perfeita, uma simetria inexata com o paradoxo tosco de uma dádiva nuclear. Sou o inferno gelado de um tempo mudo. Dos três mosqueteiros parados, da trindade apontando suas espadas cegas em um relógio vesgo que não enxerga o futuro, deles sou um trunfo.

Deitado na rede bamba de minha imaginação balanço nos braços fixos de minhas asas, seguro o nó e zombo da gravidade que é uma grande lacuna, me equilibro no desequilíbrio de meus atos.

Sobre a penumbra, pesadelos reais me abordam e abortam minha esperança, e me permito, no ritmo acelerado de um peito vazio e choro. Lágrimas rompem uma barreira e transbordam sinais de vida em uma lamparina acesa, onde as velas choramingam, derramando cera, imploram sobre algum altar, ou em centenas deles.

Teimo, entusiasta pela vida que sou, rei de mim mesmo, tento. A derrota chega tão breve quanto minha ousadia, e o dia, ele finda. Os raios de sol secam na lama e secam a lama, queimam a pele, dão brilho ao metal perdido e mergulhado no denso rio, e os risos não existem mais, nem motores, nem luz, nem passageiros, nem pássaros cantam.

Solto um suspiro, grito em silêncio e ouço o eco dos meus próprios pensamentos, a depressão, a dor, tudo teima. Meu pulso, ele não pulsa e isso dói, solidão.

A lama adentra meus olhos, empurra, afunda e distribui a sensação pelo meu cérebro, me ilude, me anula, me culpa. Maldita eternidade que é tão eterna! É apenas um pensamento, uma reação, uma sentença.

Paro, o som das hélices, o cheiro do corpo, o trauma, a falta de calma. Tudo se funde e se confunde e logo sinto, pisco, os olhos piscam e estou de volta. Volto.

O corpo é içado, só o corpo. A memória está lá, em algum lugar daquela cidade. Sem sangue nas veias, sem pele, só uma ossada. Vejo, enquanto vago no vale sombrio, os bombeiros indo, o barulho fugindo de mim, eles indo. Continua o cheiro podre dos animais mortos, odeio sangue destes, que nem vivos me satisfazem de fato.

Vejo tudo isso, observo, persigo, quero tomar um gole, mas é tanto sangue derramado. Escuto alguém chorando na mata, um sobrevivente, caminho até ele, sinto seu cheiro, seu hálito. Sinto sua pele sob a lama, eu persigo.

Poderia deixa-lo viver, sobreviver, voltar para sua família. Poderia gritar para os bombeiros, voar até eles e sussurrar em seus ouvidos: “Ali está um sobrevivente”. Poderia, mas minha alma se foi há muito tempo, desaguou num rio, como a lama tornou-se inferno.

Mas tenho fome, tenho sede, tenho vontades, tenho uma presa.

Caminho sobre o vale, trajando toda minha palidez. Chego ao pé de uma árvore, o corpo encolhido, aparentemente devastado, coberto de lama. Me abaixo para acabar com seu sofrimento e então quando meus dentes vislumbram a veia alta de seu pescoço frágil,

Enxergo seus olhos e eles se erguem em minha direção, famintos.

Um grito, meu grito. Ele se levanta, segura em suas mãos minha morte. Fita-me com um olhar, parece que já o havia visto em algum lugar, não sei onde, não dá tempo de perguntar. Sem pulso, apenas sinto minha pele apodrecer, queimar de dentro para fora, do centro para um todo, estou queimando.

O toque da madeira afiada em meu peito vazio, estacando minha imortalidade, aquele olhar.

Queria dizer algo, queria mordê-lo, mas estou de joelhos e ele me olhando e se aproximando.

Tudo é tão breve, tão demorado, tão leve e tão pausado, nada faz sentido quando se está morrendo depois de, por que estou morrendo? Quem é você?

Ele me olha, sorri com seus dentes de lama e afunda no lamaçal. E então eu me desfaço, escutando eles rastejarem sobre a mesma lama, vários deles, eles estão à procura de vida, eu também estava, eu também.

Noticiário local, 03/02/2019

CORPO É ENCONTRATO EM APARTAMENTO

Encontrado morto em sua casa com a TV ligada, estava Jacinto Pereira de Souza, um homem que sofria uma perturbação mental, há suspeitas que ele sofresse de um quadro de Psicose Esquizofrênica. O homem em questão nunca foi internado, seus pais nunca aceitaram o diagnóstico.

O mais estranho é que ambos, pai e mãe, desapareceram no final da década de 90, os únicos registros de movimentações do Sr. Clodoaldo Pereira de Souza e da Sra. Margarida Pereira de Souza, são bancários, retiradas, saques e pagamentos realizados por meio de cartão de débito, crédito e cheques.

Dentro da casa, a vítima estava envolta em uma crosta de lama, o corpo completamente deformado, O Sr. Jacinto estranhamente tinha dois dentes, dois caninos mais pontiagudos, entretanto nas fotos espalhadas pela casa sobre os móveis originalmente não era dessa forma. A perícia está analisando se podem ser implantes.

A análise mostrou que a lama que cobre o corpo é a mesma do local de desastre da cidade de Brumadinho, que fica a mais de oitocentos quilômetros de onde fora encontrado.

No peito o sinal de uma perfuração, que atingiu o local onde devia ter um coração, mas que segundo a autopsia, de algum modo, não havia um. O corpo continua sendo examinado até que a equipe legista chegue a uma conclusão. Várias teorias estão sendo levantadas.

Ao abrir a geladeira e armários não havia mantimentos, nem arroz, nem macarrão, alho, nada, ah não ser garrafas de vinho das quais apenas uma, de um litro se encontrava na geladeira. Ao analisar o material, foi identificado que o liquido dentro do recipiente era sangue, não sangue humano, mas sim de um animal, provavelmente.

Noticiário local, 04/02/2019

NOVA NOTÍCIA SOBRE CORPO ENCONTRATO EM APARTAMENTO

Ao que tudo indica a vítima acreditava ser um vampiro desde os oito anos de idade. Foi encontrada uma carta onde à mesma relatou que descobriu que precisava para concluir o seu batismo de sangue, fazer dois sacrifícios humanos, de familiares, comer seus corações ainda quentes e sangrando e por fim, arrancar do seu peito o seu próprio coração.

Foi descoberto um porão na casa, onde foram encontradas várias ossadas, dentre elas o pai e mãe de Jacinto. Havia ainda um mural com fotos das pessoas que ele havia assassinado. E foi constatado que ele perseguia as vítimas, o assassino era um stalker que bebia o sangue de suas presas.

A perícia informou ainda que dentro de um pote foi encontrado um coração, em perfeito estado, conservado em uma geladeira. O maior mistério é que o coração pertencia ao próprio assassino.

Tema = Vampiros / Stalkers

"Com todo respeito à todos as vítimas do genocídio da cidade de Brumadinho"

Muito feliz pelo retorno do desafio, é a única coisa que sempre me fez postar algo por aqui.

Renato Chapéu e Ruy Moreira
Enviado por Renato Chapéu em 31/01/2019
Reeditado em 03/02/2019
Código do texto: T6564302
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