Doador universal

Séverin Bescond foi preso pela polícia como integrante de uma gangue que desviava alimentos industrializados e bens de consumo para o mercado negro. Os cabeças da organização foram quase todos condenados à morte por fuzilamento em praça pública (já que as forças de ocupação haviam considerado as execuções por guilhotina excessivamente cruentas, para transmissão ao vivo pela TV), mas Bescond, um simples capanga, foi sentenciado à 10 anos de pena em regime fechado. Submetido a um rigoroso exame de corpo de delito aquando de sua chegada à penitenciária, Bescond viu-se perante uma escolha aparentemente óbvia logo em seguida.

- Você está em perfeita forma física e não tem antecedentes criminais - comentou Gachet, o médico legista que o atendeu, lendo a ficha de registro.

- E daí? - Retrucou Bescond.

- Daí que posso lhe conseguir uma transferência para a ala VIP da penitenciária.

A expressão de Gachet era impenetrável, mas Bescond imaginou tratar-se de uma piada.

- É mesmo? Ala VIP? O que tem lá? - Indagou com ironia.

- Celas para dois ocupantes com camas limpas e banheiro com chuveiro, três refeições por dia, quadra de esportes, sala de TV e biblioteca - enumerou o legista. - Se você tiver bom comportamento, até lhe arranjamos encontros semanais com as presas da ala feminina.

Bescond ergueu os sobrolhos. Aquilo parecia sério.

- E o que eu preciso fazer?

- Nada. Apenas assinar uma papelada...

Bescond encarou o médico com desconfiança.

- Para quê?

- Para tornar-se doador de órgãos em caso de morte - replicou o médico. - Oh, eventualmente você terá que apresentar-se para doar sangue, mas respeitamos o intervalo de três meses entre uma doação e outra. Ainda mais raramente, você poderá ser chamado para extrair medula óssea... iremos incluí-lo no nosso cadastro de doadores, naturalmente.

Bescond continuava desconfiado.

- Não irão me utilizar em experiências médicas? Sem anestesia?

- Nada de experiências médicas sem anestesia - prometeu o legista. - Ou com anestesia, à propósito. Veja, Bescond, se quiséssemos torturá-lo, não iríamos precisar da sua autorização num pedaço de papel.

O prisioneiro teve que reconhecer que aquilo fazia sentido.

- Onde eu assino? - Indagou.

* * *

Bescond logo reconheceu que as condições descritas pelo médico correspondiam à verdade. A tal ala VIP, além de separada por muros altos do presídio superlotado, parecia mais um alojamento universitário do que uma prisão. Seu colega de quarto, um falsário chamado Flandin, usou exatamente essa analogia.

- Aproveite seu tempo aqui, Bescond: invista em educação. E se você se comportar direitinho, poderá conseguir até uma redução da pena!

Bescond olhou para o falsário de cima a baixo. Se o critério de admissão na ala VIP era a boa forma física, o que um sujeito esquálido e de meia-idade como Flandin fazia ali?

- Eu já estou aqui há um quarto de século - justificou-se o falsário. - Além do mais, sou doador de medula óssea.

Bescond aceitou a explicação e, em pouco tempo, adaptou-se à nova existência. Algumas semanas depois, foi chamado para doar sangue: 450 ml. As enfermeiras eram atenciosas e ele pôde recuperar-se confortavelmente.

Num dos encontros semanais promovidos pela administração da penitenciária, conheceu uma prisioneira da ala VIP feminina, Adrienne Botrel. Ela havia sido condenada por furto qualificado, e estava ali há dois anos. Os dois chegaram a bom termo, e faziam planos para quando saíssem dali.

- E se você sair antes de mim? - Indagou ela, preocupada.

- Eu te espero - comprometeu-se ele.

- Eu também te espero - afirmou ela.

E quis a sorte, o azar ou o diabo, que ambos fossem chamados concomitantemente para doação de medula no centro cirúrgico da penitenciária. Sorriram ao saber que estariam juntos, compartilhando o mesmo espaço.

- Iremos aplicar anestesia geral para evitar qualquer desconforto - informou o sempre sorridente doutor De Villiers, o cirurgião-chefe.

E, de sua maca, Adrienne sorriu para Séverin e Séverin sorriu para Adrienne. E ambos mergulharam num sono sem sonhos.

* * *

O anestesista consultou seus medidores e fez um aceno de cabeça para o doutor De Villiers.

- São seus - declarou.

O sorriso no rosto do cirurgião há muito havia se apagado. Olhou para sua equipe, ajeitou a máscara de gaze no rosto e comandou:

- Muito bem, vamos começar pela remoção do coração do homem. Depois que conectarmos o corpo à máquina de bombeamento, retiramos o coração da mulher. O helicóptero está pronto para levar os órgãos para Germânia?

- A postos, doutor - replicou um dos assistentes.

De Villiers calçou as luvas cirúrgicas e aproximou-se do corpo inerte de Séverin Bescond.

- Bisturi - solicitou à enfermeira ao seu lado.

- [31-01-2019]